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QUE SIGNIFICA VERUM NO CONHECIMENTO? O CONCEITO DE VERITAS COGNITIONIS NA DISPUTAÇÃO VIII, SECÇÕES I E II

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PAULA OLIVEIRA E SILVA*

QUE SIGNIFICA ‘VERUM’ NO CONHECIMENTO? O CONCEITO DE VERITAS COGNITIONIS NA DISPUTAÇÃO

VIII, SECÇÕES I E II

1. O DEBATE SOBRE A VERDADE DO CONHECIMENTO, NO CONTEXTO DA DISPUTATIO VIII

A questão acerca da natureza e definição da verdade é uma das mais inquietantes que ocupa o espírito humano. Esse facto es-tará porventura entre as razões que explicam que tal investigação seja um tópico central de toda a filosofia ocidental.

Aqui apenas queremos analisar o tratamento dado à questão por Francisco Suárez na primeira parte da Disputatio metaphysicae VIII, onde trata a verdade como passio entis, isto é, como proprie-dade comum do ente. O amplo debate que aí leva a efeito pode di-vidir-se em duas partes. Uma primeira, na qual discute o que é a verdade enquanto propriedade do intelecto desde o ponto de vista metafísico, que ocupa as Secções I a IV da referida Disputação; e uma segunda, na qual discute o transcendental verum enquanto propriedade comum e fundamental de todo o ente, que ocupa as Secções VII e VIII da mesma Disputação. As secções V e VI inda-gam respetivamente se a verdade do conhecimento está apenas no intelecto especulativo ou também no prático e se ela está do mesmo modo na divisão e na composição. O debate acerca do cerne da questão sobre a verdade como transcendental do ente, como o pró-prio Suárez indica, ocupa a Secção VII, pois aí se explica de que modo a verdade é propriedade do ente, e a ela se ordena tudo o que anteriormente é exposto1. Finalmente, a Secção VIII indaga se

* Faculdade de Letras da Universidade do Porto – GFM.

1 DM VIII, VII, 1: «Vtrum veritas aliqua sit in rebus quae sit passio entis.

Haec quaestio est praecipue intenta in hac disputatione, nam ad explicandam ve-ritatem entis reliqua praemisimus».

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a verdade se diz principalmente da verdade do conhecimento, mais do que das coisas, e de que modo.

Num debate sobre metafísica poderia parecer estranho encon-trar uma análise sobre o conceito de verdade. Suárez justifica o fac-to recorrendo à aufac-toridade de Aristóteles, no Livro II da Metafísica. Esta ciência ocupa-se das causas da verdade e, por isso, faz senti-do, tratar no seu âmbito, esta propriedade do ente. Por sua vez, causa talvez mais estranheza que Suárez nas primeiras seis sec-ções da Disputação VIII trate, em contexto metafísico, da verdade do conhecimento2. O facto justifica-se em função do próprio objeto de estudo aí considerado. Trata-se de estudar a verdade em sentido formal (in actu signatu, segundo a expressão escolástica), «(…) in-vestigando o que é a própria verdade nas coisas e quantos tipos há, e de que modo se compara com o ente». Dentro desta indagação, identificam-se três lugares de manifestação da verdade – na signifi-cação, no conhecimento e no ser –, aos quais correspondem três disciplinas: a dialética, a física e a metafísica.

Dado que o objeto desta Disputação é analisar a verdade como passio entis, pareceria lógico atender apenas ao terceiro tipo de verdade enunciado, a veritas in essendo. Porém, Suárez considera que, havendo verdade, e verdade real (isto é, própria de uma

2 A tradução da expressão veritas cognitionis causa alguma dificuldade. O

termo ‘conhecimento’, que traduz cognitio, conota-se na linguagem contemporâ-nea com o conjunto do saber adquirido ou com o resultado sistemático da apren-dizagem de uma determinada área de saber ou ciência. Por exemplo, falamos de ‘sociedade do conhecimento’, identificando conhecimento com ciência acumula-da. Pelo contrário, com o termo veritas cognitionis Suárez indica a verdade como propriedade essencial do ato cognitivo. A expressão que, a nosso ver, mais se aproxima do que o autor quer expressar é exactamente ‘verdade da cognição’. Porém, por inusual, ela pode causar uma certa estranheza no leitor. Optamos por isso por nos referir ao assunto em análise com a expressão ‘verdade do conhe-cimento’ ou por ‘verdade do ato cognitivo’. A expressão ‘verdad lógica’ que surge na edição de Madrid, no título das Secções, depois traduzida, no interior das mesmas, por ‘verdad del conocimiento’, parece-nos passível de equivocidade, pois aqui não se trata de uma análise da verdade do ato cognitivo no âmbito da Dialética ou Lógica, nem mesmo apenas como ato de composição e divisão, mas da análise que concorrem como elementos do ato cognitivo de forma a nele se produzir a verdade, a qual será propriedade comum em todo ato cognitivo verda-deiro, alcançando, por isso, a universalidade da definição e a comunidade do transcendental.

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sência apta para existir, pois esse é o sentido suareziano de reali-tas) em cada um destes tipos de verdade – e não obstante ciências particulares, como a dialética e a física, se ocuparem dos dois pri-meiros modos –, todos estes domínios devem ser aqui objeto de análise, pois em todos eles se manifesta a verdade e, na medida em que a especificidade de cada um ficar definida, melhor se com-preenderá o que é a verdade como propriedade dos entes.

Portanto, nesta Disputação, Suárez primeiramente ocupa-se da definição de verdade em sentido formal e toma como ponto de par-tida a análise da definição que diz ser admipar-tida consensualmente: «(…) suporemos, a partir do sentir comum, que a verdade real con-siste numa certa adequação ou conformidade entre a coisa e o inte-lecto, quer seja a conformidade do intelecto com a coisa, quer da coisa com o intelecto»3. Ao assumir esta definição como ponto de partida para analisar o conceito de verdade como passio entis, Suá-rez estabelece imediatamente a conexão entre verdade dos entes e verdade do ato cognitivo. Por isso, a doutrina das secções I a VI da Disputação VIII entra em estreita ligação com as teses expostas no âmbito da Disputação V, do seu Comentário ao De Anima de Aristó-teles, De potentiis cognoscitivis in commune4.

Não nos é aqui possível realizar uma análise comparativa dos dois textos. Porém, cabe evidenciar dois aspectos que ressaltam de imediato da leitura deles. Em primeiro lugar, o facto de que, não obstante o primeiro ser um texto de juventude e distar da redação do segundo cerca de 15 anos, a doutrina suareziana acerca da na-tureza do conhecimento humano mantém-se, no essencial, inaltera-da. Em segundo lugar, o facto de, em ambos, o debate doutrinal se estabelecer entre a tese tomista acerca da verdade como

3 DM VIII, Proemio.

4 Cf. F. SUÁREZ, De anima disp. V. Ed. S. CASTELLOTE, Fundación Xavier

Zu-biri, Madrid 1991, vol. 1, tomo 2, pp. 283-451. A disputação trata das potências cognitivas em geral, divide-se em sete questões. Juntamente com a disp. IX, que trata da faculdade intelectiva, e em particular, das suas quatro primeiras ques-tões (Cf. F. SUÁREZ, De anima disp. V. Ed. S. CASTELLOTE, cit., vol. 1, tomo 3, pp

62-161), é possível obter uma visão correcta acerca do modo como Suárez con-cebe o processo cognitivo humano, para além da posição que assume frente às teses em confronto, nomeadamente à posição de Durando.

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dade e a interpretação de Durando elaborada com base no texto tomista.

O que principalmente interessa a Suárez no debate destas te-ses divergentes é salvaguardar o princípio da verdade como con-comitância com um objeto realmente distinto do intelecto, i.e., a exi-gência de um ente real além do intelecto, para que haja verdade formal. Suárez considera ser esta a intenção de Tomás de Aquino nas definições em causa. Não é, por conseguinte, um debate entre nominalismo e realismo que está aqui diretamente em análise, mas a defesa de uma tese do doutor angélico que assegura de facto à verdade do conhecimento a relação com entidades extra-mentais. Aquele debate entre doutrinas divergentes não deixa de estar no horizonte, mas não é referido explicitamente, mostrando-se apenas, por via da argumentação, que a conformidade que preserva a enti-dade real do objeto cognitivo é mais conforme à natureza do conhe-cimento humano. Cabe perguntar por que razão Durando é o autor em confronto. A razão pode ser encontrada num motivo externo, que tem origem na organização das cátedras de ensino nas univer-sidades de Salamanca e Coimbra no século XVI. De facto, existiam duas cátedras onde as correntes nominalistas eram ensinadas, a saber, a cátedra de Durando e a de Gabriel. São precisamente es-tes os autores – Durando, em ambos os textos, Gabriel Biel estando mais presente no comentário ao De anima – que Suárez confronta, indicando ainda aqueles que, dentro da tradição tomista de comen-tário, defendem as mesmas teses.

