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A TEOLOGIA DE GUSTAVO GUTIÉRREZ E A EMERGÊNCIA DO ‘NÃO HOMEM’

MARCAS DE GUSTAVO GUTIÉRREZ NO UNIVERSO DA TEOLOGIA

Neste segundo capítulo da primeira parte do nosso trabalho, pretendemos fazer um levantamento dos temas mais inovadores em Gustavo Gutiérrez, que de facto nos fazem perceber que, com a TL, irrompeu uma nova forma de fazer teologia, novas abordagens e perspectivas, assim como conceitos e intuições inauditos ou, noutros casos, ideias antigas na tradição cristã, mas já muito esquecidas e nunca antes sublinhadas com tanto vigor e insistência.

A forma original por que se expressa e os caminhos de investigação peculiares que Gutiérrez irá propor e seguir na sua teologia, serão objecto do primeiro tema deste capítulo, intitulado ‘Uma metodologia inovadora’. Neste âmbito, serão apresentados, em particular, os ‘dois momentos’ da TL, onde se revela o carácter indutivo da metodologia deste ramo da teologia, que parte caracteristicamente do particular – da situação concreta do compromisso e da acção (práxis) do crente na história humana – para o geral, i.e., para o nível da reflexão teológica, à luz da Revelação cristã.

Ainda no contexto da metodologia inovadora, lançamos um segundo subtema para tratar da importância que a teologia de Gutiérrez sempre atribuiu ao papel das mediações. Sendo uma teologia tão focada nas realidades sociais e políticas, é natural que desse um particular relevo às ciências sociais e humanas, enquanto auxiliares da teologia. No campo mais específico da pastoral, a mediação das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) também se revelou de grande importância neste quadro.

O tema da metodologia é rematado pela revalorização que a TL faz da Sagrada Escritura, de resto, na peugada do Concílio Vaticano II. De facto, a presença e referência à Sagrada Escritura são uma constante na TL, de modo particular a referência ao Êxodo e aos profetas, no âmbito do Antigo Testamento; e ao Mistério Pascal e anúncio do Reino, no âmbito do Novo Testamento.

Após a análise destes aspectos metodológicos, iremos debruçarmo-nos sobre alguns conceitos e intuições fundamentais em Gutiérrez. Haveria outros para além daqueles que indicamos, mas estes são seguramente aqueles que nos parecem ser os mais emblemáticos do seu pensamento teológico. O primeiro deles é, naturalmente, o conceito de ‘libertação’. Donde vem esta expressão?; em que contexto se afirma?; qual o seu verdadeiro significado e alcance?. Destas questões nos ocuparemos com algum detalhe no tema sobre ‘A Libertação’.

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A partir da obra matriz ‘Teología de la Liberación – Perspectivas’, de Gutiérez, iremos analisar os três níveis de significado que lhe são atribuídos pelo autor: a libertação política; a libertação do homem na história; e a libertação entendida numa perspectiva teológica.

Outro tema fundamental na teologia de Gutiérrez diz respeito à teorização do princípio da opção preferencial pelos pobres, um marco fundamental da TL, que veio a influenciar todo o universo eclesial. A este princípio será dedicado um tema correspondente, epigrafado ‘A opção preferencial pelos pobres’. Neste contexto, teremos em conta algumas acepções do autor sobre quem é o ‘pobre’ e o que é a ‘pobreza’, bem como a exortação do Papa João XXIII a uma ‘Igreja pobre ao serviço dos pobres’.

De seguida, e tendo presente o que foi dito acerca da metodologia teológica inovadora de Gutiérrez, iremos debruçar-nos sobre ‘A teologia como reflexão crítica sobre a práxis’, que abre um novo tópico de análise. Iremos aprofundar o significado da palavra ‘práxis’, tão omnipresente no léxico da TL. A importância da intervenção cristã na sociedade e do compromisso na história, assim como do conceito de ‘ortopráxis’, também nos irão ocupar aqui.

Outro tema muito caro a Gutiérrez e que constitui uma contribuição notável da TL ao universo da teologia contemporânea, está patente no conceito de ‘pecado estrutural’ ou ‘pecado social’, ao qual se dedica o ponto seguinte. Trata-se de um conceito onde se manifesta a influência do pensamento do missionário dominicano espanhol Bartolomeu de Las Casas (séc. XVI), por quem Gutiérrez nutre enorme admiração. Teremos também ocasião de assinalar alguns documentos eclesiais onde este conceito também foi acolhido, ainda que nem sempre exactamente nos mesmos moldes em que foi entendido por Gutiérrez.

A dimensão do ‘conflito’ e da ‘luta’, presentes na TL, também serão objecto de um ponto próprio. Se a ordem social é injusta e violenta, não há como reconhecê-la ou legitimá-la. Nessa situação, terá que ser deposta e dar lugar a uma ‘nova sociedade’, fundada na fraternidade e na solidariedade. Grosso modo, é deste modo que se afirma a tese de Gutiérrez sobre esta questão.

