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ESQUEMA 6: Planejamento da versão final produzido por um aluno (Autoria própria)

5 ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL A PARTIR DA

5.2 Macroproposição: Situação inicial

O momento que abre o limite do processo narrativo é a Situação inicial. Nessa fase, são apresentadas as circunstâncias que conferem um aparente equilí- brio na história. Geralmente, são apresentados os aspectos temporais e espaciais, e um personagem que se configura no núcleo central da trama narrativa.

Nos quarenta e quatro (44) textos que compõem o corpus da nossa análise, sendo vinte e dois (22) da primeira versão de escrita, e outros vinte e dois (22) da versão final, a distribuição dessa macroproposição deu-se conforme o apresentado no gráfico seguinte.

Gráfico 2: Distribuição das ocorrências da macroproposição situação inicial nas duas versões do corpus Fonte: Autoria própria

A situação inicial é de conhecimento bastante difundido entre os falantes que realizam o processo de narrar, sobretudo, as narrativas de ficção em que se in- sere o gênero lenda. Casualmente, ao iniciarem uma narrativa desse tipo, os falan- tes utilizam a fórmula “Era uma vez” ou “Uma vez”. Apesar disso, o gráfico mostra que 86,4% utilizaram a situação inicial, enquanto 13,6% não fizeram uso dessa se- quência que introduz o processo narrativo. Já na versão final, a utilização corres- ponde a 100% do corpus.

Apresentamos, a seguir, um exemplo extraído do corpus a fim de verificar o motivo para a não utilização desta macroproposição na primeira versão e o que con- tribuiu para a mudança na versão final, cuja estrutura aparece explicitada.

(T03) Flozinha a Rainha das matas

flozinha euma menina dos cabelos longos ela e uma menina muito má ela e a rainha das matas sé você ouvir um asobeio não Emite pois ela vai la e da uma piza com os cabelo dela os cabelo dela ela da chicotada com os cabelo se você for atirar de es- pingarda você tem que leva um pacote de fumo ai você pode ir embora atirar de es- pingarda.

Apesar da recorrência nos textos narrativos do aparecimento da sequência descritiva, nota-se na primeira versão do texto, a presença fortemente marcada da descrição por meio da operação de pré-tematização ou ancoragem (v. subcapítulo 2.1.4), cujo ser é imediatamente definido a partir dos enunciados “flozinha euma menina dos cabelos longos ela e uma menina muito má ela e a rainha das matas”. Logo, pode-se afirmar que essa sequência figura na narrativa e tem relevância no processo do narrar. Contudo, não há uma relação de temporalidade e uma dinâmica no transcorrer do texto que aponte uma narração de ações e/ou eventos e não se percebe um encaixamento de sequência narrativa que abra o processo, através da introdução de um verbo no pretérito perfeito ou imperfeito ou, ao menos, um verbo que denote ação.

Ademais, as informações apresentadas em seguida sugerem conselhos ao in- terlocutor (sé você ouvir um asobeio não Emite pois ela vai la e da uma piza com os cabelo dela os cabelo dela ela da chicotada com os cabelo se você for atirar de es- pingarda você tem que leva um pacote de fumo ai você pode ir embora atirar de es- pingarda) e marca o tom de diálogo com o leitor. Portanto, esses enunciados figuram como uma sequência dialogal.

A possível razão para essa forma de produção da lenda pode estar associado a um modo recorrente de se referir ao gênero. Não raro, muitos falantes, ao serem questionados se conhecem determinada lenda – sobretudo, no que se refere a seres metamorfoseados ou espíritos, como a Florzinha -, respondem afirmativamente e, no lugar de utilizar o processo de narrar a lenda a partir da explicação do surgimento ou da experiência vivida envolvendo o ser, detêm-se em uma caracterização sobre quem é o ser, como é, o que faz esse ser de extraordinário. Como as produções dessa versão estavam relacionadas ao reconto de um texto apresentado oralmente por um falante da comunidade, acredita-se que essa forma de apresentar o texto está relacionada a essa performance.

Já na versão final, após a retextualização, os dados de (T03) apresentam a seguinte configuração.

(T03) Flozinha a rainha das matas

Na serra de Santana, alguns anos atrás, Dois meninos foram caçar, na noite. De repente eles encontraram flozinha.

Flozinha é a rainha Das matas. Ela é uma menina Dos cabelos longos.

Muita gente diz que quando você escutar um assobio na mata e ela. Quem for caçar tem que levar um Pacote De fumo. Quando volta lá no lugar que deixou o fumo e ele não estiver mais lá foi ela quem pegou mas se você não levar ela pode dar uma sur- ra em você com os cabelos dela.

Mas os meninos não levaram o fumo. Quando eles viram a flozinha tem tavam atirar nela uma pedra. A pedra atravessou ela. Mas ele não morreu Porque ela é tipo invisi- vel. As pessoas não pode tocar nela.

Nessa hora eles correram.

A flozinha De uma surra nelas com os cabelos dela que parece cipó.

Na versão final, o escrevente retextualizou a sua história e apresentou as in- formações prototípicas da situação inicial, nesta ordem: relação de espaço (Na ser- ra de Santana), temporalidade (alguns anos atrás), personagens centrais da trama e indicação de uma ação inicial (Dois meninos foram caçar) e organizador temporal (na noite).