Aqui expõem-se essencialmente as teses em debate na Dispu-tação VIII, secções I e II, pois são as que permitem compreender a definição formal de verdade defendida por Suárez. Na conclusão far-se-á uma aproximação às teses da Disputação V do Comentário ao De Anima, de modo a ampliar a compreensão do conceito sua-reziano de verdade do conhecimento e, sobretudo, a evidenciar, quanto nos seja possível, a importância conferida por Suárez ao princípio de intencionalidade.

2. A DEFINIÇÃO DE VERDADE FORMAL

Assumindo, com base na definição tomista (recolhida, como é sabido, de Isaac Estrela), que a verdade é conformidade ou

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ade-quação, a questão que se coloca é a de saber em que consiste esta adequação. Dito de outro modo: que tipo de res é a verdade? Suá-rez centra o debate na definição dada por Tomás de Aquino na Su-ma Contra os Gentios, I, c. 59, onde se lê:

«De facto, dado que a verdade do intelecto é a adequação do intelecto e da coisa, segundo a qual o intelecto diz que é o que é ou que não é o que não é, a verdade do intelecto pertence àquilo que o intelecto diz e não à operação pela qual o diz. Pois para a verdade do intelecto não se exige que o próprio entender se adeqúe à coisa, uma vez que a coisa é apenas material e o entender, pelo contrário, é imaterial: mas é neces-sário que aquilo que o intelecto, inteligindo, diz e conhece, seja ade-quado à coisa, de tal modo que isso esteja na coisa tal como o intelecto diz»5.

Suárez expõe uma primeira opinião, que atribui a Durando de Saint Pourçaint. Este teria afirmado, com base no referido texto To-mas de Aquino, que a adequação em que consiste a condição for-mal da verdade se dá entre a coisa e o conceito objetivo6 da coisa7.

5 Tomás de Aquino, Summa contra gentiles, I, c. 59: «Cum enim veritas

intellectus sit adaequatio intellectus et rei, secundum quod intellectus dicit esse quod est vel non esse quod non est, ad illud in intellectu veritas pertinet quod intellectus dicit, non ad operationem qua illud dicit. Non enim ad veritatem intellectus exigitur ut ipsum intelligere rei aequetur, cum res interdum sit materialis, intelligere vero immateriale: sed illud quod intellectus intelligendo dicit et cognoscit, oportet esse rei aequatum, ut scilicet ita sit in re sicut intellectus dicit». (nossa tradução).

6 A distinção escolástica entre conceito objetivo e conceito formal é

funda-mental nas Disputações Metafísicas de Suárez, em concreto para a compreen-são do conceito suareziano de ente. Ela é igualmente essencial na definição sua-reziana de verdade, ao menos tal como é debatida nesta Disputatio. A. Poncela, no estudo publicado neste Volume «Ens realis et realitas objectalis: La determi-nación suareciana del objeto de la Metafísica», p. 81, define com clareza estas noções, permitindo compreender a distinção entre eles: «(…) El primero [concei-to formal] dice relación al ac[concei-to del entendimien[concei-to mediante el cual se concibe y se representa una cosa. El segundo [conceito objectivo], a la cosa misma que es conocida a través del concepto anterior. (…) Mientras que el concepto formal es una verdadera cualidad inherente al entendimiento, el objetivo no siempre es un concepto verdadero, puesto que es posible concebir cosas que solo tienen reali-dad mental. Igualmente, ambos conceptos se diferencian en que el primero, en cuanto es algo producido por la mente e inherente a ella, es singular o individual, en cambio, el objetivo puede ser también un concepto común, o confuso como el de “hombre”, “sustancia”, etc.». John Doyle expõe também de um modo claro

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es-Suárez faz um elenco das razões de Durando. Não pode haver conformidade entre a coisa e o intelecto, pois trata-se de realidades diferentes, dado que muitas vezes a coisa a conhecer é material e o intelecto é imaterial. A conformidade não pode dar-se no ser real. Por isso, a verdade não está no entendimento como na coisa, mas apenas como no ser representacional e objetivo da coisa. O mesmo é dizer que no entendimento não se dá a verdade das coisas, mas apenas a da representação das coisas. Portanto, a verdade, for-malmente considerada é a que se dá entre estas e a representa-ção8.

Segundo esta opinião, que se passa, então, no intelecto? Nele dá-se o verum qua vero, não a verdade como conformidade à coi-sa9. O intelecto julga objetos tidos por verdadeiros enquanto surgem no seu interior, mas não julga a conformidade dos objetos com o real. A verdade é, no intelecto, uma propriedade da relação que es-te elabora entre objetos, medianes-te o exercício proposicional. O acordo dos objetos com as coisas de que são objetos – a verdade formal entendida como adaequatio ou conformidade – antecede a verdade do intelecto e difere essencialmente dela. Aquela é

ta distinção, na Introdução à edição que preparou das Disputationes XXVIII e XXIX: «[according to Suárez’ Disputatio II] the object of metaphysic is ‘being inso-far as it real being’. Explaining this (…) he uses two distinctions already familiar to Scholastic authors. The first is between the formal concepts as an act of the mind and the objective concept as what it immediately the object of that act. This latter may be an individual thing or some common feature (ratio) of things. It may, fur-ther, be something mind-independent, whether actual or possible, or it may be something merely objective or mind-dependent». F. SUÁREZ, The Metaphysical Demonstration of the Existence of God. Metaphysical Disputations XXVIII-XXIX, ed. e trad. J. DOYLE, Saint Augustine’s Press, South Bend (Indiana) 2004, p. xii.

7 DM VIII, I: «(…) a verdade é a conformidade do intelecto com a coisa, isto

é, a conformidade do conceito objetivo do intelecto que enuncia, com a coisa se-gundo o ser real dela». (Itálico nosso).

8 J.F. Courtine analisa este debate de Suárez com a doutrina de Durando,

no contexto da determinação da relação entre realidade e verdade proposta des-de Ockham, na qual a realidades-de é reduzida ao seu esse objectivum. (J.-F., C OUR-TINE, Suarez et le système de la métaphysique, cit., pp. 176-182).

9 DM VIII, I: «(…) a verdade não é conformidade do próprio juízo, mas é

conformidade do próprio objeto. O consequente é evidente, porque o intelecto, julgando diretamente acerca da verdade, não julga acerca da propriedade ou conformidade do seu ato, mas acerca da verdade do próprio objeto».

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midade, esta é uma relação de objetos sob forma de juízos. A ver-dade formalmente considerada não é uma propriever-dade do intelecto, mas essencialmente da representação das coisas. Ainda segundo esta opinião, que se entende por verdade formal do intelecto? Um ato reflexo do intelecto que compara o objeto enquanto apreendido pelo intelecto (ou conceito formal), com o objeto enquanto conforme à coisa (conceito objetivo). Desde este ponto de vista, é possível afirmar que um juízo é verdadeiro? Sim, mas apenas por denomina-ção extrínseca. Por conseguinte, a verdade não é uma propriedade imanente do juízo, mas apenas ocorre na conformidade entre coisas e representações de coisas. No juízo, ela diz apenas uma referência àquela conformidade. Porém, tal conformidade não afecta intrinse-camente o juízo.

Suárez considera que os argumentos dados por Durando não demonstram suficientemente esta hipótese e defende que a verda-de formalmente consiverda-derada é a conformidaverda-de do juízo com a coisa conhecida tal como é em si. Desta conformidade decorre que se di-ga que a própria coisa juldi-gada é em si tal como é juldi-gada10. Para defender a sua tese indica quatro argumentos. O primeiro é um ar-gumento de autoridade. Aristóteles atribui prioridade ao ser sobre a verdade, quando diz: ‘por causa do que a coisa é ou não é, a pro-posição é verdadeira ou falsa’, texto que S. Tomás assume tam-bém, na S. Th. I, q. 16, a. 3. Portanto, o ato de conhecer é

10 DM VIII, I, 3: «(…) existimo veritatem complexae cognitionis seu

composi-tionis et divisionis, seu iudicii quo iudicamus aliquid esse hoc aut illud, vel non esse (haec enim omnia pro eodem sumimus), esse conformitatem iudicii ad rem cognitam prout in se est, ex qua conformitate provenit ut res ipsa iudicata dicatur ita esse in se sicut iudicata est». Os textos de Tomas de Aquino que Suárez ale-ga para demonstrar esta tese são essencialmente os mesmo em que Durando se apoiava para defender a dele: S. Th. I, q. 16, a. 1 , 2 e 8. Cont. Gent., livro I, c. 59, 60. As autoridades referidas explicitamente por Suárez como partilhando da sua interpretação são: Caetano e o Ferrariense, para o locus citado de Tomás; Soncinas, no Comentário ao Livro IV da Metafisica, q. 17; e Egídio Romano, em Quodlibeta IV, q. 7. Mas, enquanto Tomás de Aquino defende que a verdade re-side no objeto extramental e supõe nele uma fundamentação nas ideias divinas, Durando e Suárez identificam ‘verdade das coisas’ com o ser objetivo delas. So-bre esta inflecção do lugar da verdade, e suas consequências na determinação do conceito formal de verdade, v. J.-F.COURTINE, Suárez et le système, cit., pp. 176-179.

