• Nenhum resultado encontrado

A interrogação inultrapassável e que devemos concretizar como objetivo de pesquisa é a dos porquês. Trata-se de levar a cabo a tarefa, aparentemente simples, de evitar a tentação de achar ingénuas aquelas que são, afinal, questões fundamentais: primeira, saber porquê é que as mulheres iniciam a atividade prostitucional quando são socializadas para o seu evitamento e vivem conscientes da ameaça do estigma de se ser puta? Segunda, por que razões os homens recorrem aos seus serviços sexuais pagos num quadro geral de transformações da sexualidade e de rutura com o duplo padrão moral no sentido da igualdade entre homens e mulheres na experimentação da sexualidade?

Para responder temos de nos implicar numa sociologia dos motivos (Mills, 1940 e 2000) orientada por dois princípios fundamentais: por um lado, os motivos e as ações são originados não pela vontade interior dos indivíduos mas pelas situações em que os indivíduos se encontram. Isto é, as estruturas motivacionais dos indivíduos dependem dos seus enquadramentos societais e dos enquadramentos de inteligibilidade prática (Mills, 1940), do habitus (Bourdieu, 1979 e 2002), do sentido prático (Giddens, 1984 e 2000) ou de reportório disposicional plural acumulado (Lahire, 1998, 2004 e 2005). Por outro, os motivos usados para justificar um determinado comportamento ligam-se imediatamente a uma situação social, integrando essa ação num quadro relacional mais vasto e alinhando o comportamento com as normas que potencialmente o avaliam (Mills, 1940 e 2000). Ou seja, trata-se de uma sociologia dos motivos mais preocupada com as situações socialmente definidas do que as vontades interiores ou pulsões individuais.

Assim, a resposta à pergunta dos porquês apenas é respondida dentro do quadro das limitações da sociologia enquanto olhar específico sobre a realidade. No quadro concreto desta pesquisa, as respostas serão sempre limitadas pelo que os óculos teórico-conceptuais permitem ver.

A hipótese explicativa que se levanta será a de que a localização e o percurso biográfico e estrutural (preenchido por diferentes acidentes e transições mais ou menos abruptas) dos protagonistas – mulheres acompanhantes e homens clientes - deste tipo de prostituição contribui, pelo menos parcialmente, para a identificação de uma gramática dos motivos (Mills, 1940) para a entrada na prostituição devedora da forma o mundo social e as suas condições estruturais vão sendo individualmente internalizadas e geridas.

Este exercício explicativo resulta de um quadro teórico suficientemente plástico que autoriza uma análise preocupada com a conjugação da biografia com as condições estruturais, isto é, que facilite o recentramento da variável tempo e do carácter histórico da vida social dos indivíduos e da forma como o mundo social e as estruturas sociais se vão internalizando à escala individual. Este

posicionamento operacionaliza-se pelo recurso a uma estratégia analítica que não será totalmente alheia à noção de trajetórias subjetivas42 (Dubar, 1998).

Este posicionamento permite ultrapassar e sofisticar analiticamente o entendimento de carácter mais objectivista, fundamentalmente apoiado numa perspectiva evolutiva que dá conta da transformação dos atributos estruturais dos protagonistas ao longo do tempo. Trata-se de olhar para trajectórias sociais discretas a partir de dois pontos fixos e analiticamente pré-determinados: a actualidade que se refere ao momento da pesquisa e o passado que remete para o grupo doméstico de origem. A avaliação da trajectória tem exclusivamente em consideração as posições ocupadas em cada um desses pontos no tempo. As trajectórias sociais discretas fazem desaparecer o tempo, na trajectória fica apenas o espaço que é linearizado através de um exercício de subtracção: à posição de chegada e aos seus atributos subtraímos a posição de partida e as suas características; à diferença positiva, negativa ou nula que daí resulta chamamos trajectória. Na verdade, estamos perante a geometrização do espaço antropológico, vivencial e relacional (Meleau-Ponty, 2003; Pais, 2002). A virtualidade analítica desta opção reside na capacidade de identificação de grandes padrões de mobilidade social em que as mulheres acompanhantes e os homens clientes se inscrevem à medida que vão percorrendo as suas vidas do passado para presente, permitindo identificar os lugares de classe que vão sucessivamente ocupando e desocupando (Almeida, 1981 e 1984)