No entanto, o apelo ao paradigma histórico da luta de classes, de influência marxista, irá colocar o autor no centro de algumas polémicas, polémicas entretanto esclarecidas, fosse pelo próprio autor, fosse pelo decurso do tempo e mudança de

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contexto ideológico e geopolítico. Contudo, como veremos, a dimensão do conflito mantém actualidade.

Após o ponto dedicado ao ‘conflito’ e à ‘luta’, apresentamos outro tema muito caro a Gutiérrez: a denúncia da ‘idolatria’ e da ‘alienação’. Partindo da Sagrada Escritura e do ensino de Las Casas, Gutiérrez identifica e denuncia o vínculo manifesto entre o sistema social e económico reinante e a idolatria dos mercados e do dinheiro. A alienação que envolve muitos agentes e beneficiários do sistema traduz-se normalmente no menosprezo, exploração e sofrimento de milhões de seres humanos, em favor do culto da avareza e do açambarcamento da riqueza.

Por fim, dedicamos o último ponto deste segundo capítulo do nosso trabalho à espiritualidade própria que Gutiérez empresta à sua nova teologia: ‘Traços de uma nova espiritualidade’, onde serão desenvolvidos temas como a vida, a gratuidade, o Reino de Deus e a unidade entre a história da salvação e a salvação na história. Sob este título, percorremos a concepção de Gutiérrez de um ‘Deus da vida’, que liberta de todas as forças (de morte) que degradam e oprimem a humanidade, em particular os pobres e os marginalizados.

Este Deus da vida, por sua vez, entrega-nos gratuitamente o dom do seu amor, dom este que só poderá, contudo, ser acolhido através da prática da justiça e da misericórdia. Só na justiça, prosseguida pelo processo libertador, poderá ser acolhido o Reino de Deus, pois o Reino já começa no aquém, i.e., no contexto da história humana.

Assim, a salvação, que é equacionada com a libertação, joga-se em dois tabuleiros – no mundo histórico e no mundo espiritual -, mundos que não estão separados de modo estanque, antes interagem, tal como a acção e a oração deverão sempre interagir. E aqui surge a ideia de unidade da salvação, por oposição ao dualismo, sempre denunciado por Gutiérrez.

1 – Uma metodologia inovadora

Uma das áreas mais inovadoras da teologia proposta por Gustavo Gutiérrez prende-se com a sua metodologia peculiar. Mais que um novo tema teológico posto à discussão, a TL em Gustavo Gutiérrez apresenta-se como uma nova forma de fazer teologia. Esta afirmação é reforçada por Pablo Richard, quando, falando da originalidade do método da TL, nos diz: “Confirma-se que a grande novidade da

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Teologia da Libertação não se encontra na linguagem nem na temática que emprega, mas na metodologia, é dizer, na sua maneira de fazer teologia”71. Outro conhecido teólogo da libertação, Juan Luís Segundo, sublinha também, como contribuição peculiar da TL, o seu novo método de compreensão teológico72.

Gustavo Gutiérrez afirma que, na TL da América Latina, existem duas intuições fundamentais: o método teológico e a perspectiva do pobre73. Entre outros temas, veremos uma e outra, em particular, ao longo deste capítulo.

Apesar de estar pensada e elaborada em função do contexto sócio-económico e político da América Latina, a TL não pretende ser uma teologia latino americana em sentido estrito, em termos do seu conteúdo. Antes, a sua intenção é a de ser uma teologia simultaneamente universal e particular: universal, porquanto considera a totalidade da fé, que, enquanto tal, pode ser vivida em qualquer parte do mundo; particular, porque uma determinada situação histórica, geopolítica e sócio-económica – a América Latina, no caso em apreço – permite perceber melhor determinados conteúdos da fé cristã.

A obra ‘Teología de la Liberación – Perspectivas’, de Gustavo Gutiérrez, rompe, em termos de perspectiva, com a teologia neo-escolástica ensinada tradicionalmente nos seminários do seu tempo, marcada pelo seu raciocínio dedutivo, para dar prioridade à análise da história humana e a uma ‘teologia incarnada’ na vida dos fiéis, que responda aos seus anseios e preocupações concretas.

A este respeito, Gustavo Gutiérrez reflecte também a influência que recebeu do pensamento de Yves Congar. Nos anos 60, este grande teólogo francês afirmara:

“Em vez de partir somente do dado da Revelação e da Tradição, como a Teologia clássica o fez geralmente, é necessário partir de um dado de factos e de questões recebido do mundo e da história. (…) Não nos podemos mais contentar em repetir o antigo, partindo das ideias e dos problemas dos séculos XVIII ou XVI. Temos de partir dos problemas, senão das ideias de hoje, como de um dado novo a ser esclarecido, sem dúvida, pelo dado evangélico de sempre, mas sem beneficiarmos de elaborações já adquiridas e possuídas na calma de uma tradição assegurada”74.