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ro não por uma adequação de verdades (a do objeto e a da repre-sentação), mas por uma conformidade juízo-objeto. Para Suárez, não obstante a verdade depender do ser da coisa (sempre enquan-to ser e objetivo), ela é efetivamente uma propriedade do entendi-mento. Escreve Suárez: «(…) o ato cognitivo não se diz verdadeiro pela conformidade ou verdade do próprio objeto, mas pela verdade ou conformidade do próprio juízo com o objeto»11.

O segundo argumento é tomado da verdade da significação. Suárez analisa dois tipos de significação – por meio do signo vocal (vox) ou por meio da imagem (imago). No caso do signo vocal, a verdade encontra-se na imediata conformidade da voz significante com a coisa significada. No caso do signo visual ou imagem, a ver-dade dá-se na conformiver-dade imediata entre a representação da imagem e a própria coisa representada12. Ou seja, ao nível dos sig-nos representativos, não há propriamente conformidade, mas ime-diatez: o signo e a coisa significada são, na representação, o mes-mo, embora o modo de ser da coisa possa eventualmente ser distin-to do modo de ser da coisa representada13.

11 DM VIII, I, 3: «(…) cognitio non denominatur vera a conformitate seu

veri-tate ipsius obiecti sed a veriveri-tate vel conformiveri-tate ipsiusmet iudicii ad obiectum».

12 DM VIII, I, 3: «hoc potest declarari ex veritate in significando quae est in

propositione vocali; illa enim (…) consistit in immediata conformitate vocis signifi-cantis ad rem significatam. Immo in quacumque imagine quae vera denominetur (…): imago Petri, verbi gratia, tunc vera imago dicitur quando repraesentat illum prout in se est».

13 Com este argumento, Suárez evidencia que, no ato representativo, do

qual vox ou imago são resultado, não há conformidade, como queria Durando, mas perfeita identidade. Para o ato de representar, são idênticos ‘coisa represen-tada’ e objeto da representação’. Não há portanto aí conformidade mas imedia-tez. Afinal, na crítica de Suárez a Durando fica claro que este último identifica verdade formal com representação objetiva. No entanto, esta crítica de Suárez a Durando, só aparentemente insiste na relação à coisa à mente. De facto, o que Suárez defende é a condição de construção mental ou produção intelectual do próprio objeto ou representação formal. Como observa Courtine, «on peut bien soutenir qu’il y a une immédiateté du rapport de la connaissance, quando elle est actus in facto esse, à la chose éxterieur; in n’en reste pas moins vrai que cette terminatio (…) ne s’adresse pas à l’étant pour autant qu’il est d’abord manifeste, mais uniquement pour autant qu’il peut être ‘obstant’» (J.-F.COURTINE, Suárez et le système, cit., p. 179).

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O terceiro argumento, diz Suárez, é um argumento geral, isto é, decorre da concepção geral de conhecimento. O cerne do argumen-to é o conceiargumen-to de esse objectivum ou ser intencional14 e a compre-ensão dele é decisiva para delinear a doutrina suareziana sobre a cognitio vera. Suárez afirma que o ser intencional ou objetivo da coisa, quer na representação sensível, quer no conhecimento, é o

mesmo ser da coisa tal como existe em si15. Então, qual a

diferen-ça entre o ser da coisa tal como é em si, e o ser da coisa enquanto representada/ conhecida? Suárez responde que apenas se acres-centa uma denominação extrínseca, isto é, uma referência ao senti-do ou ao entendimento, conforme se trate senti-do esse objectivum na representação ou na cognição. Para Durando, a conformidade pró-pria da verdade formal dá-se precisamente nesta adequação entre coisa e esse objectivum, e assim introduz uma distinção entre am-bos os termos. Suárez considera que aqui não há conformidade ve-ritativa, mas absoluta e completa identidade: nulla est ibi conformi-tas obiecti ad rem, sed illa est potius omnimoda identiconformi-tas16. O esse

objectivum e o esse da coisa em si são o mesmo17. Suárez dá o exemplo da relação entre a coisa vista e a visão:

14 No vocabulário escolástico «esse intentionale (…) es el de la imagen o

espécie que de las cosas existe en el sentidos y en el intelecto, por lo que algu-nos también lo denominan esse inteligibille o esse cognitum». Cf. S. M AGNAVAC-CA, Léxico Técnico, cit., p. 260. No texto de Suárez em análise, o esse intentiona-le é justamente a imagem ou espécie das coisas conhecidas ou representadas, correspondendo respetivamente ao ser intencional no intelecto o ao ser intencio-nal na representação sensível. Num momento posterior, será necessário com-preender de que modo Suárez concebe a ‘transformação’ do ser intencional re-presentado no ser intencional conhecido. O esse intentionale é a chave da res-posta de Suárez para a veritas cognitionis. Não obstante este modo de ser seja diminuto (como se lê em DM VIII, I, 7), intencionalidade é a forma pela qual a verdade do conhecimento é verdade real, garantido a sua relação a um objeto efetivamente outro do intelecto.

15 Trata-se do mesmo ser apenas variando o seu modo de ser: na coisa

ex-tramental o modo de ser é físico; na coisa representada o modo de ser é imateri-al.

16 DM VIII, I, 4.

17 Para Durando, da representação ao intelecto é que apenas se estabelece

uma denominação extrínseca. Ou seja, o ser representacional e o ser mental são o mesmo, o ser cognitivo é apenas uma relação ao ser representacional. Para Suárez, esta doutrina não é sustentável, pois para haver conformidade real, terá

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«Tal como a coisa vista no ser objetivo com relação à vista, se se tomar

como aptidão ou em ato primeiro, nada mais diz além do próprio ser

co-lorido ou luminoso que em si a coisa tem. Mas, se se tomar como vista em ato, nada acrescenta a não ser uma denominação extrínseca à vi-são»18.

O ser da coisa – tomada como ‘coisa capaz de ser conhecida’, coisa apta a ser conhecida, ou coisa que se dá a conhecer – e o ser da coisa enquanto ‘coisa representada pela vista’ são exatamente idênticos.

Onde é que se dá, então, a diferença, para que se possa falar de conformidade, isto é, de verdade? Para Suárez, o princípio que torna possível a adequação entre intelecto e coisa é a forma. O es-se objectivum considerado como referido ao conhecimento ou à forma que o representa, inclui a forma que o denomina a ele próprio [a forma intrínseca]. Como é possível, então, a conformidade do es-se objectivum com o eses-se reale, do es-ser intencional com o es-ser do te? Ou melhor, do ser intencional com o esse reale, para ir ao en-contro da acepção de ens realis assumida por Suárez nas Disputa-ções I e III? Suárez responde deste modo: a forma pela qual é co-nhecido ou representado, tem uma imediata conformidade com a coisa conhecida ou representada em si [secundum se]19.

Nesta resposta, Suárez evidencia que confere primado à forma como princípio entitativo e à função mediadora da forma no ato cognitivo. É a consideração da forma que permite falar de um domí-nio transcendental de verdade ao nível do conhecimento (isto é, de uma afecção comum dos entes enquanto conhecidos ou na sua re-lação com o entendimento). Ora, a noção suareziana de forma aqui empregue terá de estar de acordo com a concepção de ente

de haver dois distintos atos de ser: o da coisa e o do intelecto. Mas ao nível do esse objectivum, o ato de ser é o mesmo.

18 Ibid.: «(…) sicut res visa in esse obiectivo respectu visus, si sumatur in aptitudine seu in actu primo, nihil aliud dicit praeter ipsum esse coloratum aut lu-cidum quod in se res habet. Si autem sumatur ut actu visa, nihil addit nisi deno-minationem extrinsecam a visione».

19 DM VIII, I, 4: «(…) ipsa forma qua cognoscitur vel repraesentatur, habet immediatam conformitatem cum re cognita vel repraesentata secundum se; ergo in hoc consistit primo ac per se veritas cognitionis». Por isso se fala de conformi-dade e de verconformi-dade formal.

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da por Suárez na Disputação II20: o ente tomado como predicado essencial, isto é, no seu ser aptitudinal ou como possibilidade de receber uma existência atual. Este argumento pelo qual demonstra que a verdade formal é conformidade entre a coisa e o ser intencio-nal da coisa, quer representativo, quer conceptual, estende preci-samente a doutrina suareziana do ente real à verdade, enquanto transcendental, isto é, enquanto propriedade comuníssima de todos os entes reais. A concepção de verdade formal que a metafísica ob-tém terá de ser aplicável, por conseguinte, a todos os seres da hie-rarquia ontológica dotados de conhecimento – homem, anjo e deus – e garantir a relação de conformidade com todos os entes dotados de essência real ou ser aptitudinal.

