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E

m abril de 1865, Zélia começou a sentir vertigens e dores de cabeça. Lentamente surge um “caroço” em seu seio. Com o aparecimento da doença, a senhora Martin começa a preocupar-se, ficando triste e amuada. Mesmo assim, com grande esforço, tenta mostrar-se serena para as filhas e especialmente para o marido, que ficou muito angustiado diante do problema. Zélia era o esteio da família, o bastão que orientava Luiz.

A mãe de Teresinha sentia-se preocupada com as filhas, pois caso viesse a falecer, quem cuidaria delas?

Em momento de maior tristeza e desânimo, foi ouvida recitando uma página de Lamennais: “A abelha regressara à colmeia, a avezinha ao seu abrigo noturno; as folhas imóveis dormiam nas hastes; um silêncio triste e suave envolvia a terra adormecida. Uma única voz, a voz distante do sino da aldeia, ecoava no ar calmo a dizer: ‘Lembrai-vos dos mortos!’”.

Com sabedoria costumava dizer: “Digo para mim mesma que se fizesse para ganhar o céu metade do que tenho feito para ganhar a terra, chegava para ser santa de altar”.

Era nesses momentos de tristeza que voltava à sua consciência certo remorso por não ter abraçado a vida religiosa como fez sua irmã Maria, que era visitandina. Se sua vida tivesse seguido esse rumo, não teria tantas preocupações nesse momento. Não que fosse infeliz no casamento, nem no papel de mãe, mas sentia necessidade de estar em silêncio, rezar pelos mortos e pelas filhas, para que crescessem na fé e em sabedoria. Tais pensamentos vivia sozinha, diante do Senhor na oração. Zélia tinha consciência de que só poderia alcançar a santidade na medida em que conduzisse sua vida matrimonial com radicalidade, com doação.

Em 1876, um novo alarme: a saúde de Zélia piorava. Estava com câncer, que se alastrava silenciosamente em seu organismo, minando cada vez mais sua saúde. Zélia não se amedrontava: “Se Nosso Senhor permitir que eu morra disto, farei o possível para me resignar o melhor que puder e suportar o meu mal com paciência, para ter menos tempo de purgatório. Mas espero que tudo corra bem” (Carta de Zélia a sua cunhada, de outubro de 1876).

que seria apenas uma tentativa sem grandes resultados. Zélia não tinha vontade deste gesto inútil.

Ela se viu na necessidade de contar tudo ao marido, às filhas e aos parentes. A família ficou apavorada. Ela mesma conta em uma carta à sua cunhada:

Não pude deixar de contar tudo em casa. Agora já estou arrependida, porque foi uma cena de desolação... todos choravam, a pobre Leônia soluçava. Mas citei-lhes muitas pessoas que viveram assim de dez a quinze anos. Mantive-me pouco inquieta, fazendo os meus trabalhos tão alegremente como de costume, ou talvez mais, que consegui acalmar um pouco a minha gente.

Contudo, estou longe de me iludir e custa-me adormecer à noite, quando me ponho a pensar no futuro. Mas resigno-me o melhor que posso, apesar de estar longe de esperar uma prova destas...

O meu marido não pode consolar-se: abandonou o divertimento da pesca, arrumou as linhas no sótão e já não quer ir ao Círculo Vital: está aniquilado...

Eu não queria que se atormentassem muito e queria que se resignassem com a vontade de Deus: se Ele achasse que sou muito útil na terra, certamente não permitiria que eu tivesse tal doença, visto ter lhe pedido tanto que não me levasse deste mundo enquanto fosse necessária para as minhas filhas.

Agora Maria já está crescida, possui um caráter sério, e não tem nenhuma das ilusões próprias da juventude. Tenho certeza de que quando eu não estiver mais aqui, ela será uma boa dona de casa e fará todos os esforços para educar bem as irmãzinhas e para lhes dar bom exemplo. Paulina também é encantadora, mas Maria tem mais experiência e, além disso, uma grande influência sobre as irmãzinhas. Celina mostra as melhores disposições: deverá ser uma criança muito piedosa, na idade dela é muito raro mostrar tanta inclinação para a piedade. Teresa é um verdadeiro anjo. Quanto a Leônia, só Nosso Senhor a pode mudar, e tenho certeza de que o fará...

Quando eu não mais existir, serão muito felizes por terem-na. Peço que você as ajude com seus conselhos e, se tiverem a desgraça de perder o pai, você as levará para sua casa, não é verdade?

