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4. ALGUMAS CONCLUSÕES 1 S UÁREZ VERSUS D URANDO

4.3. I MANÊNCIA DO ATO COGNITIVO E AMPLITUDE DA VERDADE FORMAL

A consideração da intencionalidade da conformidade em que consiste o ato cognitivo implica desde logo que este é uma qualida- de intrínseca da potência cognitiva. Suárez demarca-se também neste aspecto da posição de Durando que prescinde da mediação da espécie intencional no ato cognitivo. A concepção nominalista do conhecimento verdadeiro introduz uma efetiva cisão entre o conhe- cimento do singular material e o do universal. Inversamente, Suárez sublinha que a forma, sensível ou inteligível, é a mesma no ato cognitivo, tal como se encontra in esse rei: a forma que está no conceito objetivo e no conceito formal é a mesma que está no ente existente como tal. O instrumento pelo qual a forma se transforma

49 DM VIII, III, 7: «(….) tal como se diz verdadeiro ouro o que tem a natureza

própria do ouro, também se diz verdadeiro conceito de ouro o que tem uma enti- dade medida em conformidade com o verdadeiro ouro na representação intenci- onal, e o mesmo acontece com o demais. E daqui também é evidente o que é ou qual é esta verdade que se encontra na simples notícia da mente; de facto, não é outra coisa do que a própria verdade transcendental, acomodada àqueles entes. De facto, se a verdade que chamam “do ente” é uma paixão adequado do ente, como em cada um dos entes se encontra segundo o modo da sua natureza; por- tanto, também neste entes que são simples conceitos da mente. Daí que, porque o ser próprio destes conceitos é o ser do conhecimento e consequentemente formalmente tornam cognoscente aquele no qual inerem, a verdade de tais con- ceitos é também a verdade do conhecimento».

50 Uma análise da intencionalidade cognitiva em Suárez, baseada essenci-

almente no texto do Comentário ao De Anima pode ler-se em T. Aho, «Suárez on Cognitive Intentions», in P.J.J.M. BAKKER – J.M.M.H. THIJSSEN, (eds.): Mind, Cog- nition and Representation. The Tradition of Commentaries on Aristotle's De ani- ma, Ashgate Studies in Medieval Philosophy, Ashgate 2007, pp. 179-203.

em conceito é a espécie intencional51. Ela é de facto uma qualidade do ato cognitivo, precisamente a qualidade de ser verdadeiro.

A perfeição absoluta ou entidade do intelecto reside, como ficou dito, na virtude intelectual ou disposição para a verdade. Suárez de- fende que há uma efetiva posse intrínseca da forma da coisa no in- telecto, mediante a representação intencional ou conceito que resul- ta do facto de o ato cognitivo realizar a união ou conformidade com a coisa conhecida.

A doutrina da DM VIII Secções I e II completa-se, e torna-se de facto mais compreensível, à luz da exposição dos Comentários ao De Anima e, em concreto, da doutrina da Disputação V, na qual Suárez discute a natureza do conhecimento. A definição e essência das espécies intencionais e a sua função mediadora na produção do conceito estão aí em análise. O termos ‘espécies intencionais’ é explicado deste modo: «Espécies por serem formas representativas; intencionais, não porque não sejam entes reais, mas porque estão ao serviço [deserviunt] do conceito que costuma chamar-se inten- ção»52. A forma do ser das coisas torna-se forma representativa mediante a função vicária e instrumental das espécies53. Por elas se realiza a união do objeto cognoscível com a faculdade de conhecer. Sem esta união não há conhecimento54. Em todas as faculdades, insiste Suárez, dão-se espécies dos objetos cognoscíveis com o fim exclusivo de unir o objeto cognoscível à faculdade, e esta união é necessária pois sem ela não há conhecimento55. Quando o objeto

51 Na terminologia do Comentário ao De Anima, as species intentionales,

sensibiles vel inteligibiles (Commentaria, disp. V, q.1, n.2, 2). Tais espécies são ‘quasi instrumenta quaedam per quae communiter obiectum cognoscibile unitur potentiae cognoscitivae” (Ibid., q.2. n. 1, 2).

52 F. Suárez, Comentário ao De Anima, Disp. V, q. 1, p. 287.

53 F. Suárez, Comentário ao De Anima, Disp. V, q. 2, § 21: «Istas species in-

tentionales sunt simlitudines formales obiectorum (…). Nam species ponitur in potentia, ut suppleat vicem obiecti».

54 Cf. Ibid., p. 287. A posição de Durando et alt., que rejeita a mediação das

espécies, exposta logo no §1, da q.1, e criticada do seguinte modo: «o que acima de tudo pretende esta opinião é escapar às dificuldades que surgiriam acerca do modo como se produzem as espécies inteligíveis». A discussão das teses de Du- rando e a sua rejeição é frequente ao longo da DisputaçãoV do De Anima.

está unido à faculdade mediante a espécie, isso significa que ne- cessariamente a espécie é intrínseca à faculdade cognitiva.

Suárez explica na DM VIII que estas formas representativas são acidentes, no ato cognitivo. Não são idênticas à faculdade, nem lhe acrescentam qualquer perfeição. São entes reais, pois de contrário não teriam existência56. Mas não são nenhuma substância ou algo absoluto que se acrescente à faculdade cognitiva. São uma quali- dade intrínseca do ato, que não se identifica com ele, mas que está nele como acidente57. Suárez esclarece que a distinção entre forma representativa (ou espécie intencional) e faculdade cognitiva é ape- nas formal, pois as espécies não alteram a faculdade no seu ser na- tural.