Por isso, Suárez analisa, num último argumento, justamente a verdade formal na relação com entes reais que não possuem ne-nhuma existência atual e que não têm nenhum ser em si além do ser que tem como objeto do intelecto. É o que sucede quer na ciên-cia média de Deus e no conhecimento divino dos futuros contingen-tes, quer na visão beatífica intuitiva que Deus tem de si próprio. To-do este tipo de conhecimento é necessariamente verdadeiro. Na concepção de verdade proposta por Durando seria necessário in-troduzir uma diferença entre o conhecimento de Deus e os objetos por ele conhecidos como puras possibilidades, o que é impossível, pois eles não têm outra realidade fora do conhecimento de Deus, o que ainda se torna mais evidente se considerarmos o conhecimento que Deus tem de si mesmo. De facto, não há aí qualquer diferença entre ser e conhecer. Este é mais um argumento contra a definição de verdade dada por Durando: «a conformidade da representação com a coisa mesma como existente em si». Tal definição é por seguinte rejeitada por Suárez que assume esta: «a verdade é a con-formidade imediata entre o ser objetivo e a coisa de que é objeto».

20 DM II, IV, 3: «(…) consta pelo uso comum que ente, inclusivamente to-mando-o como ente real – e nesse sentido falamos agora – não só se atribui às coisas existentes, mas também às naturezas reais consideradas em si mesmas, quer existam, quer não. É este o sentido em que a metafísica considera o ente (…)».

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Esta conformidade é a propriedade da verdade formal em toda a forma de cognição, seja a divina, a angélica ou a humana21.

Desta análise do confronto sobre o conceito de verdade formal de Durando feita por Suárez inferem-se ao menos duas conclusões: (1) a concepção de Durando apenas se aplica à verdade da cogni-ção humana, não atingindo a verdade transcendental, própria da metafísica. (2) a concepção de Durando identifica a verdade com a representação da coisa, perdendo-se para o conhecimento o que a coisa é em si mesma ou seja (na óptica suareziana) a formalidade do ens reale, que é a condição de possibilidade do seu ser cognos-cível, isto é, da conformidade entre o esse reale (ou essência apti-tudinal) e o esse objectivum ou intentionale.

Na resolução dos argumentos, Suárez constrói a ponte entre a doutrina que expõe na Secção I desta Disputação VIII, e os desen-volvimentos ulteriores sobre a verdade-conformidade. Que tipo de conformidade é esta, que propõe Suárez? Obviamente, não será uma conformidade efectuada por semelhança de entidades (pois no conhecimento de coisas materiais elas são claramente diferentes do intelecto), nem pela semelhança de imagem formal (pois uma tal semelhança supõe sempre a existência de uma forma real, a qual, acrescenta Suárez, nem sempre é necessária para a cognição). Es-ta conformidade é uma cerEs-ta represenEs-tação intencional pela qual o intelecto, pelo seu ato que é o juízo, percebe a coisa tal como é em si. Ora, uma tal conformidade, que, como se viu, não é identidade entre os termos desta relação, exige, como sua condição de possi-bilidade, uma certa proporção e hábito entre a perceção do intelecto e a coisa percebida, que se explica-se corretamente, diz Suárez, na

21 A propósito da rejeição da tese de Durando por Suárez, escreve Courtine:

«c’est parce qu’il interprète dans un sens trop étroitement ‘réaliste’ la doctrine de Durand de Saint Pourçain que Suarez est finalement conduit à la repousser: la vérité ne se définit pas en effet comme une relation predicamental entre deux res. Mas Suarez ne remet pas pour autant ce qui fait le fond de la position de Durand, à savoir la mise au premier plan de l’objectivité et la référence à celle-ci qui de-termine le lieu de la vérité. (…) la pensée de Suarez est ici assez mouvante, et elle se laisse largement porter par l’usage du terme, devenu ambigu, d’objectum (…). Pour Suarez au contraire c’est l’intellect comme tel qui est éminemment ‘ré-al’». (Suárez et le système, cit., pp. 180-181).

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expressão ‘tal como’, que ocorre na definição: «a coisa conhecida é representada ou julgada tal como é em si».

Que razão, medida ou proporção é esta? Suárez responde: a mesma que existe entre representante e representado. Por isso, conclui, esta conformidade nunca é falsa. Ou seja, nela consiste a verdade formal. E a origem da falsidade terá de ser procurada em outro lugar que não no hábito do intelecto na perceção das coisas. E isso acontece porque o esse objectivum é causa e fundamento da verdade do juízo, mas não a sua forma ou ato próprio (esta consiste na atribuição do ser ou do não ser ao conceito, isto é, na predica-ção). Enquanto hábito, o intelecto apenas assente ao verdadeiro. Porém, a forma própria do intelecto é judicativa. Por isso, mesmo enquanto hábito, supõe um juízo. Este é sempre verdadeiro en-quanto juízo causal ou fundamental, isto é, enen-quanto juízo acerca do próprio ser da coisa. Por isso, a verdade formal consiste na comparação entre cognição e coisa, ou coisa e cognição: é o ser da coisa, percebido pelo hábito do intelecto no ato de cognição, que determina a verdade proposicional, emitida pelo juízo.

3.A VERDADE DO CONHECIMENTO

3.1.PROPRIEDADE ABSOLUTA OU RELAÇÃO?AS TESES EM CONFRONTO A pergunta acerca do que é a verdade do conhecimento parece ociosa, pois na secção I ela fica definida como conformidade. Ora, tratando-se este de um debate metafísico, o que Suárez indaga na Secção II é o tipo de entidade em que consiste aquela conformida-de. Trata-se de um ente real, absolutamente considerado? Ou de uma relação? E se for uma relação, é real ou de razão?

O debate é intricado e complexo. Como de costume, Suárez expõe os argumentos das autoridades em confronto e, por fim, apresenta a sua própria posição. Do debate obtém-se alguns ele-mentos importantes para compreender a teoria do conhecimento suareziana, bem como a distinção que o Exímio estabelece entre verdade formal e verdade radical, ou seja, entre um domínio da ver-dade como operação do entendimento, a estudar pela Física (o que deixara feito no comentário ao De Anima), e um domínio de funda-mentação da própria conformidade veritativa e das suas condições

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de possibilidade, que é próprio da metafísica. Este fica delineado nas primeiras 6 secções da Disputação VIII, mas será tratado com detalhe nas últimas duas, onde Suárez expõe o que entende por verdade fundamental, sentido que corresponde mais propriamente à verdade entendida como transcendental.

Sobre a questão em análise – que tipo de entidade é a confor-midade veritativa –, Suárez opõe novamente duas teses: a dos que afirmam que a verdade é algo absoluto e real no ato de conhecer, defendida, segundo Suárez, por Capreolo e Soncinas; e a dos que admitem que a verdade é uma relação, sustentada por Durando, Herveu Natalis, Crisóstomo Javelli e Domingos de Flandres, citados na secção anterior. Estes, admitindo que a verdade é um tipo de re-lação, não chegam todavia a acordo sobre se se trata de uma rela-ção real ou de razão.

Por comodidade de exposição, designamos a primeira tese co-mo ‘tese A’. Em defesa desta tese, que Suárez considera uma sen-tença provável, expõem-se quatro argumentos. O primeiro decorre das conclusões obtidas na Secção I acerca da verdade formal. Se o juízo se diz verdadeiro intrinsecamente e por si, e não por denomi-nação extrínseca, então a verdade formal é uma propriedade intrín-seca do intelecto. Por isso, deve existir nele como uma forma real, pela qual se denomina verdadeiro. O segundo argumento segue-se deste primeiro: se a verdade atual e formal é uma perfeição simplici-ter do intelecto, então é um ato específico dele e portanto será nele uma perfeição atual e real. E se esta verdade atual é algo real no intelecto, o hábito do conhecimento – que, como se afirmou na Sec-ção I, é sempre verdadeiro – é uma perfeiSec-ção plena e uma proprie-dade real do intelecto. Então, também o conhecimento atual, que dele depende como sua causa e fundamento, será uma perfeição real.

Suárez prossegue a análise deste argumento afirmando que a verdade do conhecimento não depende necessariamente de um ou-tro termo real e existente. De facto, pode suceder que, à verdade do juízo, se siga uma relação real, mas isso ocorre acidentalmente. Mas a definição de verdade do intelecto tem de ser da mesma natu-reza em todos os tipos de juízo, pois trata-se da verdade enquanto propriedade comuníssima ou transcendental. Ora, por si mesma, necessariamente e em todos os juízos verdadeiros, a verdade do

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conhecimento é uma perfeição simples do intelecto, quer se lhes si-ga uma relação real, quer não22.