Consola-me muito pensar que tenho parentes que vão nos substituir com vantagem em caso de infelicidade. Há pobres mães bem mais infelizes do que eu, porque não sabem o que será dos filhos e os deixam em dificuldades, sem qualquer auxílio. Eu, por esse lado, não tenho nada a temer. Enfim, não vejo as coisas muito negras, é uma grande graça que o Senhor me concede... (Carta de Zélia a sua cunhada, de 17 de dezembro de 1876)

O câncer avançava pelo corpo já fragilizado de Zélia. Numa visita que fez à sua irmã no mosteiro das visitandinas de Mans, Zélia assistiu à morte de uma monja santa. Reavivou em seu coração o desejo pela vida monástica. Percebeu todo o peso da responsabilidade de ser mãe, sentiu medo de deixar as filhas ainda meninas sem um arrimo. Apesar do pavor que a morte causava, Zélia soube olhá-la com serenidade, olhos

nos olhos, e viu com clareza que a eternidade era maravilhosa, significava estar sempre ao lado de Deus, a quem tanto amava.

Nessa mesma época, a notícia das aparições de Nossa Senhora em Lourdes se espalhava por toda a França. Bernadete, a menina pobre escolhida por Maria para ser a anunciadora de uma de suas verdades mais belas, já era reconhecida pela sua sinceridade e honestidade. A pequena cidade de Lourdes havia se tornado alvo de peregrinações. Os doentes iam até lá para mergulhar nas águas frias do Gave e assim recuperarem a saúde. Amigos, parentes e o próprio Luiz Martin animavam Zélia a fazer esta viagem de peregrinação e súplica a Maria. Embora, diferentemente do marido, tivesse aversão a viagens, Zélia não podia deixar de fazer a peregrinação; logo, iniciou seus preparativos. Numa carta a Paulina, sua filha amada que estava no colégio das visitandinas, ela escreve:

É impossível que a Santíssima Virgem não se deixe comover. Se ela visse sua carta, Paulina! Enche-me de confiança. Não, o céu nunca ouviu nem ouvirá orações mais fervorosas, nem fé mais viva. E depois, tenho a minha irmã no céu e há de interessar-se por mim; tenho também os meus quatro anjinhos que hão de pedir; todos eles estarão conosco em Lourdes. (Carta de Zélia à Paulina, de 22 de março de 1877)

A viagem foi difícil, dura, sem conforto, mas tudo foi aceito com amor. Zélia e as filhas Paulina, Maria e Leônia chegaram a Lourdes felizes e ansiosas por receberem a graça da cura. Chegando a cidade, encontraram comida ruim, pousada ruim e, principalmente, uma organização ruim. Zélia sentiu-se mais sofrida, não tanto por ela, mas por suas filhas.

Quando cheguei à gruta, tinha o coração tão apertado que nem conseguia rezar. Durante a missa conservei-me junto do altar, mas estava tão prostrada que não pude dar atenção a nada. Saí num estado de completo aniquilamento e dali dirigi-me à piscina. Olhei, apavorada, para aquela água friíssima e para aquele mármore frio como a morte. Mas não houve remédio senão decidir-me, e lancei-me com coragem. Sim, mas... quase sufoquei: tive que me retirar logo, devia ter entrado mais devagarinho. (Carta de Zélia ao irmão e à sua cunhada, de 7 de junho de 1877)

Mergulhei quatro vezes na piscina, a última vez, duas horas antes de vir embora. Tinha água gelada até o pescoço, mas não estava tão fria como pela manhã. Conservei-me ali mais de quinze minutos, esperando sempre a cura de Nossa Senhora. Enquanto estava lá não sentia dores, mas logo que saía começavam outra vez a atormentar-me, como de costume. (Carta de Zélia ao irmão e à sua cunhada, de 24 de junho de 1877)

A esperança da desejada cura não aconteceu, mas mesmo assim Zélia não se revoltou. Tentou acalmar as filhas e, um tanto desiludidas, voltaram para Alençon, felizes por retornarem à casa onde Luiz as esperava.

Sem murmurar, Zélia seguiu o seu calvário, carregando com dignidade, junto com familiares e parentes, a sua cruz. Aceitou tudo com plena confiança de que Deus sempre cuidaria dela e, depois de sua morte, cuidaria de suas filhas e de seu marido.

