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Autor: J. Niépce / Fonte: www.photo-museum.org.

Entre os nomes que aperfeiçoam esse processo tecnológico está o de Louis- Jaques Mandé Daguerre, que vai patentear a invenção da fotografia em 1839. Daguerre teria feito mais de 40 fotografias, das quais se conhece não mais do que 15 imagens, entre retratos, natureza morta e paisagem (AMAR, 2011, p. 23). A fotografia que Daguerre fez da Avenida do Templo, em 1839, é considerada sua primeira imagem habitada, “onde um transeunte se deteve, por momentos, para engraxar as botas”, em função do tempo de exposição necessário para a captura, de pelo menos dez minutos (AMAR, 2011, p. 24). Em função do aumento da sensibilidade do filme, esse processo se altera com intensidade ao longo de mais de um século: “Para dar uma ordem de grandeza deste aumento da sensibilidade, podemos dizer que, para uma abertura de f16 ao sol, ela foi multiplicada por 28 entre 1839 e 1970. Passámos de três dias de exposição a 1/500 do segundo” (AMAR, 2011, p. 35).

Destaca-se, portanto, uma predisposição da fotografia para a paisagem urbana desde os tempos pré-industriais da imagem fotográfica. É o caso de Hippolyte Bayard, que em 1842 fotografou Os Moinhos de Montmartre, em Versalhes – entre tantos outros mestres do ofício. Em partes, as novas imagens técnicas continuam uma das tradições da pintura, revitalizada por um objetivo de, agora, via fotografia, dar a conhecer e visualizar um mundo que foge à experiência tangível graças ao olhar e ao registro de viajantes44.

A paisagem está presente, portanto, desde o início da história da fotografia. Para isso concorrem diversas razões: o objectivo confessado da pintura foi sempre a representação mais fiel possível do real, a cópia servil, sem subjectividade, da natureza. A fotografia será, pelo menos acredita-se nisso, o meio de realizar este sonho. Até meados do século XVIII, a paisagem pictórica é sobretudo um pano de fundo e são os românticos que começam a tratá-la como um assunto em si mesmo. Os desenhadores viajantes relatam as recordações dos seus périplos ajudados muitas vezes pela utilização da câmara clara, como Talbot, por exemplo. A fotografia satisfará esta necessidade de conhecer regiões longínquas dos que não podem viajar. Fizeram-se rapidamente paisagens de lugares célebres ou extraordinários e estas fotografias deram lugar a um comércio importante. (AMAR, 2011, p. 54).

Uma das provas desse mercado de paisagens por daguerreótipos é o lançamento de uma das primeiras obras ilustradas com daguerreótipos, publicada entre 1840 e 1843, intitulada justamente As excursões por Daguerreótipo: As paisagens e os Monumentos mais Notáveis do Globo (AMAR, 2011, p. 55).

Nos primeiros movimentos da fotografia é possível, então, recolher pistas da paisagem como tema figurativo, de uma associação de fotógrafos a atividades de deslocamento e de um esforço em se dar a conhecer frações do mundo por meio de imagens técnicas. Por isso, para Dyer (2008, p. 163), o gesto de Niépce numa das primeiras fotografias da história de olhar pela janela ganhou reverberação generalizada sobre o que viria a ser a fotografia: “Em algum momento, todos os fotógrafos, salvo os mais intrépidos – até os mais intrépidos -, são tentados a se voltar para dentro de casa e contemplar o mundo através da janela” (DYER, 2008, p. 163).

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5.2 O OLHAR PRECURSOR DE ATGET SOBRE PARIS

Se até aqui o que se identifica é uma inclinação tendencial da fotografia em seus primórdios ao registro da paisagem, é no trabalho do húngaro Brassaï em Paris nos anos de 1930 que tais pistas se consolidam como características referenciais de um modo específico e influente de se fotografar e assim se traduzir em imagem a cidade. Antes dele, quem ‘adotou’ a mesma cidade em sua documentação fotográfica foi Jean-Eugène Atget, considerado um dos maiores documentaristas do princípio do século XX (AMAR, 2011, p. 87).