Um terceiro argumento decorre da análise da verdade divina. A verdade do conhecimento existe em Deus e é uma perfeição abso-luta dele. Mas em Deus esta perfeição não é uma relação real. De facto, comparada com a essência de Deus, não se distingue real-mente dela. E comparada com as criaturas (dado que a relação de Deus com estas não é uma relação real), não se refere realmente a elas. Por isso, a verdade formal, em toda a sua amplitude e como verdade transcendental, não pode implicar uma relação real. O últi-mo argumento considera o facto de a verdade ou a falsidade serem sempre propriedades do intelecto. Mas não há nenhuma relação real que acompanhe de modo necessário o intelecto. Logo, a ver-dade será algo absoluto no intelecto.

Todavia, o terceiro argumento não mostra que, em Deus, a ver-dade seja uma perfeição absoluta, mas apenas que não é uma rela-ção real. Por isso, a exposirela-ção da tese da ‘verdade, perfeirela-ção abso-luta’ termina com a referência ao Comentário ao Livro IV da Metafí-sica, q. 17, de Paulo Soncinas23, seguido neste aspecto por Capreo-lo, no Comentário ao Livro I das Sentenças, dist. 19, q. 3, conclusão

22 O raciocínio supõe que a definição de ‘verdade formal do juízo’ tem de ser comum a todos os tipos de juízo. Ora, há juízos verdadeiros que não podem implicar uma relação real. O exemplo dado é: “ a quimera é um ente fictício”. Por outro lado, a disposição do intelecto para o objeto cognoscível, ou hábito do co-nhecimento também não implica, em si e formalmente, uma relação real, embora esta possa ocorrer algumas vezes. Por conseguinte, a verdade será uma perfei-ção absoluta do intelecto.

23 O texto de Soncinas parte da definição de Tomas de Aquino em De

Veri-tate, q. 1, artigo 8: a verdade de uma coisa, por exemplo, uma pedra, encerra na sua razão a entidade da pedra e acrescenta-lhe a disposição ao intelecto [habi-tudinem ad intellectum]. Se é assim, a verdade implica dois elementos: a inteligi-bilidade da coisa, que decorre da sua entidade, e a relação que ela estabelece com um intelecto possível, enquanto disposição para o intelecto. Por isso, diz Soncinas, é preciso esclarecer dois aspectos: que tipo de relação é esta e qual a entidade dela; e de que modo o verdadeiro significa relação. Para esclarecer o primeiro ponto, enuncia os tipos de relação que podem dar-se na conformidade veritativa, conforme os entes em questão. Finalmente, como conclusão da análi-se do análi-segundo aspecto, afirma: «quod veritas significat tantum rem absolutam in recto et principaliter, sed in obliquum dicit respectum conformitatis». [Pauli Sonci-natis, Quaestiones Metaphysicales, Lyon, Carlos Pesnot 1574, p. 113].

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3. O argumento sublinha um aspecto importante e indissociável do conceito de verdade formal: o ato de inteligir inclui a relação com o inteligível, pois não pode ser concebido sem a disposição para o in-teligível. Mas que tipo de relação é esta? Segundo Suárez, a res-posta de Soncinas é que se trata de uma relação transcendental, isto é, secundum dici24.

Em seguida, Suárez expõe os argumentos dos que consideram que a verdade do conhecimento consiste essencialmente numa re-lação. Designaremos esta tese como ‘tese B’. Estes autores afir-mam que o ser da verdade depende em absoluto do termo da rela-ção cognitiva e, portanto, do objeto. Ora, a experiência confirma que assim é, pois a verdade de uma proposição modifica-se, passando de verdadeira a falsa, quando há modificação no objeto. E essa modificação dá-se sem que ocorra qualquer modificação da parte do sujeito cognoscente. Por isso, a verdade consiste apenas na re-lação do intelecto com o termo inteligido e depende absolutamente deste último. De facto, esta conclusão é a consequência necessária da tese analisada na Secção I, que considera que a verdade ocorre no juízo apenas por denominação extrínseca. Com efeito, o modo como os defensores desta tese consideram o ato veritativo corres-ponde à definição de relação. Existe um fundamento, que é o inte-lecto, e um termo, que é o objeto. Quando ocorre o termo, ocorre a relação. Quando este muda, a relação muda, sem que mude o fun-damento. Por conseguinte, a verdade não é algo essencial ao ato de inteligir. Será, portanto, um acidente, como sucede com o predi-camento relação, na tabela das categorias. Tratar-se-á de um aci-dente absoluto? Neste caso, será uma qualidade do ato. Mas, se fosse uma qualidade, o ato último da relação – a verdade do juízo – seria o sujeito de uma outra qualidade. E não é o caso. Resta, por conseguinte que seja um acidente relativo, ou relação. Porém, que tipo de relação será esta em que consiste formalmente a verdade?

24 No texto de Soncinas referido por Suárez não encontrámos esta identifi-cação ou sequer a referência à verdade transcendental e sua identidade com o modo de relação secundum dici, pelo que concluímos que essa dedução é do próprio Suárez (cf. DM VIII, II, 2).

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Suárez afirma que mesmo entre os defensores desta tese não há acordo cerca do tipo de relação em que consiste a verdade.

Para Suárez, os argumentos expostos quer pelos defensores da tese A, quer pelos da tese B não só não são decisivos, como são equívocos. Os argumentos por meio dos quais a tese A mostra que a verdade do conhecimento é uma propriedade real, manifestam que ela deve ser entendida como uma relação real; e os argumen-tos a favor da verdade como propriedade absoluta permitem con-cluir que a verdade é uma relação de razão. Mas a tese A defende que a verdade é uma propriedade real e absoluta. Ora, confrontan-do-os, e face à dedução do modelo de relação neles implicado, é necessário concluir que umas vezes a verdade é uma relação real, outras uma relação de razão25. Para ultrapassar tanta equivocidade, Suárez considera necessário fazer um conjunto de distinções, por meio das quais esclarece a sua própria tese acerca da verdade do conhecimento.

3.2A POSIÇÃO DE SUÁREZ

Para identificar em que consiste a conformidade veritativa e su-perar os equívocos antes referidos, Suárez introduz uma distinção entre aquilo que a verdade, enquanto passio entis, acrescenta ao ato do intelecto, e aquilo que lhe acrescenta o nome verum26.

25 Cf. DM VIII, II, 4. Suárez analisa os modos nos quais a verdade pode

es-tar presente no juízo à luz da definição de relação real e de relação de razão e, em função desta análise, mostra de que modo umas vezes se considera real e outras de razão. Uma análise semelhante encontra-se em Soncinas, Quaestio-nes Metaphysicales, VI, q. 17.

26 Esta distinção entre o transcendental e o nome recorda a distinção feita

em DM II, 4, 4, entre ente como particípio e ente como nome, e é como que uma aplicação dela. Angel Poncela, esclarece este aspecto de modo breve e claro: “El ente puede ser considerado de dos maneras diversas: tomado con valor de parti-cipio del verbo ser, significa el existente en acto -o el acto de de existir como ejercido-; considerado como un nombre, el “ente”, viene a significar formalmente la esencia de la cosa, que tiene o que puede tener existencia. Suárez aclara la diferencia semántica proponiendo este ejemplo: el «viviente, en cuanto es parti-cipio, significa el uso actual de la vida, pero como nombre, significa sólo lo que posee una naturaleza que puede ser princípio de operaciones vitales». [cf. A. Poncela, Ens realis et realitas objectalis: La determinación suareciana del objeto de la Metafísica, p….]. A veritas cognitionis igualmente terá uma dimensão actual

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Para Suárez, a verdade não acrescenta ao conhecimento ne-nhuma perfeição realmente distinta da essência e entidade dele. Neste aspecto, diz Suárez, há acordo entre todos os autores. De facto, não se concebe que coisa ou res poderia ser esta, acrescen-tada ao conhecimento, de que espécie seria e para que fim lhe seria acrescentada27. Sendo assim, a primeira conclusão, quando se considera o que a verdade acrescenta ao conhecimento, é que não acrescenta nada real e absoluto nem nenhum tipo de entidade. Por conseguinte, só poderá acrescentar uma relação. Por isso, o se-gundo passo é identificar que tipo de relação a verdade acrescenta ao ato cognitivo.