Sofisticando estas virtualidades, a estratégia que iremos explorar atribui uma dimensão subjectiva às trajectórias e analisa trajectórias sociais contínuas, também elas balizadas por dois pontos no tempo: a origem e a actualidade. Contudo, nesta abordagem são tidos em consideração os acontecimentos que se sucedem entre estas duas balizas temporais. Um olhar que permite ver a curva que une passado e presente, fazendo intersectar posições na estrutura social pelo percurso da biografia individual dos homens clientes e das mulheres acompanhantes. Aqui, a análise da mobilidade social tem em consideração acontecimentos biograficamente significativos, que resultam em ou de transformações, inflexões ou consolidações da trajectória individual43. Ao contrário da primeira forma de trajectórias, o tempo não desaparece para dar lugar ao espaço (social). Pelo contrário, passado, presente e futuro são traduzidos no espaço, respectivamente, pelos acontecimentos vividos na história

42 Apesar dos evidentes pontos de contacto entre a proposta de Dubar (1998) e aquela que aqui se faz, importa

referir uma particular discordância de ordem terminológica que remete para problemas de ordem epistemológica. Ao limite, na proposta de Dubar o carácter objectivo ou subjectivo da trajectória não depende do indivíduo que a percorre, nem das suas condições objectivas ou campo de possibilidades, mas essencialmente do método que o pesquisador utiliza para a definir e para escutar o relato dos indivíduos acerca das suas vidas e trajectos sociais. Dubar (1998) faz corresponder a análise quantitativa da mobilidade social a trajectórias objectivas e a análise baseada no relato biográfico à produção de trajectórias subjectivas. Daqui resulta uma anacrónica desigualdade epistemológica entre diferentes métodos, sendo uns considerados mais objectivos/subjectivos do que outros; esquecendo que ambos provocam elevada interferência junto do objecto de pesquisa e dependem de condições teóricas e ideológicas que enquadram o pesquisador (Almeida e Pinto, 1975 e 1990).

43

Este tipo de análise da mobilidade social tem sido mais comum tendo em consideração a comparação de diferentes gerações familiares, como é o caso dos trabalhos de Bertaux.

biográfica, pelos princípios de orientação da vida ou orientação da acção (Weber, 1999 e 2005), onde se vislumbram concepções do presente e do futuro.

A pertinência analítica da opção por este segundo modo reside na sua capacidade de integração das trajectórias de mobilidade social (mais comuns na análise de classes) nas trajectórias biográficas e nos acontecimentos que marcam a vida que vai sendo construída pelos protagonistas desta realidade prostitucional.

Este tipo de análise depende directamente de duas opções de carácter teórico-metodológico. Em primeiro lugar, o recurso ao conceito de modos de vida é o instrumento que torna possível articular a biografia dos autores e actores desta forma de prostituição, as estruturas sociais e a sua inserção estrutural (Mills, 2000). Porque, problematizar os modos de vida que organizam a existência quotidiana das acompanhantes e os clientes significa desvendar os processos sociais individualmente internalizados e naturalizados de orientação da acção, de atribuição de sentido à existência no mundo social (posição e visão sobre os outros e mundo) e da manipulação das exigências do quotidiano e dos condicionamentos estruturais que funcionam como mecanismos geradores da entrada na prostituição. Olhar para estas naturezas sociais individualmente internalizadas significa evitar analisar a sexualidade (paga) esvaziada da sua dimensão pública e política, como se estivesse unicamente situada nos processos de individualização reflexiva radicalizada, processos em que os indivíduos se auto- constroem tendo em consideração as suas escolhas e preferências (McDermott, 2010 e 2011; Sennet, 1988). Trata-se de abrir espaço teórico para a problematização das condições materiais da sexualidade paga, reafirmando que a escolha e os processos reflexivos onde se inscrevem as acções e as interacções da sexualidade comercial devem ser entendidos como um recurso distribuído de forma desigual, enquadrando vidas sociais e sexuais tanto numa estrutura social específica (Adkins, 2002; Armstrong, 2010; Skeggs, 2004; Wilson-Kovacs, 2010), como numa estrutura biográfica que incluí acontecimentos e pessoas, vínculos e rupturas, conservação e transição.

Desta forma, as oportunidades e condições de vida dos agentes que dependem da posição no sistema produtivo, o espaço de desigualdades sociais e económicas em que mulheres e homens situam as suas biografias passam a ser considerados como factores de relevância fundamental na definição e experimentação da sexualidade (Jackson, 2011; McDermott, 2011; Taylor, 2010; Seidman, 2011) como prostitutas acompanhantes e como clientes.

