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MANIFESTAÇÃO AMBIENTAL, QUASE-CINEMAS E JACK SMITH

2. LABIRINTO CONTEXTUAL: FLUXUS, JACK SMITH E CINEMA EXPANDIDO

2.3. MANIFESTAÇÃO AMBIENTAL, QUASE-CINEMAS E JACK SMITH

Uma característica importante do programa de Oiticica é tirar radicalmente a obra de arte do museu – segundo Lisette Lagnado, sua atividade passou a ser “subterrânea” (2003, p.3) –, acabar com seu isolamento, fazê-la vir até o público, que por sua vez precisa participar da obra para que ela se construa:

[...] Quando proponho um shelter71 para a época de minha obra de

MANIFESTAÇÃO AMBIENTAL, na verdade proponho o fim do ‘museu’ ou da ‘coleção privada’, ou melhor, quero mostrar q essas obras não se destinam a esses fins. (OITICICA, PHO 0316/73, p. 9)72

A desativação dos meios tradicionais de expor e contemplar arte é uma das ações propostas pelo Programa Ambiental de Oiticica, que chega ao seu limite na década de 1970, justamente quando somou a ele suas ideias de rompimento com a estrutura tradicional do dispositivo cinema. Esse programa já vinha se desenvolvendo a partir de 1959, quando Oiticica partiu da experiência com a cor, através dos Metaesquemas, e instaurou o “fim da pintura”, criando os Núcleos e Penetráveis, os Bólides, os Parangolés e, finalmente, a Manifestação Ambiental, que fez deslocar o espaço e o tempo, instaurando a participação do antigo espectador contemplativo que agora era levado, através de experiências suprassensoriais, a mudar sua forma de se comportar e de enxergar o mundo. Forma-se, em torno do Programa Ambiental, uma teia de conceitos coesos que permeiam toda a sua obra.

Em 1968 Oiticica escreve sobre o projeto Barracão, cujo

objetivo seria o de construir uma casa em madeira como as das favelas, onde as pessoas a sentiriam como se fosse o lugar delas, talvez nas montanhas perto daqui, onde o meu grupo iria para fazer coisas, conversar, conhecer pessoas73;

este teria surgido através da necessidade de expandir a corporalidade dos

71 “Shelter”, do inglês: “abrigo”.

Parangolés para um espaço arquitetural para lazer inventivo (o conceito de Crelazer aqui se radicaliza). A ideia era a de transformar a moradia em obra aberta para “experimentações-limite” (e não para construção de obras) através da vivência individual em um ambiente coletivo, cuja estrutura formasse um todo “corpo-ambiente”:

BARRACÃO não seria algo q se pudesse reduzir a “arquitetura experimental” mas como q estrutura transformável segundo as atividades experimentais de um determinado grupo ou mesmo de um indivíduo (o que seria a suprema ironia); BARRACÃO seria modelo experimental do lazer como atividade positiva: essa atividade estaria ligada na origem à necessidade de assumir e tomar de assalto o comportamento como elemento principal atuante na experimentalidade-núcleo acima referida: nada de grupo dedicado “de boa fé” ao “espírito” ou à “arte”; seria núcleo de experimentações-limite – esse grupo é o q de mais variável e hipotético se possa prever: na verdade como eu pensara e quisera não o foi: a situação geral de desintegração do q é experimental no Brasil tornou impossível e suicida a experiência: e me fez ver algo: q o sentido e a natureza do projeto BARRACÃO é a de estrutura adaptável e cujas origens e diretivas podem dar origem e erigir a experiência em outras circunstâncias não limitada (o projeto BARRACÃO) a lugar e tempo; se o q houve no BRASIL castrou a experiência ainda em projeto ela como semente q é não se limita a essa circunstância-limite: ela é circunstância aberta: projeto circunstancial: que é a natureza mesma dela: se o lazer tomado como experimentalidade está submisso a circunstâncias de ordem social-ético-política ao dia-a-dia na própria sequência de vida dos indivíduos q nela se envolvem e q nem se sabe se é sequer possível experimentado mesmo nos princípios gerais e mesmo q de modo superficial seja abordado então não se pode querer limitá-lo a programa limitado a deadlines mesmo q amplas: é programa pra vida: é programa que se discuta e no qual a discussão da razão de ser dos valores deva ser constante: é experiência q deve sofrer etapas q têm que nascer, desaparecer, renascer e transformar-se segundo circunstâncias de ordem geral: de ordem aberta: de modo q o q se mantém constante é no fim a proposta inicial no estado mais direto: o lazer como núcleo experimental é o proposto como síntese de experiências propostas ligadas ao comportamento: corpo-ambiente: o dia-a-dia como campo experimental aberto. (OITICICA, 25/01/1986)

O projeto não foi realizado naquele momento, no Rio de Janeiro, porém, a ideia de viver em permanente estado de lazer inventivo se concretizou quando

morou em Nova York na década de 1970, quando Oiticica transformou seus dois apartamentos em “ninhos”. Nas palavras de Décio Pignatari (1980):

Em sua casa, em torno de um beliche, montou um penetrável ambiente de ninho parangolé – uma teia labirinto bricolada de todas as colagens, acrescida de toda uma parafernália informacional ao alcance da mão: do lápis ao arquivo, do aparelho de som à televisão, um sempre ligado, outra sempre sem som; frases-lema pelo teto. E ele lá em cima, deus e pássaro. Livros. Leitura. Risos. Sonhava um grande voo.

Seus amigos o visitavam constantemente, como a visita de Neville D’Almeida, que gerou as fotografias de Cosmococas - programa in progress, além das entrevistas com amigos para os “Heliotapes”. Essas vivências criativas podem ser comparadas com as que aconteciam no apartamento de Jack Smith. Mesmo a cinematografia de Hélio Oiticica pode ser analisada traçando paralelos, linhas de força que também estão presentes nas experiências com slides de Smith. Após ter passado oito anos trabalhando com o cinema tradicional, a partir da década de 1970 Jack Smith começou a incorporar performances a seus filmes, a trabalhar objetivando a desconstrução do dispositivo cinema através dos slides, além do uso de multiprojeções, o que antecipou o que Gene Youngblood denominaria ainda em 1970 de Expanded Cinema. Nas performances, ele projetava nas paredes de seu apartamento recombinações de imagens de slides e de seus filmes, misturados, e muitas vezes editava as películas ao vivo usando fitas adesivas (antecipando também o Live Cinema). Ao mesmo tempo, construía sons com vinis e fazia uma ação teatral ao vivo. Não havia roteiros, tudo se passava de maneira espontânea, casual. As pessoas que frequentavam seu apartamento se sentiam parte integrante da performance.

Com exceção de Agrippina é Roma-Manhattan, que é filme super-8 não- linear formado por blocos-cinema, os quase-cinemas constroem ambientações de imagens não-narrativas e sons montados casualmente para performance do público, através da multiprojeção de slides. Consiste na radicalização dos conceitos da Arte Ambiental. Nas palavras de Oiticica, que demonstram forte

SLIDES: não-audiovisual porque a programação quando levada à performance amplia o alcance da sucessão desses SLIDES projetados q se enriquecem ao se relativizarem numa espécie de ambientação corny: JACK SMITH com seus slides fez algo q muito tem a ver com o q almejo com isso: do seu cinema extraiu – em vez de visão naturalista imitativa da aparência – um sentido de não-fluir não narrativo: os slides duravam no ambiente sendo q o projetor era por ele deslocado de modo a enquadrar a projeção em paredes-teto-chão: o sound track era justaposto acidentalmente (discos). (OITICICA, 1996, p.180)