Suárez procede por exclusão. A verdade, afirma, não acrescen-ta ao intelecto uma relação predicamenacrescen-tal: «A verdade não acres-centa ao ato uma relação real própria e predicamental de ato a objeto»28. Os argumentos foram dados na exposição da tese A. De facto, no ato cognitivo nem sempre uma relação predicamental é possível, embora nalguns casos o seja. Mas como pode dar-se ver-dade no conhecimento sem relação predicamental, esta não pode ser a essência da verdade do conhecimento. O ato verdadeiro,

e uma nominal, sendo esta última a que designa o princípio natural de realizar operações cognitivas. Na análise de Suárez, ao primeiro aspecto corresponde a verdade formal, e ao segundo a verdade radical ou fundamental, que é a disposi-ção habitual do intelecto para conhecer. Suárez não estabelece o paralelismo, mas parece supô-lo, pois enuncia esta diferença e não a volta a retomar. Porém, é com base nela que se distinguem os dois sentidos de verdade, actual e habitu-al.

27 Cf. DM VIII, II, 6. O raciocínio é uma vez mais complexo e baseia-se nos

conceitos de relação, e de distinção real e de razão. Suponhamos que é algo ab-soluto e acrescentado, uma entidade diferente do ato verdadeiro. Nesse caso é separável dele. Mas então é relativo a ele e não será absoluto. Mas se for inse-parável, será idêntico. Mas e se for um absoluto, inseparável do ato, e com uma distinção de razão, em relação a ato verdadeiro? Tal hipótese implica contradi-ção. De facto, em tal caso, cabem duas possibilidades: ou tal absoluto completa o ato cognitivo como última diferença específica ou individual dele; ou não o completa e supõe que ele está perfeitamente acabado. No primeiro caso, tal ab-soluto não é uma entidade distinta do ato e que se lhe acrescenta, mas constitui o próprio ato. O segundo caso não pode afirmar-se, porque se um ato está ple-namente constituído nada se lhe pode acrescentar, real e absoluto, que apenas seja distinto na razão.

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ma Suárez, é anterior ao surgimento da relação real, pois para que esta ocorra, exige-se a constituição do fundamento e do termo. Mas o ato é formalmente verdadeiro pelo facto de constituir tal funda-mento e termo. Suponhamos que se dão o fundafunda-mento (intelecto) e o termo (coisa cognoscível). Mesmo que – numa hipótese absurda, porque impossível – a relação não se realizasse, o ato de conhecer permaneceria ainda verdadeiro, pela natureza do próprio ato e do objeto. Suárez conclui que no conceito formal de verdade não entra a relação real, embora às vezes à verdade se siga uma tal relação.

Se não consiste numa relação real, também não consistirá nu-ma relação de razão. A relação de razão é produzida pelo intelecto supondo-se aquilo que lhe pode servir de fundamento e termo. Po-rém, afirma Suárez, o ato é verdadeiro em virtude daquilo que se supõe para tal relação ou produção. Por isso, a verdade do ato cog-nitivo é anterior e condição de possibilidade da relação real ou de razão. Por conseguinte, nem a relação real, nem a de razão consis-tem formalmente no conceito de verdade.

Qual então a identidade da verdade no ato cognitivo? Em que consiste o esse verum, no conhecimento? Suárez afirma claramente que a veritas nada acrescenta ao ato cognitivo29. No ato de conhe-cimento, a propriedade ‘ser verdadeiro’ não é nem um absoluto, nem uma relação real, nem propriamente uma relação de razão30. A verdade do conhecimento é apenas uma conotação entre entendi-mento e objeto entendido31, que surge quando se dá a conexão ou conjunção de ambos. Por isso, a tese B, diz Suárez, é correcta quando afirma que, mudando o objeto, muda a verdade do conhe-cimento, sem que haja alteração intrínseca no intelecto. Porém, daí não se conclui que a verdade seja uma relação real que o intelecto estabelece com o objeto, mas apenas que não há verdade sem a

29 DM VIII, II, 9: «a verdade da cognição não acrescenta nada real e

intrín-seco ao próprio ato, mas apenas conota que o objeto se comporta tal como é re-presentado pelo ato».

30 Ibid.: «não diz algo real absoluto ou relativo, além do próprio ato, mas

também não diz própria e rigorosamente uma relação de razão».

31 Ibid.: «a verdade da cognição não acrescenta nada real e intrínseco ao

próprio ato, mas apenas conota que o objeto se comporta tal como é representa-do pelo ato. (…) nada mais pode acrescentar além da dita conotação ou denomi-nação que surge da conexão ou conjunção de tal ato e objeto».

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concomitância deste e do intelecto. Retirada a concomitância ou si-multaneidade de ambos, intelecto e objeto, suprime-se a verdade do conhecimento.

Um argumento contra a tese que Suárez defende – a verdade formal não é uma propriedade intrínseca do ato de conhecer – po-deria ser a mudança de valor de verdade que se dá numa proposi-ção em funproposi-ção de uma alteraproposi-ção no objeto. Suárez mostra que a mudança de valor de verdade de uma proposição mental ou vocal não supõe a mudança dos elementos que entram na significação, mas apenas a da coisa significada. A explicitação é introduzida para evidenciar que o que aqui se afirma acerca do conhecimento verda-deiro aplica-se somente ao conhecimento abstrativo e imperfeito, isto é, ao modo humano de conhecer32. Da análise deste contra-argumento obtém-se mais um elemento para a definição da verdade do conhecimento como concomitância do objeto: o estado em que é representado pelo ato cognitivo, isto é, a condição atual do objeto. A verdade do conhecimento, conclui Suárez, é um modo de represen-tação do conhecimento tal que leve unida a concomitância de um objeto, que se comporta tal como é representado pela cognição33. Não basta a representação do objeto, se ele não se comportar tal como é representado (a representação sem conformidade ao objeto é a produção de uma ficção). Igualmente, não basta a concomitân-cia do objeto, pois nesse caso a verdade seria apenas uma referên-cia ao objeto (uma denominação extrínseca, na tese de Durando). A verdade do conhecimento inclui a disposição intrínseca do ato cog-nitivo ao objeto tal como ele se comporta em si. Isto é, inclui o hábi-to da ciência.

É a verdade algo absoluto? Depende do que se entenda por absoluto. A resposta será negativa se por absoluto se entender a disposição transcendental para o objeto, totalmente inseparável do intelecto e imutável. Se a verdade do conhecimento fosse um

32 Cf. DM VIII, II, 10. O conhecimento divino (e eventualmente o angélico) é

intuitivo e por conseguinte nele não há mudança do valor de verdade: é sempre verdadeiro, porque nele a concomitância com o objeto sempre se dá - tem sem-pre sem-presente a coisa tal como ela é em si. A concomitância entre intelecto e obje-to é aí perfeita e por isso realiza a essência da verdade.

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luto deste género, prescindia-se do objeto e a verdade do conheci-mento seria imutável, o que não ocorre. Mas se se afirmar que a verdade do conhecimento é um absoluto porque ao conhecimento verdadeiro em ato não se acrescenta uma relação intrínseca, então pode afirmar-se que a verdade consiste nesse absoluto – isto é, numa disposição intrínseca do intelecto ou hábito da ciência – com uma relação secundum dici, que é a que expressa a concomitância do objeto tal como ele se comporta em si34.

Efetivamente, nas secções I e II da DM VIII, Suárez analisa es-sencialmente aquilo em que consiste a cognição em ato, ou verdade formal. É a definição desta que se procura. A definição encontrada é a seguinte: a verdade formal, ou verdade da cognição, é um modo de representação do conhecimento tal que leve unida a concomi-tância de um objeto que se comporta tal como é representado pela cognição.

Na resposta aos argumentos que consideram este modo de verdade uma perfeição absoluta, Suárez introduz uma distinção en-tre verdade formal e verdade radical. É um facto que aquela não existe sem esta, mas a natureza de ambas não é idêntica. Para Suárez existem então dois modos de atribuir verdade ao ato da cognição: formalmente e radicalmente. O primeiro consiste na con-formidade atual com o objeto. O segundo consiste na perfeição do ato. Desta perfeição, o conhecimento atual recebe esse modo de conformidade com o objeto que se designa por verdade formal. Que perfeição é esta? A perfeição do conhecimento – a evidência, a cer-teza, o assentimento do certo e do verdadeiro. Este modo da verda-de é uma perfeição real, absoluta e intrínseca, e corresponverda-de a uma qualidade da faculdade cognitiva, à própria virtude intelectual da ci-ência. De facto, ela não se distingue do juízo no qual ocorre, sendo a diferença específica dele. Por ela, dizemos que o juízo (formal-mente verdadeiro) é certo ou evidente. Porém, esclarece Suárez, tal perfeição é uma propriedade intrínseca do juízo, uma perfeição simples dele e que pertence à noção de virtude intelectual. Embora a verdade radical se tome da verdade formal, esta não acrescenta

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àquela nenhuma perfeição35. Afirmar que a verdade radical é uma perfeição simples tal que necessariamente tem unida a si a verdade é admitir que o intelecto possui radical e virtualmente a verdade36.