Em segundo lugar, a opção pela construção de histórias de vida pluridimensionais, exige esforços adicionais na análise das classes e da mobilidade social; exige que olhemos com atenção para as classes sociais vividas pelos indivíduos ao longo do tempo. Será na conjugação da análise de trajectórias discretas e continuas que melhor compreenderemos a dinâmica que mulheres acompanhantes e homens clientes imprimem às estruturas sociais. Esta fórmula fusionada de análise permite, por um lado, a articulação diacrónica entre estruturas e protagonistas (Almeida, 1981), localizando os trajectos sociais que os protagonistas sociais vão traçando nessas estruturas, reproduzindo ou transformando-as (Costa, 1999). Por outro, como é que a ocupação e desocupação de

determinados lugares nessas estruturas se articula com acontecimentos, projectos, orientações ou acidentes biográficos.

4.1 | Trajectórias sociais contínuas: modos de vida, projectos e dramaturgias individuais

No contexto das sociedades contemporâneas altamente diferenciadas em que os indivíduos estão inscritos numa multiplicidade de quadros interaccionais e submetidos a uma pluralidade de contextos socializadores, actualizando e questionando o seu património disposicional (Lahire, 1998 e 2005), uma determinada posição social e as suas propriedades simbólicas (status e prestígio) e objectivas (recursos e poderes), não são simplesmente transmitidas de pais para filhos. A transmissão de vantagens ou desvantagens iniciais de clientes e acompanhantes não ocorre de forma directa ou linear e não se acumulam necessariamente num aprofundamento sucessivo de clivagens sociais (Merton, 1988). Os pais promovem o acesso a recursos e bens (económicos, culturais ou relacionais) determinados pela posição na estrutura de distribuição social, que funcionam como base para a construção da trajectória social dos seus descendentes. Mas, a trajectória é sempre um caminho a ser percorrido, uma construção e não um dado adquirido por transmissão de tipo hereditário. Neste sentido, a reprodução social não pode ser vista como um processo mecânico, mas antes como um processo dinâmico, no qual os indivíduos devem se entendidos como jogadores envolvidos em jogos sociais (Bertaux e Thompson, 1997).

Importa, por isso, não negligenciar a dimensão interaccional da vida social (Mouzelis, 2008), negligência que transformaria homens clientes e mulheres acompanhantes em agentes sub-reflexivos e a agência em mera reprodução social. Os encontros ao longo da vida e nos diferentes contextos de sociabilidade e socialização, não só colocam em evidência os atributos incorporados e as estruturas sociais (Collins, 2004; Goffman, 1983), como permitem que os processos de mobilidade social sejam atravessados pela imprevisibilidade e pela necessidade de reflexiva do novo (Mouzelis, 2008; Lahire, 1998 e 2005). Ao longo das suas vidas, as mulheres prostitutas acompanhantes e os homens clientes experimentam momentos de inflexão, de viragem, formas de reinvenção das suas condições objectivas de existência que possibilitam o alargamento ou implicam o fechamento do seu campo de possibilidades.

As visões estruturalistas negligenciam a importância dos percursos biográficos, da história social que se intersecta com a história pessoal, do cruzamento entre as condições históricas com as condições subjectivas (Aboim e Vasconcelos, 2009). Ou, de outra forma, esquecem-se da forma como as posições sociais se articulam com a vida vivida e pensada quotidianamente pelos agentes aí localizados (Silva, 2009). Os modelos contemporâneos percebem a mobilidade social no quadro da influência das diferenças no passado na determinação das desigualdades no presente, dando às condições iniciais um lugar primordial, sendo que os fenómenos recentes funcionam essencialmente como reforço de tendências do passado. Para uns, isto é avaliado de acordo como a distância entre dois

pontos que identificam a geração do presente e a do passado nas estruturas ocupacionais (Erikson e Goldthorpe, 1992; Wright, 1997 e 2015). Para outros, apesar da tentativa de ultrapassagem da cisão objectivista/subjectivista a análise das trajectórias é fixada no pólo objectivo, definindo os percursos biográficos como uma sequência de interiorizações do trajecto provável (Bourideu, 1979 e 2002) e mais nas transformações patrimoniais (diferentes tipos de capital) do que em transições profissionais.

