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2. Bolívia Republicana

2.3. Manifiesto de Tiwanaku

Os anos 60 inauguram novo ciclo na América Latina. A disputa de hegemonia pós-Segunda Guerra se amplifica regionalmente com a vitória da Revolução Cubana de 1959, e os interesses estadunidenses ganham contornos de resguardo militar no cone sul, de modo que, tal qual no Brasil, a Bolívia se vê entremeada por um golpe militar no ano de 1964.

A Revolução de 1952 havia dissolvido o exército sob controle das oligarquias bolivianas, colocando no lugar milícias armadas. Entretanto, o avanço dos trabalhadores mobilizou, em um impulso de autopreservação (SOTO, 1994), o governo instituído a reorganizar o aparato repressivo, agora sustentado sob viés de uma doutrina de segurança nacional, ajustada aos Estados Unidos e ressentida da derrocada em 1952.

Nesse sentido, ao mesmo tempo que se buscava a garantização da hegemonia pela organização da força militar e sua incorporação na burocracia estatal, no curso da degeneração do MNR também se urdia a sua superação.

O discurso das forças armadas como “institución tutelar de la Patria” se amplia até que, em 4 de novembro de 1964, com a cumplicidade das milícias campesinas (IDEM, IBIDEM), irrompe-se novo golpe da história boliviana e se perfaz as bases do pacto militar-campesino.

É interessante observar que, diante dos rompimentos programáticos do MNR e da tentativa de 3º mandato de Paz Estenssoro, parte de sua base aliada, vinculada ao COB e aos obreros da mineração, rompe ou é expulsa do MNR, a exemplo do seu vice-presidente, Juan Lechín Oquendo. Curiosamente, estes setores fundam um novo partido, o PRIN – Partido Revolucionario de la Izquierda Nacional. O referido partido passa a apoiar o golpe em curso e, logo em seguida à sua consolidação, passa a ser perseguido, com a prisão de Lechín Oquendo e posterior exílio.

Se, por uma via, fomentava-se uma relação populista e paternalista com setores do campesinato, capaz de mobilizar um conjunto de milícia cujas bases derivam do próprio MNR, por outra, a implementação dos projetos imperialistas estadunidenses passava pelo esfacelamento de forças populares divergentes. A repressão a professores, universitários e mineiros era aberta.

Desse momento específico, dois fatos são dignos de nota, que dizem do nível de ingerência estadunidense na Bolívia da época. O primeiro gira sobre oficial da SS nazista, Klaus Barbie, conhecido como o carniceiro de Lyon. Após a Segunda Guerra, recrutado pela inteligência estadunidense, teve sua fuga organizada para a Bolívia, onde assumiu a identidade de Klaus Altmann, vindo a prestar serviços para os militares que estavam no poder39, dirimindo qualquer dúvida infantil sobre a irmandade xifópaga do imperialismo e o nazifascismo.

Outro fato que merece destaque sobremaneira ao último elencado diz respeito ao processo de guerra de guerrilhas ocorrido nesse momento histórico boliviano, com captura e assassinato de Ernesto Guevara de la Serna, o Che, em 1967, bem como de outros componentes da Guerrilha de Ñancahuazú, o Ejército de Liberación Nacional de Bolívia, tudo sob ordem de Barrientos.

Quando Barrientos morre em 1969, a sucessão presidencial se daria com Siles Salinas, seu vice-presidente, contudo, sem respaldo político, logo foi derrubado pelo general Ovando, e em 1970, este, por sua vez, por meio de outro golpe, foi substituído pelo general Juan José Torres.

Torres, não obstante haver sido falangista quando em juventude (KLEIN, 2016), apontava neste período para posições mais à esquerda, abrindo diálogo com a União Soviética e restringindo contratos e benefícios estadunidenses em solo boliviano. Tal posição gerou reações nos círculos militares de representatividade na região cruceña, fazendo com que o diretor do Colegio Militar, Hugo Banzer, intentasse, em janeiro de 1970, um golpe para assumir a presidência.

Sem sucesso, mas com o inevitável acirramento da luta de classes, o que se observa é a tentativa de Torres de buscar mais enraizamento e apoio a partir da participação obrera. O resultado foi a instauração da chamada Asamblea del Pueblo, também conhecida como Comuna de La Paz, “instrumento de democracia direta, com nítido programa socialista e autônomo [...] Liderada por mineiros e pela COB” (VALENÇA, 2017. P. 89), mas que também congregou camponeses e setores médios urbanos.

Após uma série de enfrentamentos (DAZA, 2015) e sobre uma base composta por empresários, FSB, MNR, FFAA, Banzer consegue, em 21 de 39 https://operamundi.uol.com.br/historia/33516/hoje-na-historia-1983-klaus-barbie-chefe-da- gestapo-e-preso-na-bolivia

agosto de 1971, em novo golpe, destituir Torres. Com o lema “Ordem e Paz”, tratou de fechar universidades, perseguir dirigentes sindicais e líderes da esquerda organizada, dando início ao momento mais autoritário da Bolívia sob a forma de República, ainda mais depois de 1973, quando a configuração político- autoritária latino-americana se aprofundou com o golpe no Chile.