Finalmente, quais os elementos que entram na definição formal de verdade, para Suárez? Ou, dito de outro modo, o que significa ‘concomitância do objeto’ e quais as sua implicações? Suárez afir-ma que a denominação forafir-mal do verdadeiro está na própria coisa fora do intelecto37. A verdade formal dá-se de facto no juízo verda-deiro ou ato cognitivo. Mas não é simplesmente um ato intrínseco do entendimento. Ela depende de dois fatores: a forma intrínseca do juízo e a coexistência objetiva ou concomitância do objeto. O objeto comporta-se em si mesmo tal como é julgado pelo ato cognitivo. E dessa concomitância resulta a verdade formal. Porque se fala de verdade da cognição, diz-se que ela convém propriamente ao juízo. Mas tal não significa que seja uma propriedade absoluta e intrínse-ca dele, pois a verdade dele depende da sua conformidade com o objeto. Ou, como diz Suárez, «a forma pela qual é denominado [formalmente verdadeiro] não é totalmente intrínseca, mas inclui a concomitância de algo extrínseco»38. Por isso, é elemento constitu-inte da verdade formal a coexistência objetiva (i.e., imaterial ou sob forma de representação intencional) do próprio objeto. É nesta rela-ção que consiste a verdade formal. Ela manifesta de facto uma per-feição real de tal ato cognitivo, na medida em que requer a repre-sentação do objeto (o intelecto tem de ser capaz de a produzir) e

35 DM VIII, II, 15: «o ser radicalmente verdadeiro é a perfeição do hábito da

ciência, e a verdade actual não lhe acrescenta nenhuma perfeição».

36 DM VIII, II, 16: «(…) a verdade é uma perfeição simples, certamente não

formalmente e em si, mas na raiz, quando ela é tal que necessariamente tem unida a si a verdade».

37 Cf. DM VIII, II, 14. É sempre necessário ter em conta que ‘a próprioa

coi-sa for a do intelecto’ é conhecida apenas como representação, objeto, ou reali-dade objetiva. Courtine põe em evidência «l’ambiguité du terme objectum, em-ployé parfois comme synonyme de res extra existens. Et dès lors la formule sua-rézienne: concomitantia objecti est bien trompeuse (…). Ce qui est requis sous nom de concomitantia objecti c’est simplement la realitas objectiva (…) [qui] ce laisse parfaitement definer et penser indépendement de l’existentia realis objecti, puisque ce qui la determine réalement c’est son être-connu ou mieux répresen-té». (Suárez et le système, cit., pp. 181-182).

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supõe a disposição para o objeto (o intelecto é radicalmente capaz de verdade). Porém, se quisermos indagar que tipo de perfeição é esta que se manifesta na cognição atual, não obtemos uma respos-ta única. De facto, esse é um aspecto variável e, porrespos-tanto, não faz parte da essência do ato cognitivo, não entra na definição dele, nem corresponde à verdade formal, que apenas se pode definir como concomitância. De facto, umas vezes pode tratar-se de uma perfei-ção simples (se a verdade estiver necessariamente unida ao ato), outras de uma perfeição secundum quid, quando a verdade não faz parte necessária e absolutamente do ato cognitivo, como sucede no conhecimento abstrativo humano, que tem sempre e intrinsecamen-te acrescentada a imperfeição da cognição obscura ou confusa39.

Ao definir deste modo a verdade da cognição Suárez salva-guarda dois aspectos: (1) a verdade formal não é um ato exclusiva-mente do intelecto, caso em que seria subjectiva, (2) nem exige a real existência extramental do objeto, caso em que o conhecimento ficaria dependente da existência do objeto, ficando excluído todo o conhecimento do ‘apto para existir’, que entra na definição suarezi-ana de ente real.

Ao assumir que, por vezes, a verdade formal é uma proprieda-de absoluta do intelecto (como suceproprieda-de, v.gr., no conhecimento intui-tivo angélico ou, mais claramente ainda, no divino), mostra que ela nem sempre é uma relação real. Mas isso não significa que tal ato exclua a conotação extrínseca ou concomitância do objeto, com mostrou na Secção I, ao tratar do conhecimento divino e ao exigir, também para ele, o conhecimento por concomitância. A verdade não é, portanto, nem uma propriedade absoluta, nem uma relação real. Mas negar que seja uma relação deste tipo (para a qual se exige a real existência do fundamento e do termo), não significa ne-gar a exigência da concomitância do objeto. Estas são as duas exi-gências da verdade formal, segundo Suárez: a existência de uma forma intrínseca – intelecto – e a coexistência objetiva ou existência de um objeto (uma forma extrínseca ao ato cognitivo, mas que in-trínseca ao sujeito cognoscente), que se comporta tal como é co-nhecido.

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4. ALGUMAS CONCLUSÕES 4.1.SUÁREZ VERSUS DURANDO

A concepção suareziana de verdade é complexa e uma das causas que contribui para esse facto é certamente o peso da histó-ria. Os autores da designada escolástica ibérica são leitores e co-mentadores assíduos da história da filosofia, e Suárez é, também neste aspecto, exímio. No caso concreto da DM VIII, parte de To-mas de Aquino, cuja tese acerca da verdade é consensualmente co-locada ao lado das doutrinas realistas sobre o conhecimento, e de-bate-a essencialmente com Durando, que interpreta Tomás numa versão nominalista, ou, como afirma Coutrine, excessivamente rea-lista. Suárez crítica Durando, reiterando a crítica de que foi alvo pe-los seus contemporâneos. A verdade do conhecimento, diz Duran-do, dá-se na conformidade coisa-representação e é esta que chega ao intelecto de modo direto, sem mediação de espécies. Por conse-guinte, a receção da verdade por parte do intelecto não necessita de um intelecto agente que transforme a espécie sensível em inteli-gível. Ou seja, Durando dispensa, além das espécies inteligíveis, também o intelecto agente, no processo cognitivo40.

Se Durando era, ao tempo de Suárez, um interlocutor familiar e mesmo incontornável, o mesmo não sucede nos nossos dias. Esse facto dificulta a compreensão da tese suareziana acerca da verdade do conhecimento. Os estudos atuais sobre Durando de Saint-Pourçain são relativamente escassos41, facto que pode justificar-se

40 A exposição crítica destas teses de Durando é realizada na DisputaçãoV

do Comentário de Suárez ao De Anima de Aristóteles.

41 Durante a segunda metade do século XX, M. T. B.-B. Fumagalli foi o

no-me de referência para o estudo de Durando, sobretudo pela publicação da obra Durando di S. Porziano. Elementi filosofici della terza redazione del 'Commento alle Sentenze', La nuova Italia, Florence 1969. Há dois estudos de relevo sobre o Doctor Modernus, mas incidem respectivamente sobre o conceito de indivi-duação e sobre o debate em torno dos futuros contingentes: Mark G. Henninger, «Durand of Saint Pourçain (B. CA. 1270; D. 1334)», in J. J. E. Gracia (ed.): Indi-viduation in Scholasticism: The Later Middle Ages and the Counter-Reformation, 1150–1650, 319–332, State University of New York Press, Albânia (NY) 1994; C. SCHABEL – R. L. FRIEDMAN – I. BALCOYIANNOPOULOU, «Peter of Palude and the Pa-risian Reaction to Durand of St. Pourçain on Future Contingents», Archivum

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Fra-em parte pela inexistência de uma edição crítica da sua obra princi-pal, os Comentários às Sentenças. Esta edição envolve alguma difi-culdade por causa da existência de três diferentes versões do mesmo texto, todas da autoria de Durando42.

No século XVI, a terceira versão do Comentário às Sentenças de Durando obteve prestígio nas universidades. A cátedra de Du-rando existia concretamente na Universidade de Salamanca, rivali-zando com os comentários de Escoto e de Tomás de Aquino. A avaliar pelo impacto editorial dos Comentários às Sentenças do Doctor Modernus, a sua obra e doutrinas tiveram um impacto efetivo

trum Praedicatorum 71 (2001) 183–300. Uma bibliografia completa e actualizada dos estudos sobre Durando pode consultar-se aqui: «Edition des Sentenzen-kommentars des Durandus von St. Pourçain – Bibliography», in A. SPEER (ed.), Thomas-Institut, (verificado em 2011-08-12), URL= www.thomasinstitut.uni-koeln.de/fileadmin/user_upload/downloads/durandus/

durandus_bibliographie.pdf. Um estudo bastante detalhado sobre a atividade cognitiva em Durando: J.-L. SOLÈRE, «The Activity of The Cognitive Subject Ac-cording to Durand of Saint-Pourçain», Boston College (verificado em 2011-08-12), URL= https://www2.bc.edu/~solere/docs/PAPERS/DURAND%20ON%20 COGNITIVE%20ACTS.pdf. Peter John Hartmann (Universidade de Toronto), que colabora no Projecto de edição crítica da obra de Durando (Thomas Institut), de-dica-se actualmente ao estudo de Durando. Na sua página pessoal disponibiliza a tradução de algumas Distinctiones do Comentário de Durando às Sentenças: Peter John Hartman's Personal Webpage at the University of Toronto (verificado em 2011-08-12), URL= http://individual.utoronto.ca/peterjh/durand.html, além de o artigo Durando of Saint-Pourçain and Thomas Aquinas on Representation, on-de confronta a tese tomista e a on-de Durando sobre a representação e a sua fun-ção no ato cognitivo, apontando as principais divergências entre ambos: P. J. Hartmann, «Durando of Saint-Pourçain and Thomas Aquinas on Representati-on», University of Toronto, Peter John Hartman's Personal Webpage at the Uni-versity of Toronto (verificado em 2011-08-12), URL = http://individual.utoronto.ca/peterjh/

pjh_WritingSample.pdf.