Assim, o ato cognitivo de facto é uma perfeição imanente e sub- jectiva da faculdade de conhecer. Nele, distinguem-se três elemen- tos, todos eles intrínsecos ao sujeito cognoscente: a espécie inten- cional ou forma representativa (sensível ou inteligível), o próprio ato cognitivo (onde se encontra a verdade formal, quando aquela espé- cie se une à faculdade) e o hábito ou virtude intelectual, onde se encontra a verdade radical ou fundamental, na distinção operada por Suárez.

Um outro ato imanente da faculdade cognitiva é a produção do juízo. Suárez elabora também aqui uma distinção entre o juízo sim- ples e o juízo complexo. Esta distinção enfatiza a relação que Suá- rez defende que o ato cognitivo tem com o real concreto, captando o singular material. Suárez considera que a apreensão é já um ato judicativo, se bem que simples. Di-lo claramente na DM VIII, Secção III, § 7, reiterando quase literalmente a doutrina do Comentário ao De Anima, Disp. V, q. 6, §§ 1-7.

56 Ao afirmar que as espécies são entes reais e não ficções, Suárez tem em

vista a crítica à exigência de Tomas de Aquino sobre a função das imagens e da phantasia no ato cognitivo. DM V, q. 1, § 8, p. 297: «(…) negamos que estas es- pécies sejam ficções. Elas são um certo tipo de entes reais».

57 Esta tese é amplamente debatida na DM VIII, Secção I, e encontra-se ex-

posta de também em De anima, disp. V, q. 2, § 4. Há uma grande proximidade entre ambos os textos, que se pode verificar também em outras passagens, o que permite supor que Suárez teria presente o Comentário ao De Anima, ao re- digir ao menos a DM VIII.

Com relação à apreensão, explica que a mera recetividade por parte das faculdades cognitivas, da espécie intencional, não é apre- ensão, pois a faculdade, enquanto recebe a espécie, nada conhece. Não se pode falar, por conseguinte, de apreensão. Ora, é por meio da apreensão que a coisa se torna, vitalmente concebida e conhe- cida58. A apreensão é definida como a elaboração ou concepção vi- tal que leva a efeito a faculdade cognitiva, e pode ser simples ou combinada. Por sua vez, Suárez apresenta uma definição de ‘juízo’ que coincide expressamente com a apreensão. Apoiando-se na au- toridade de Santo Agostinho e de outros, distingue dois sentidos de juízo. Um primeiro, sumi latissime, ‘na medida em que significa me- ramente a concepção da coisa tal como vem representada pela es- pécie’. O juízo assim entendido não se distingue da apreensão. Um segundo, proprie et stricte, ‘quando, verificada a comparação de um com outro, a faculdade julga que é ou não é assim’.

O exercício da visão (a visão in actu exercito) – o ato de ver a brancura, por exemplo – implica a formação, no olho, do conceito de branco, e no mesmo ato julga ‘o que vejo é branco’59. Esta extensão feita por Suárez da atividade judicativa à apreensão e à transforma- ção, ao nível da representação sensível, da coisa em conceito, im- plica conceder um certo grau de inteligibilidade à representação sensível e à cognição por meio das espécies intencionais sensíveis. Esse facto, amplia a atividade judicativa – enquanto ato imanente de simples apreensão – ao domínio da vida irracional, por um lado, e por outro, aproxima a atividade cognitiva humana, desde o nível

58 Cf. Com. De anima, Disp. V, q. 6, §2. Prossegue o texto: «(…) post istam

autem receptionem sequitur actus, quo res vitaliter concipitur [et cognoscitur], et ille actus dicitur apprehensio, hinc denominatione sumpta, quod potentia concipit res, quasi trahendo illas, et ideo illa conceptio apprehensio dicitur». A apreensão é descrita no § 5 ‘ quasi tractio quaedam rei cognitae ad potentiam’. A metáfora usa o verbo latino fero, fers fere…: conceber as coisas é “como que arrastá-las” para o interior da cognição mediante a espécie intencional. Esse ato designa-se apreensão.

59 F. Suárez, Comentário ao De Anima, Disp. V, q. 6, § 10, p. 422: «(…) In

omnibus sensibus potest esse simplex apprehensio et iudicium primo modo, illud scilicet quod in actu cognitionis intrinsece imbibitur».

mais elementar da representação sensível, à atividade espiritual própria do intelecto60.

Uma vez identificada a apreensão e juízo, a dificuldade maior, como reconhece Suárez é explicar a natureza da composição e di- visão em que consiste o raciocínio. Basicamente, Suárez considera que a apreensão tem de ser um ato composto, ou relacional. A rea- lidade conhecida na representação intencional é sempre composta e por isso o conhecimento que dela resulta é um composto. Os exemplos dados esclarecem esta doutrina: o muro e ‘a brancura do muro’ são conhecidos em simultâneo. Por isso, quando conheço o singular material ‘muro’, conheço-o sob a forma ‘o muro é branco’. Trata-se de um conhecimento sempre verdadeiro, mesmo que pos- sa ser confuso. Então, o que compete à atividade judicativa stricto sensu? Determinar a verdade ou falsidade da apreensão ‘o muro é branco’, pela verificação, por meio de raciocínio, da verdade for- malmente contida na apreensão. É por isso que Suárez amplia o domínio da verdade formal, não o restringindo à composição e divi- são própria do raciocínio, mas também ao conceito formal e à apre- ensão.

60 Não se trata de postular a racionalidade nos animais mas sim de afirmar

no conhecimento de apreensão um domínio de ação imanente que permite ‘co- mandar’ a atividade externa em função do conhecimento adquirido. Cf. Ibid., Disp. V, q. 6, § 13, p. 425.

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