No campo educativo, dois caminhos de análise, contemporaneamente, apresentaram-se. De um lado, havia a reivindicação, de base popular, sobre qual tipo de educação necessitava a Bolivia, expressa no primeiro “Manifiesto de Tiwanaku”, enquanto de outro, de caráter Estatal e oficialmente consolidado, a promulgação de um aparato normativo, sobretudo, de rearranjos da legislação vigente desde 1955.

Do campo popular se constitui o movimento Katarista, derivado de múltiplas determinantes desde a Revolução de 1952, mas essencialmente da articulação de setores universitários, de escolas normais e de intelectuais campesinos Aymaras, com algumas organizações de comunidades originárias que se viram migrantes a La Paz e entorno em razão dos parcelamentos de solo durante a reforma agrária.

Estes sujeitos, que produzem síntese de movimentos e centros culturais e campesinos, passam a fazer uso fecundo de programas de rádio, em especial “La voz de Tupaj Katari”, da Radio Progresso, e ações de valorização cultural Aymara, em diálogo com a perspectiva da Teologia da Libertação latino- americana, a perspectiva educativa freireana (DAZA, 2015), o marxismo de Mariátegui (VALENÇA, 2018) e o Indianismo de Fausto Reinaga40, derivando no Indianismo Katarista.

No ano de 1973, finalmente o Katarismo se faz público, por meio do citado Manifiesto de Tiwanaku, documento que posteriormente daria sustentação a perspectivas descolonizadoras. Nessa oportunidade, apresentam sua visão sobre a educação e sociedade boliviana de então (BOLIVIA, 1973):

40 Fasuto Reinaga foi importante intelectual boliviano, com incursões no marxismo e militância no partido comunista boliviano, mas, a partir da década de 70, formula uma interpretação própria sobre a realidade indígena, sintetizando, em sua obra “Tesis India”, o que ficou conhecido como Indianismo. Coincidentemente, tive contato com sua obra pela primeira vez em 2009, quando, com alguns amigos, comprei exemplares de Tesis India de uma senhora que, posteriormente, saberíamos ser a própria filha de Fausto Reinaga.

[…] Dos problemas sumamente graves vemos en la Educación Rural; el primero es en cuanto al contenido de los programas y el segundo en cuanto a la grave deficiencia de medios. Para nadie es un secreto que el sistema escolar rural no ha partido de nuestros valores culturales. Los programas han sido elaborados en los ministerios y responden a ideas y métodos importados del exterior. La Educación Rural ha sido una nueva forma (la más sutil) de dominación y anquilosamiento. Las Normales Rurales no son más que un sistema de lavado cerebral para los futuros maestros del campo. La enseñanza que se da es desarraigada tanto en lo que se enseña como en los que enseñan. Es ajena a nuestra realidad no sólo en la lengua, sino también en la historia, en los héroes, en los ideales y en los valores que transmite. En el aspecto de organización práctica la escuela rural es una especie de catástrofe nacional. El presupuesto de Educación es deficiente y está mal distribuido correspondiendo mucho más a la ciudad que al campo. Aún en la actualidad el 51% de los niños del campo no pueden ir a la escuela sencillamente porque no existe en sus comunidades. El campo no sólo carece de aulas, carece de libros, de pizarrones, de pupitres, de material didáctico y sobre todo de maestros que aman realmente a nuestro pueblo oprimido. Podríamos seguir señalando todos los aspectos de la vida campesina para ver cómo se desarrolla dentro de la miseria más espantosa y el total abandono de nuestras autoridades. La revolución en el campo no está hecha; hay que hacerla. Pero hay que hacerla enarbolando de nuevo los estandartes y los grandes ideales de Tupaj Katari, de Bartolina Sisa, de Willca Zarate. Hay que hacerla partiendo de nosotros mismos. En nuestro legendario altiplano no existen obras de infraestructura, no hay caminos, no hay electricidad, no hay hospitales, no hay progreso. El transporte es muy deficiente, los sistemas de comercialización anticuados. La orientación técnica casi nula. Se crean en el campo excesivo número de Escuelas Normales, pero no existen Escuelas Técnicas. Prácticamente todo está por hacer. No pedimos que se nos haga; pedimos solamente que se nos deje hacer. [...]

Como visto, o manifesto faz uma leitura bastante contundente sobre a educação boliviana, compreendendo-a como apartada do conjunto dos valores culturais, da realidade, da língua, da história, dos ideais e dos heróis, correspondendo muito mais a uma forma sutil de dominação e aniquilamento, com ideias e métodos importados do exterior; e, no campo da infraestrutura, encontrava-se em desigualdade quanto aos investimentos no campo e na cidade, com mais da metade das crianças do campo sem acesso à escola.

Em contrapartida, com Banzer na estrutura oficial Estatal e completamente indiferente às reivindicações do Manifesto, datam deste período a ley de Educación Bánzer, de 1973, a ley de Evaluación Educativa, de 1974, e a Ley de Escuelas Normales de Bolivia, de 1975, que, segundo Aguilar Gómez

(informação verbal - 2019), procederam com algumas transformações, com avanços em alguns temas educativos “porque impusieron por la vía de la fuerza aspectos de modernización, pero no lo hicieron con el maestro, lo hicieron contra el maestro”, ratificando as afirmações do manifesto katarista.