• Nenhum resultado encontrado

117 5.3.3 MARCADOS DO CORPO AO TERRITÓRIO

No documento Claudia Andujar: geografias do corpo (páginas 117-119)

MARCADOS DO CORPO AO TERRITÓRIOA TERRA YANOMAM

117 5.3.3 MARCADOS DO CORPO AO TERRITÓRIO

A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo da terra.94

Os retratos dos Yanomami que compõem a série Marcados95 são bastante conhecidos atu-

almente, ao circularem no meio das artes. Uma série de oitenta e dois retratos em preto e branco, nos quais os retratados encontram-se posicionados frontalmente à câmera sob um fundo neutro e com placas numeradas penduradas no pescoço, algumas delas em contato direto com o corpo nu. São mulheres, crianças, jovens, homens e velhos Yanomami que se apresentam diante da câmera e parecem estabelecer um diálogo com o público observador. Ao entrar em contato com os retratos que constituem a série Marcados, poderíamos nos perguntar, quem são esses sujeitos? O que significaria a identificação numérica que se apresenta sobre seus corpos? Qual o propósito dessas imagens?

Observando atentamente a composição dos retratos – frontalidade dos corpos, fundo neu- tro, identificação numérica, que visam identificar os corpos – notamos certa aproximação às fotografias antropométricas produzidas nos séculos XIX e XX, nas quais os povos indígenas eram catalogados como “exóticos”. Mas a repetição dos retratos nos chama atenção à ex- pressividade dos retratados, por meio do olhar que dirigiam à câmera – dor, indiferença, medo – o que parece revelar a relação dialógica que a fotógrafa estabelecia com os Yano- mami. Enquanto os enquadramentos flexíveis dos retratados possibilitam entrar em contato com as singularidades dos corpos expostos – uns apresentavam-se por vezes ornados com pinturas corporais e adereços de sua cultura, ao passo que outros apresentam-se vestidos com trajes do homem “branco”, evidenciando os distintos níveis de contato com a civilização ocidental.

Ao encontrarmos esses retratos expostos lado a lado, é possível notar alguma presença do passado de Claudia Andujar – o massacre sofrido por seus familiares judeus durante o holocausto, cujos corpos ameaçados também eram identificados numericamente. O que revela um dos aspectos da aproximação afetiva da artista do povo Yanomami, com o qual 94 CASTRO, Eduardo Viveiros. Os involuntários da Pátria. In Cadernos de Leitura n.65. Belo Horizonte: Edições Chão de Feira, 2017, p.8.

95 A série de fotografias que compõe Marcados foi mostrada numa instalação, com o mesmo título, na 27a Bienal de São Paulo, em 2006. [...] Com título Marked for life, Marked for Death a instalação com três dessas fotos, foi mostrada na exposição Citizens, no Pitshanger Mannor Gallery House, em Londres em 2005, com itine- rância por vários museus ingleses ao longo do mesmo ano. Curadoria de Cynthia Morrison-bell e Laymert Garcia dos Santos. (SENRA, 2009) A série circulou pelo mundo ainda em outras exposições, e o foto-livro Marcados, compilando imagens e apresentando o trabalho de saúde desenvolvido pela CCPY, acompanhado de textos de Claudia Andujar e Stella Senra, foi publicado pela editora Cosac & Naify em 2009.

compartilhava a mesma dor que havia sofrido em sua trajetória de vida. A associação entre a situação dos Yanomami e o holocausto, desse modo, possibilita redimensionar a violência sofrida pelos povos indígenas, de fato um genocídio – um holocausto nos trópicos.

Se as fotografias antropométricas tinham um intuito de produzir imagens dos povos indíge- nas para o europeu, objetificando-os e reforçando seus estereótipos; os retratos que Claudia Andujar produzia do povo Yanomami partiam de um outro propósito, ao identificá-los para um projeto de saúde organizado pela CCPY em 1980, com intuito de salvá-los das epide- mias que os ameaçavam. O projeto de saúde havia iniciado como resposta à epidemia de sarampo, que havia se alastrado entre os Yanomami em 1976, ocasionada pelo contato com os invasores de suas terras durante a construção da rodovia Perimetral Norte entre 1973-74, que atravessava suas terras nos Estados de Roraima e Amazonas, fazendo parte do “Progra- ma de integração da Amazônia” implementado pelo governo militar.96

Com intuito de fazer um levantamento da situação de saúde dos povos afetados pelo contato com o branco, o grupo organizado pela CCPY empreendeu algumas viagens para identi- ficar a população em risco e coletar dados para a demarcação de seu território. Claudia Andujar participou desse processo realizando fotografias para identificação do povo Yano- mami. Também contribuiu, junto de outros integrantes, para a coleta de informações sobre a organização de suas sociedades. O resultado desse processo foi Relatório Yanomami

1982 – Situação de contato e saúde da CCPY, que relata as dinâmicas sócio-espaciais de

sua organização, fundamental para a campanha de demarcação e reconhecimento da Terra Indígena Yanomami pelo governo.

Claudia Andujar, que havia vivenciado de perto a cultura do povo Yanomami, tinha conheci- mento de que o povo Yanomami se organizava sob o princípio da coletividade, e portanto, em sua cultura não existia o conceito de identidade – próprio da sociedade moderna. Davi Kopenawa comenta em A Queda do céu (2015) que, de maneira distinta da sociedade oci- dental, os Yanomami não são identificados com nomes próprios logo ao nascerem por sua famílias, e a eles são atribuídos apelidos ao longo da vida por parentes e amigos, os quais não gostam de ouvir por se sentirem insultados.97

No entanto, o gesto de identificá-los numericamente, ainda que fosse uma imposição da cultura ocidental sobre esses corpos, justificava-se como procedimento necessário para que a campanha de vacinação pudesse assistí-los. Stella Senra, em texto no qual faz uma leitura dos retratos apresentados no livro Marcados publicado em 2009, comenta a ambiguidade contida no gesto de marcá-los, associando-a à “dupla face do contato”.

Marcar/demarcar: esse duplo gesto sugere, de fato, uma correspondência entre a identificação dos indivíduos e a atribuição de um território – iniciati- vas do branco que refletem de modo exemplar a ambiguidade do contato.

96 ANDUJAR, Claudia. Marcados. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p.144.

97 KOPENAWA in KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 71.

119

No documento Claudia Andujar: geografias do corpo (páginas 117-119)