Propomos que as trajectórias, balizadas por duas posições sociais congeladas no tempo, sejam interpretadas de forma compreensiva. Porque limitarmo-nos a esses pontos estáticos é deixar escapar tudo o que define a experiência dessas posições como etapas de mobilidade (ascendente, descendente ou estacionária). É necessário caracterizar a curva biográfica e social (Bourdieu, 2001) por meio da intersecção das trajectórias de mobilidade social com os percursos biográficos, situando as intrigas narrativas através das quais as mulheres acompanhantes e os homens clientes exprimem os seus argumentos e as suas razões para justificarem a situação social em que se encontram (Dubar, 1998). Essa é uma localização triangular entre condições objectivas, protagonismo e trajecto. Isto é, um exercício que localiza os protagonistas entre (i) os constrangimentos estruturais, (ii) os traçados possíveis das trajectórias sociais, (ii) as coordenadas da vida que oferecem espessura a esses traçados através das experiências vividas, das práticas e de uma posição no mundo reflexivamente projectadas (Conde, 1993a, 1993b e 1994). Neste sentido, a noção de trajectória contínua recupera o objectivo de compreender o movimento biográfico como cruzamento dos processos íntimos (experiência individual) e dos quadros sociais da experiência implícitos na noção de carreira criada no quadro das teorias interaccionistas (Becker, 1997). Esta triangulação permite uma mais densa articulação entre, por um lado, uma análise de tipo macro-estrutural localizando não só as inserções estruturais no espaço das classes sociais e as trajectórias individuais e, por outro, uma visão micro, intimista que permite observar a diversidade das biografias, das decisões, dos acontecimentos e das estratégias que moldam e definem as trajectórias de mobilidade social (Bertaux, 1993).

O que está em causa é a clarificação da relação entre trajectórias e transições. Isto é, como momentos de viragem, um agregado de acontecimentos que marcam transições de um estado para outro sem possibilidade de reversibilidade ao estado anterior, se intersectam com trajectórias entendidas como experiências sociais duradouras ao longo da vida dos indivíduos (Elder, 1985). As transições enquanto momentos fatídicos têm consequências importantes para os indivíduos, independentemente do sentido positivo ou negativo sobre as trajectórias sociais. Porque o indivíduo é chamado a tomar decisões com consequências para as suas ambições e para o futuro da sua vida, não só para as circunstâncias da conduta futura, mas também para aquilo que ele é, como vê e é percebido pelos outros e pelo mundo social (Giddens, 2001). Isto é, na relação entre transições (o imediato do acontecimento) e trajectórias (história acumulada de acontecimentos, decisões e experiências) produzem-se disposições subjectivas e estruturas objectivas de oportunidades, tornando-se variáveis fundamentais para entender a construção diferenciada de mobilidade social e da complexidade da situação social actual.

Estamos perante um exercício que situa biograficamente as trajectórias de mobilidade social e as inserções na estrutura das classes sociais, ao mesmo tempo que situa estruturalmente os acontecimentos da vida. Trata-se de uma sociologia que contempla a dimensão biográfica e a articula com o social (Mills, 2000). Esta dupla localização (estrutural e biográfica) implica mais do que fazer uma listagem de acontecimentos e momentos fatídicos, seguindo de forma encantada as narrativas de recolecção (sempre racionalizadora e ontologicamente protectora) da vida vivida que os protagonistas elaboram quando nos contam a sua história (Bourdieu, 2001; Conde, 1993a e 1994). Por outro lado, ainda que com esta posição se pretenda dar espaço teórico e analítico a aspectos como: (i) a vida e as dinâmicas familiares no grupo doméstico de origem, porque a família e as suas dinâmicas internas desempenham um papel crucial na orientação da vida dos seus membros (Bertaux e Thomson, 1997), tendo impacto decisivo sobre as suas probabilidades de sucesso económico, escolar e social (Almeida, 1981 e 1984) ou na definição das suas trajectórias possíveis (Bourdieu, 1979); (ii) o percurso escolar; (iii) percurso amoroso (Nico, 2011); (iv) percurso profissional. Também não se trata de perceber as biografias como um conjunto de acontecimentos mais ou menos alinháveis no tempo através de ligações de maior ou menor causalidade, nem como a acumulação de conhecimentos e reconhecimentos interpessoais acidentais constitutivos de vínculos e interdependências várias, nem tão pouco como um stock de experiências passadas como únicas determinantes de uma matriz de percepção e acção no mundo. Pelo contrário, o desafio é fazer emergir o sentido e a orientação da biografia social (Dubar, 1998), instanciação do social individualmente incorporado (Lahire, 1998, 2004 e 2005) e das possibilidades de criação social.