Assim como uma série de fotógrafos que registraram a virada do século XIX para o século XX, Atget exerceu outros ofícios antes de se dedicar à fotografia – era ator e pintor. Da mesma geração, pode-se citar o caso de Lewis Hine, sociólogo e professor que abandona tais ofícios em função da fotografia em 1904 (AMAR, 2011, p. 85). Já Alfred Stieglitz abandona a profissão de engenheiro para ser fotógrafo (AMAR, 2011, p. 89). Essas andanças entre ofícios marcam, sobretudo, a geração de fotógrafos anteriores à época de Brassaï, quando se tem indícios de maior institucionalização de um campo profissional – mas tal aspecto permanece de modo residual a produzir efeitos na cultura do ofício fotográfico, a configurar uma atuação porosa em relação a outros fazeres.

Tal papel precursor se evidencia nas condições precárias de trabalho do fotógrafo no início do século XX: “Fotografa quase todos os dias com a sua câmara 18x24, em madeira, apetrechada com dúzias de chapas e uma velha objectiva que cobre mal o formato da chapa”; “As suas condições de trabalho são miseráveis: é na cozinha que imprime as fotografias {...}” (AMAR, 2011, p. 87). Em que pese esse conjunto de restrições, Atget passa a colecionar pequenos pedaços da vida parisiense, numa atitude que depois seria ampliada e intensificada por várias gerações de fotógrafos em distintas cidades – “fotografa tudo: os monumentos, as fontes, as estátuas, os interiores parisienses, os pequenos ofícios, as prostitutas” (AMAR, 2011, p. 87), como se estivesse a esboçar Paris em um catálogo visual de fortes conotações surrealistas. “Eugène Atget figura entre os precursores da fotografia urbana. Primeiro por encomenda e depois por mera paixão, Atget

acumulou uma imensa obra sobre Paris” (COLEÇÃO FOLHA GRANDES

FOTÓGRAFOS, 2009, p. 3).

Atget foi redescoberto pela fotógrafa norte-americana Berenice Abbott, que trabalhou como assessora de Man Ray e já havia revelado Lewis Hine (AMAR,

2011, p. 87). A descoberta do legado de Atget por parte dos surrealistas “o converteu em referência inevitável para fotógrafos ligados a este movimento de vanguarda”, como o francês Henri Cartier-Bresson, os norte-americanos Man Ray e Berenice Abbott, os húngaros André Kertész e Brassaï, o romeno Eli Lotar, as alemãs Germaine Krull e Ilse Bing – “todos estabelecidos em Paris no entreguerras” (COLEÇÃO FOLHA GRANDES FOTÓGRAFOS, 2009, p. 3). Em 1968, Abbott o inclui em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.

Um grupo de fotógrafos compartilhava, por circunstâncias diversas, a mesma cidade de Atget. A um só tempo, a cidade das fotos era específica, única e nisso o fotógrafo acaba por se tornar uma referência aos demais. Existe uma pista aqui para se pensar que a paisagem urbana nas fotografias assume uma realidade específica e é capaz de perceber ou projetar uma cidade diferente. Atget opera na escala local o acúmulo de várias parcialidades da cidade, avança por fragmentos, registra o espaço público, a noite, a nascente iluminação das ruas, a névoa, vazios, parques, escadas, portas. Mas parece que uma dimensão da cidade não existia ou não se percebia antes de suas fotos.

As fotos que Atget fez de Paris também são assombradas, por pessoas que entram em paredes e se dissolvem diante de nossos olhos. Há para isso uma explicação técnica simples: longos tempos de exposição faziam quaisquer objetos ou pessoas que se movessem com rapidez desaparecer completamente. É por isso que, nas fotografias antigas, mesmo cidades densamente povoadas, como Londres ou Paris45, parecem quase desertas (...). Eles ainda estão lá, em fotografias do começo do século XX: pessoas que se movem tão de leve ou tão devagar que ficam indistintas, incorpóreas, insubstanciais. No entanto, tudo que não ‘desaparece’ adquire uma permanência palpável, absolutamente inflexível. É por isso que as portas fechadas que Atget fotografou dão a impressão de poder suportar um sítio de séculos, enquanto as abertas passam a sensação de que nunca serão fechadas. (DYER, 2008, p. 224).

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Uma das referências demográficas é de que na metade do século XVIII, Londres contava com 750 mil habitantes, ao passo que Paris chegava a 500 mil (SENNETT, 2014, p. 81). No século XIX, a população de cada cidade ultrapassa a marca de um milhão de habitantes, expressando um crescimento acima da média do país. Há um achatamento do espaço urbano em Paris e ampliação do território em Londres. Nos dois casos, essa nova densidade se traduz, paradoxalmente, em segmentação da vida social, em menos oportunidade de encontro (SENNETT, 2014, pp. 193-203).