Teresinha nos narra a morte de sua mãe:

A comovente cerimônia da extrema-unção imprimiu-se também em minha alma. Ainda vejo o lugar onde eu estava, ao lado de Celina, [as cinco] por ordem de idade e o pobre pai ali, soluçando…

No mesmo dia ou no dia seguinte à partida de mamãe, pegou-me no colo e disse: “Venha beijar uma última vez sua pobre mãezinha”. Sem nada dizer, aproximei meus lábios da testa de minha mãe querida… Não me lembro de ter chorado muito, não falava com ninguém dos sentimentos profundos que eu tinha… Olhava e ouvia em silêncio… Ninguém tinha tempo para ocupar-se de mim, por isso, via muitas coisas que queriam esconder. Certa hora, encontrei-me diante da tampa do caixão… parei muito tempo para olhá-lo, nunca tinha visto um, mas compreendia; eu era tão pequena que, apesar da pouca altura de mamãe, era obrigada a levantar a cabeça para ver a parte de cima e parecia-me muito grande… muito triste… Quinze anos depois, encontrei-me diante de outro caixão, o de Madre Genoveva. Tinha o mesmo tamanho que o de minha mãe e vi-me de novo nos dias da minha infância!… Todas as minhas recordações voltaram juntas. Era a mesma Teresinha que olhava, mas tinha crescido e o caixão parecia- lhe pequeno. Ela não precisava mais erguer a cabeça para vê-lo, só a levantava para contemplar o céu, que lhe parecia muito alegre, pois todas as suas provações tinham chegado ao fim e o inverno da sua alma tinha ido embora para sempre… (MA 12v).

Em Lisieux

A

pós a morte de Zélia, Luiz se viu sozinho e sem direção para conduzir a família sem a presença da esposa. A morte da mãe sempre desestabiliza uma família.

Zélia confiava muito em seu irmão, Isidoro, que era farmacêutico em Lisieux, por essa razão o farmacêutico toma a iniciativa de cuidar com afinco da família Martin. Mas, primeiramente, foi preciso convencer Luiz de que o melhor para a educação das suas filhas seria mudarem-se para a cidade onde Isidoro morava. O cunhado argumentou que se Luiz e as filhas se mudassem para Lisieux, ele estaria perto da família, servindo de apoio. Além disso, as meninas se sentiriam bem com a tia e com as primas. Todos esses motivos, embora não convencessem muito Luiz Martin, acabaram sendo aceitos, porque este também era o desejo de Zélia.

Para as crianças é mais fácil adaptar-se a mudanças, mas para uma pessoa com quase sessenta anos, é difícil ser desenraizada e transplantada para outro lugar. Alençon era repleta de lembranças para Luiz, onde tinha trabalho, amigos, ia à igreja, à pesca... Tudo isso representava seu centro, seu lugar. Mas, para o bem das filhas, era preciso que ele se desapegasse de tudo.

Tomada a decisão, foi iniciada a procura por uma casa que fosse digna da “família real” Martin. Nada melhor que um chalé que não fosse longe nem da farmácia de Isidoro nem da igreja. Deveria ter uma boa vista, um bom pedaço de terreno, com jardim para as crianças brincarem e um terraço onde Luiz pudesse construir seu eremitério imaginário para ficar contemplando o horizonte, lendo e meditando no silêncio e com sossego. Por fim, o local escolhido para a nova morada foi os Buissonnets, que em português significa “pequeno bosque”. Era um lugar cheio de flores, árvores, pássaros, e que apesar de não ser afastado da cidade, era um recanto silencioso e cercado de privacidade. Porém, antes da mudança, era necessário deixar muita coisa em ordem. Havia a administração dos negócios da pequena empresa de Zélia, a relojoaria, muitas coisas das quais a família precisava se desfazer. Era necessário também se refazer psicologicamente da morte de mamãe Zélia.

No dia 14 de novembro de 1877, mudaram-se para Lisieux.

Joana fizeram de tudo para agradá-las, assim poderiam esquecer Alençon e perceberiam que Lisieux, afinal, seria bem melhor para elas. A única que gostou de sair de Alençon foi Teresinha. Ela mesma o diz em História de uma Alma:

Não fiquei contrariada ao deixar Alençon. As crianças gostam de mudança e foi com prazer que vim para Lisieux. Lembro-me da viagem, da chegada à noite à casa da minha tia. Ainda vejo Joana e Maria esperando-nos à porta… Estavam muito felizes por ter priminhas tão gentis. Gostava muito delas, assim como da minha tia e, sobretudo, do meu tio. Só que ele me inspirava medo e eu não ficava à vontade na casa dele como ficava nos Buissonnets. Ali é que minha vida era verdadeiramente alegre… (MA 13v).