Torna-se neste momento pertinente recorrer ao conceito de modos de vida, porque este desempenha um papel teórico e analiticamente esclarecedor enquanto pivot entre o carácter estruturado e socialmente condicionado da existência, o cunho aleatório e acidental da vida acontecida e a natureza consciente, intencional e reflexiva da história individual O conceito de modos de vida dá conta das modalidades, variáveis mas também padronizáveis, através das quais os indivíduos articulam as condições de existência socialmente estruturadas com a multiplicidade de situações e necessidades de avaliação e acção que o quotidiano impõe (Costa, 1999).

A definição dos modos de vida implica três dimensões básicas: social (condições estruturais de existência e redes de relações sociais), temporal (projectos pessoais e princípios de orientação do presente e do futuro) e espacial (contextos de interacção)44.

Dimensão social.

Na constituição de modos de vida não contam apenas as condições de existência, mas também as relações activas que os indivíduos estabelecem com elas. Na medida em que, enquanto protagonistas sociais, os indivíduos não são meros suportes de estruturas, mas actores práticos e

44

Optámos por seguir a forma de operacionalização do conceito de modos de vida apontada em pesquisas sobre as desigualdades sociais e a pobreza em Portugal: Almeida et al (1992), Costa (1999), (Capucha, 2005).

reflexivos, ainda que esta sua acção esteja enquadrada por campos de possibilidade e por capacidades diferenciadas de actuação sobre as suas próprias condições presentes e futuras (Costa, 1999).

Neste sentido, indivíduos com a mesma inserção estrutural de classe podem manifestar modos de vida diferentes, nomeadamente no que diz respeito a estratégias de conquista de recursos, à construção de projectos de vida ou na concretização de modalidades de existência (Costa, 1999)45. Porque, se as condições sociais de existência constituem o dado mais estrutural da vida social, as orientações, consubstanciadas nos modos de vida, serão, necessariamente, orientações em relação às condições sociais de vida. Se essas condições objectivas são decisivas na definição de constrangimentos e oportunidades, será expectável que a reprodução ou transformação de tais condições sejam os objectivos da acção social (Casanova, 2004).

Numa lógica de ruptura com a homologia entre condições objectivas e sistema de disposições enquanto estruturas estruturadas e estruturantes de práticas e avaliações (Bourdieu, 1979 e 2002), verifica-se que entre as mulheres prostitutas acompanhantes e os homens clientes de uma determinada classe podem corresponder diferentes modos de vida. De forma simétrica, também é igualmente observável que cada modo de vida se constitui por elementos de diferentes classes sociais. Ao mesmo tempo, percebemos que as rotas de mobilidade social de ascensão, declínio ou estacionariedade estão presentes em todos os modos de vida identificados.

A não conformidade homológica entre classes sociais e modos de vida, bem como a caótica e não determinável relação entre modos de vida e trajectórias sociais deriva da relação que as acompanhantes e os clientes estabelecem com as suas condições objectivas de vida (base essencial para a permanente formulação e avaliação dos projectos individuais). Para alguns destes protagonistas essa relação define-se pelo inconformismo permanente na luta pela vida; para outros, o inconformismo inicial dá lugar ao cansaço (inconformismo cansado) ou a um fatalismo tardio depois de sucessivos fracassos na transformação das condições de vida; também encontramos mulheres e homens, acompanhante e clientes, que assumem uma relação inovadora perante as incertezas e turbulências do presente; finalmente, identifica-se entre as acompanhantes e os clientes uma relação aparentemente blasé marcada pelo ilusório distanciamento dos indivíduos perante a dimensão objectiva e instrumental da existência.

Frequentemente o conceito de modos de vida é colocado na família terminológica e conceptual dos estilos de vida, importa, por isso, fazer distinções que se fossem negligenciadas causariam certamente problemas interpretativos. Em primeiro lugar, a preocupação conceptual com a dimensão social permite distanciar o conceito de modos de vida - instrumento de manipulação das condições objectivas - da ideia de estilos de vida enquanto força estruturante da realidade social por

Documentos relacionados