Comparado à primeira versão, a produção final apresentou as informações pertinentes ao início de um percurso narrativo. E quanto à sequência descritiva, identificada na primeira produção, nota-se a presença das mesmas informações, porém adiadas para após a indicação das circunstâncias de introdução da situação inicial (recurso implicado na oitava operação de retextualização), contemplada ainda nessa macroproposição.

Ainda com respeito à situação inicial, identificamos 27% dos dados que, na primeira versão, apresentaram somente a circunstância temporal e a personagem principal da trama narrativa. Contudo, na versão final, houve o acréscimo da relação de espaço. Exemplificam esses dados os seguintes fragmentos.

PRIMEIRA VERSÃO VERSÃO FINAL

(T06) em uma moite de lua cheia uma nenina se batisou

(T06) Há muitos anos atrás, na serra, uma menina de dez anos se batizol

(T12) Uma noite Bareco foi Cassar mas novi-

nho irmão dele (T12) Uma noite, um rapaz chamado boneco foi caçar com seu irmão chamado novinho numa fazenda.

(T16) Era uma vez uma velhinha que era

visitada pelo Batatão, (T16) Era uma vez, na Serra da Gameleira. Ha muito tempo atrás, uma velhinha que ti- nha uma cachorrinha que era a Proteção Dela.

(T17) um dia seu julho foi atrás das vacas do

patrão (T17) um dia na melosa, seu julio foi átras das vacas do patrão num cavalo.

Quadro 16: Fórmula introdutória da Situação inicial 1. Fonte: Autoria própria

De acordo com o que vimos em Cascudo no subcapítulo 2.2.2, o gênero len- da possui, dentre seus aspectos, a fixação geográfica. Logo, a explicitação do espa- ço na narração do gênero contribui para o (re)conhecimento da comunidade que a divulga. E, atrelado à proposta desta intervenção de produção de lendas conhecidas por determinada comunidade, o duo espaço e tempo configuram um pertinente es- copo para a observação da transmissão e conservação dessas histórias. Assim sen- do, os fragmentos da versão final foram retextualizados com o propósito de inserir a relação de espaço. Juntamente com essa informação, os escreventes reorganizaram as informações constantes na primeira versão e detalharam a situação de equilíbrio, exceto pelo fragmento de (T17), em que houve somente a inserção do espaço. Nota- se também a nomeação do espaço em (T16) e (T17), uma fórmula utilizada em 50% dos dados da versão final, e a generalização em (T06) e (T12), que constituem o modo como 41% inseriram a relação de espaço.

Os exemplos a seguir apresentam uma fórmula utilizada para iniciar os textos da primeira versão. Neles, percebe-se a utilização de expressões que remetem a não assunção dos enunciados pelos informantes e atribuem um tom de boato às histórias narradas.

PRIMEIRA VERSÃO VERSÃO FINAL

(T13) Dona Creusa dice que numa cidade do interior da paraiba uma pessoa em sonho durante uma Noite mal dormido com dor de dente

(T13) No interior da Paraiba, há muito tempo atrás, existia um cidadão que tinha vários filhos.

(T14) conta na serra da gameleira que por lá exsiste um fogo que passa para o lado para

(T14) um Homem, ceRTta vez ia subindo a seRRA como costumava Fazer quase toda

outro a sustando as pessoas Noite (T15) Era uma vez pq muita gente dizia que

na cidade de Lages do Cabugi muita gente dizia que em Lages na Igreja diz o pv que Em baixo da Igreja avia uma cama da baleia anti- gamente

(T15) Em Lajes do Cabugi, antigamente, algo bem Estranho perto da igreja matriz

(T18) Por ai existe a história do chupa cabra (T18) Por aQui em caiçara do rio dos ventos e por outros lugares por perto as pessoas criam animais em suas casas.

Quadro 17: Fórmula introdutória da Situação inicial 2 Fonte: Autoria própria

Os termos “disse que”, “conta que”, “pq muita gente dizia”, “diz o pv”, e “por aí existe” remetem a um relato a partir de um boato e atribuem a afirmação dos enun- ciados a um sujeito não identificado na narração, exceto pelo trecho de (T13). Nas versões finais retextualizadas, há o apagamento desses vocábulos e, no lugar deles, tem-se uma assunção a partir da forma da narração em terceira pessoa e a adequa- ção dos tópicos ao modo prototípico do narrar, inclusive, através da contextualização dos referentes, como ocorre em (T18).

Como vimos na apresentação dos dados recorrentes na situação inicial, há o conhecimento a respeito da inserção da macroproposição na primeira versão. No entanto, a apresentação das informações foi realizada de forma curta e, em alguns dados, com uma introdução que remete os enunciados a outros sujeitos, o que leva a pressuposição de uma escrita estritamente ligada ao processo do reconto literal das histórias narradas por falantes da comunidade onde os escreventes encontram- se inseridos. Já na versão final, os escreventes tornam-se locutores efetivos de suas produções textuais e isso implica na mudança de apresentação da situação inicial por meio da narração em terceira pessoa e da inserção das informações necessá- rias à compreensão do começo do processo narrativo.