42 Primeira versão (1307-1308), recolhe as lições de Paris. Segunda versão

(1310-1313), corrigida, após a dura crítica de Herveu de Nédellec acerca do no-minalismo de Durando. Terceira versão (1327). Está em curso no Thomas-Institut um Projecto de edição crítica do Comentário de Durando às Sentenças: «Edition des Sentenzenkommentars des Durandus von St. Pourçain», in A. Speer (ed.), Thomas-Institut, (verificado em 2011-08-12), URL= http://www.thomasinstitut. uni-koeln.de/11611.html?&L=1.

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a partir de 1508, data da 1ª edição impressa, e ao longo do século XVI43.

Compreende-se, assim, que Suárez encontre em Durando um interlocutor natural44. Na DM VIII, Secções I e II refuta a tese central de Durando acerca do conhecimento. Basicamente, Durando de-fende que há conhecimento quando algo capaz de perceber (um in-telecto possível) e algo capaz de ser percebido (uma coisa inteligí-vel) estão mutuamente presentes. A verdade do ato cognitivo con-siste nesta co-presença. No intelecto, mediante o juízo, ela nada mais é do que uma denominação extrínseca: uma referência àquela verdade primeira e formal, dada na concomitância coisa-objeto re-presentado.

O texto de Durando que Suárez refere é o Livro I do Comentá-rios às Sentenças, dist. XIX, q. 5. De facto, é um comentário às te-ses aí expostas que se verifica na DM VIII. As tete-ses aí presentes sobre a verdade como adaequatio entre intelecto e coisa são basi-camente as seguintes45:

1. Esta adequação não pode dar-se por essência, pois nesse sentido intelecto e coisa são diferentes quer essencialmente, quer em género (§ 8 e § 10).

2. Há duas formas de entender que algo está no intelecto – subjective e objective. Os que defendem que há conformidade sub-jective no intelecto, afirmam que ela corresponde à espécie da coi-sa. Os que defende que a conformidade se dá objective negam que a espécie seja o ato de entender e afirmam que o próprio ato é uma semelhança da coisa (§ 9).

43 Durandus a Sancto Porciano, Commentaria in Quatuor Libros

Sententi-arum, Paris, 1508, 1515, 1533, 1539, 1547, 1550; Lyon, 1533 e 1569; Antwerpia, 1567; Veneza, 1571 e 1586. A edição de Veneza 1571 foi reimpressa em 1964 pela editora The Gregg Press, Ridgewood, NJ.

44 Courtine nota ainda que as teses de Durando eram defendidas por

Vazquez, sendo conhecida a rivalidade entre ambos os Jesuítas (Cf. COUTRINE, Suárez et le système, cit., p. 176).

45Uma versão latina do texto está disponível em

http://www.thomasinstitut.uni-koeln.de/fileadmin/user_upload/downloads/durandus/distinctio_19b.pdf (verifica-do em 2011-08-13). A (verifica-doutrina que Suárez critica encontra-se principalmente nos §§ 8 a 14.

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3. Há dois modos de se dar a conformidade: no ser e na repre-sentação (in essendo / in representando). Mas a conformidade em que consiste a verdade (1) não pode dar-se in esendo porque tudo o que existe subjectivamente no intelecto é um acidente, e a coisa exterior é a maior parte das vezes uma substância material ou, se é um acidente, é um acidente corpóreo. Ora, o intelecto é espírito. (2) Não pode dar-se in representando, por um argumento da prioridade na ordem da natureza da representação sobre o intelecto: primeiro na ordem da natureza dá-se o objeto presente à potência pela es-pécie. E depois segue-se o conhecimento. Logo, o conhecimento é um ato segundo e, por isso, a verdade dele não consiste na ade-quação ou conformidade que existe entre a espécie (se é que exis-te) e a coisa segundo a representação [§ 11]46.

4. A coisa é representada apenas segundo o ato de entender e não por algo anterior a ele: a representação é ela própria conheci-mento. Porém, daí não se deduz que a conformidade na represen-tação ou no conhecimento diga respeito a algo que esteja subjecti-vamente no intelecto, mas antes que está objetisubjecti-vamente [§ 12].

5. A verdade é formalmente a condição do objeto do intelecto [e não de algo existente subjectivamente no intelecto]. O objeto apre-ende a coisa tal como ela é em si própria no ser. Portanto o objeto comporta-se no intelecto conforme o ser real da coisa: relaciona-se

46 Jean-Luc Solère mostra que esta exigência de ordem está em Durando

por influência da doutrina augustiniana do conhecimento (presente nos prede-cessores de Durando, como Henrique de Gante e Pedro Joao de Olivi): «(…) the object of the senses or of the intellect cannot be the cause of the senses’ feeling or the intellect’s understanding. In a typical fashion, Durand at this point quotes Augustine’s De musica VI (c. 5), which rules out that the soul undergo some ac-tion originating from the body. When the body is affected, the soul, so to speak, simply remarks what occurs in the body». (Solère, «The Activity of The Cognitive Subject…» cit, p. 9) Esta doutrina de Agostinho é interpretada por Durando no sentido de fazer anteceder a verdade a qualquer ação da alma, quer seja a re-presentação, quer seja o ato do entendimento. A verdade formalmente (o verum) dá-se na copresença entre coisa e objeto. O ato cognitivo é uma mera relação com o verum apreendido no objeto. E é pelo verum que se dá naquela copresen-ça que o ato cognitivo é veradeiro. Escreve Solère: «(…) To know intellectually (intelligere) is a mere relation to an object, not an absolute form which combines with the intellect». (J.-L. SOLÈRE, «The Activity of The Cognitive Subject…», cit, pp. 25-26). Neste sentido, há alguma coincidência entre a conceção de Durando e a de Suárez.

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por isso com o ser real dela. A conformidade em que consiste a verdade é esta apreensão objetiva. Por isso, a verdade objective é uma relação real [§ 13].

6. Porém, a verdade do conhecimento é uma relação de razão: trata-se de uma relação que o intelecto estabelece consigo mesmo segundo o ser apreendido com o objeto, segundo o ser real. A ver-dade no intelecto é um ente de razão porque aquilo que se atribui à coisa só segundo o ser do intelecto é um ente de razão. E a verda-de é verda-deste modo [§14].

A posição de Durando identifica a verdade formal com a apensão da coisa pelo sujeito cognoscente, afinal, com o ato de re-presentar, mais do que com o ato de entender. O conhecimento verdadeiro é um ato que depende fundamentalmente do objeto, e não do sujeito. Por isso, conhecer é apreender a singularidade das coisas e toda a elaboração subjectiva que o intelecto faz sobre elas é uma ação do intelecto sobre algo apreendido: uma relação sem termo real, ou seja, uma relação de razão. Aqui manifestam-se os elementos básicos do nominalismo de Durando: só se conhece o singular, no conceito objetivo, onde há conformidade verdadeira en-tre intelecto e coisa. Por seu turno, toda a elaboração subjectiva do intelecto – quer na representação do universal, quer na atividade proposicional – é mera construção do intelecto.

Suárez rejeita estas teses, porque considera que a verdade como conformidade é uma propriedade do intelecto cuja origem é a referência à coisa. Porém, e não obstante a crítica que faz a Duran-do, as duas posições não se opõem radicalmente. O que Suárez não aceita na tese de Durando é a consideração da verdade formal, no plano metafísico, como adequação coisa-objeto e, no plano psi-cológico, a direta apreensão desta conformidade por parte do inte-lecto. A crítica suareziana incide sobre esta identidade entre conhe-cimento verdadeiro e apreensão da coisa e, por conseguinte, indire-tamente, opõe-se à rejeição de Durando da mediação das espécies no ato cognitivo.

Essa rejeição fica mais clara no comentário ao De anima, pois aí o ato cognitivo é analisado do ponto de vista ‘físico’, isto é, desde o modo como a alma humana o processa.

Porém, Suárez não nega que o ato cognitivo seja um determi-nado tipo de relação. Durando considera-o uma relação real dada

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