Em Lisieux tudo era próximo: a igreja, a casa de tio Isidoro... Tudo era bonito e havia inclusive o Carmelo, que posteriormente se tornou o tesouro mais amado pela família Martin, à medida que as filhas começaram a migrar dos Buissonnets para o “pombal da Virgem Maria”, como Teresa de Ávila gostava de chamar os Carmelos.

Organizar a vida nos Buissonetts não foi fácil, mas Luiz, com sua paciência e amor, e com a ajuda das filhas mais velhas, começou a dar rumo e sentido a todas as coisas. Ele era a única referência para suas filhas. Acabou tornando-se seu formador por excelência, cuidando de todos os detalhes que faziam parte do dia a dia das meninas, como a vestimenta, comida, formação intelectual, a vida cristã. O futuro das filhas que tanto amava dependia dos seus ensinamentos. A presença invisível, mas sentida, de Zélia era para todos um incentivo: não era raro que se dissesse “a mamãe faria ou fazia assim...”.

Não recebiam muitas visitas. A casa era frequentada pelo tio Isidoro, algum padre e pelas empregadas, que eram tratadas como se fizessem parte da família. Luiz pedia que suas criadas fossem bem tratadas, e mesmo quando estava longe recomendava à sua filha Maria que cuidasse bem delas e não esquecesse de pagá-las no dia certo. Elas eram testemunhas de que família como aquela era algo raro de se encontrar.

Como já mencionado, papai Luiz se preocupava com a educação das filhas. Era ele quem as levava à igreja, quem lia a vida dos santos para elas, quem lhes ensinava a rezar, acompanhava-as à escola e queria se inteirar de tudo para saber qual era o progresso das garotas nos estudos. As meninas tinham uma rotina de estudos pesada. Saíam de casa por volta das oito horas da manhã e voltavam somente às seis da tarde. Teresinha não gostava muito de ir à Abadia e nem de estudar, preferia estar em casa ao lado do pai, sendo mimada pelas irmãs. A própria Teresinha nos conta:

Eu tinha 8 anos e meio quando Leônia saiu do internato e fui substituí-la na Abadia. Muitas vezes ouvira dizer que o tempo passado no internato era o melhor e o mais doce da vida. Não foi assim para mim. Os

cinco anos que lá passei foram os mais tristes. Se não tivesse comigo minha querida Celina, não teria conseguido ficar um único mês sem adoecer… A pobre florzinha fora acostumada a mergulhar suas raízes em terra de escol, feita sob medida para ela, por isso pareceu-lhe muito difícil ser transplantada em meio a flores de toda espécie, de raízes frequentemente pouco delicadas, e ver-se obrigada a encontrar numa terra comum a seiva necessária à sua subsistência…

Ensinastes-me tão bem, Madre querida, que ao chegar ao internato eu era a mais adiantada das crianças da minha idade. Fui colocada numa classe de alunas todas superiores a mim em tamanho. Uma delas, com 13 ou 14 anos, era pouco inteligente, mas sabia impor-se às alunas e até às mestras. Vendo-me tão nova, quase sempre a primeira da turma e querida por todas as religiosas, sentiu, sem dúvida, uma inveja bem perdoável numa interna e fez-me pagar de mil maneiras meus pequenos êxitos…

Com minha natureza tímida e delicada, não sabia defender-me e contentava-me em chorar sem nada dizer, não me queixando, nem a vós, do que eu sofria. Não tinha virtude bastante para elevar-me acima dessas misérias da vida e meu pobre coração sofria muito… Felizmente, toda noite, reencontrava o lar paterno e então meu coração se alegrava. Pulava no colo do meu rei, contava-lhe as notas recebidas, e seu beijo fazia-me esquecer todas as aflições… Quanta alegria ao anunciar o resultado da minha primeira redação [uma redação sobre História Sagrada], só faltava um ponto para ter o máximo, não tendo sabido o nome do pai de Moisés. Era a primeira e trazia uma bela medalha de prata. Para recompensar-me, papai me deu uma bonita moedinha de quatro centavos que coloquei numa caixa destinada a receber, quase toda quinta- feira, nova moeda sempre do mesmo tamanho… (era nessa caixa que me abastecia quando, por ocasião de algumas festas maiores, eu queria dar uma esmola pessoal, fosse para a propagação da fé ou outras obras semelhantes). Maravilhada com o êxito da sua aluninha, Paulina deu-lhe de presente um belo bambolê, para encorajá-la a continuar sendo estudiosa. A coitadinha precisava realmente dessas alegrias familiares; sem elas, a vida de interna teria sido árdua demais para ela (MA 22v).

Santa desobediência

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