71

Cf. CHENU, Bruno, Théologies chrétiennes des tiers mondes, p. 33. Opinião citada. Tradução nossa.

72

Ver BROWN, Robert M., Gustavo Gutiérrez: An Introduction to Liberation Theology. Eugene, Oregon: Wipf & Stock Publishers, 2013, p.75.

73

Ver CHENU, Bruno, Théologies chrétiennes des tiers mondes, p. 18.

74

Cf. CONGAR, Yves, Situation et tâches présents de la théologie. Paris: CERF, 1967, p.72. Tradução nossa.

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Gustavo Gutiérrez irá concretizar, como poucos, este modo de pensar e fazer teologia. Com a irrupção da TL de Gutiérrez, pretende-se afirmar que a reflexão acerca da questão de Deus se faça doravante, e primacialmente, a partir das realidades sociais concretas. Isto é, parte-se da realidade social vivida para levantar questões a serem reflectidas à luz dos grandes acontecimentos da história da salvação, particularmente da experiência do ‘Êxodo’, no Antigo Testamento, e do mistério da Incarnação e da Páscoa do Senhor, no Novo Testamento. Isto permitirá, por sua vez, iluminar a vida das comunidades de base e ajudar a transformar o mundo, libertando os fiéis de toda a alienação.

Não é por acaso que Segundo Galilea, um conhecido teólogo da libertação, apresenta como fontes de elaboração metodológica da TL, por um lado, a realidade em que vive a Igreja na América Latina (a práxis libertadora dos cristãos); e, por outro, a Palavra e Revelação de Deus, a fé da Igreja, que verifica a práxis. Entre a práxis e a fé estabelece-se uma relação dialéctica: a TL vai da práxis à verificação da fé e da fé à práxis75.

Ao pensamento cristão não pode nunca ser indiferente o destino material e as questões de justiça deste mundo. Neste sentido, Gustavo Gutiérrez pretende que a reflexão teológica seja um meio efectivo de “construção de uma sociedade distinta, mais livre e mais humana”76. Enfim, a teologia tem que ser vivida como extensão do mistério da Incarnação de Deus na história humana; só assim é que ela alcançará a plenitude do seu sentido.

Se a Teologia Moral Social parte do estudo sistemático dos princípios ético- morais da Revelação cristã, visando a aplicação posterior desses mesmos princípios à vida quotidiana das comunidades cristãs – num processo de raciocínio tipicamente dedutivo -, na teologia de Gustavo Gutiérrez, pelo contrário, encontramo-nos essencialmente diante de um processo de raciocínio indutivo, que parte dos dados da práxis histórica (pastoral, eclesial e política) para, então, num momento posterior, reflectir sobre eles à luz dos princípios da Revelação cristã. Nas palavras do próprio autor, a TL tem “o intento de elaborar uma reflexão desde e sobre a prática à luz da fé”77.

75

Ver GALILEA, Segundo, Teologia da Libertação – Ensaio de Síntese, pp. 27-29.

76

Cf. GUTIÉRREZ, Gustavo, Teología de la Liberación. P.13. Tradução nossa.

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Há também quem, como Clodóvis Boff, prefira não falar, nem em método dedutivo nem em método indutivo, mas sim em “método dialéctico”78. Este faria a articulação entre aqueles dois. Trata-se, no fundo, da “interpelação mútua entre Evangelho e vida” de que nos fala o Concílio Vaticano II e o Papa Paulo VI79. Parece- nos uma ideia bastante feliz e que vai ao encontro do pensamento de Gustavo Gutierrez. De seguida, analisaremos, sucessivamente, três dimensões da nova metodologia introduzida por Gutiérrez: os dois ‘momentos’ da TL, as suas mediações e o uso específico da Sagrada Escritura feito pela TL.

1.1 – Os dois ‘momentos’ da Teologia da Libertação

No primeiro capítulo do seu livro, ‘Teología de la Liberación – Perspectivas’, Gustavo Gutiérrez expõe, com detalhe, os seus princípios metodológicos80. A trave mestra da sua metodologia, conforme já pudemos ir descortinando, é a seguinte: num primeiro momento, a atenção deve ser dada à práxis histórica, assente no compromisso com os pobres; apenas num segundo momento é que entra em cena a teologia propriamente dita, enquanto reflexão sobre o mistério de Deus e sobre a sua vontade para cada um de nós e para a sua Igreja.

A teologia aparece assim como reflexão crítica sobre a práxis histórica, esta última considerada como o conjunto das práticas, compromissos e opções existenciais, transformadoras e libertadoras, tomadas por cada indivíduo ou comunidade na história humana concreta. Esta práxis pressupõe um ‘engajamento’ libertador, i.e., uma adesão ao processo espiritual e político de libertação, que passa pelo compromisso com os mais pobres. Por sua vez, se este conjunto de práticas tiver a caridade no seu âmago, no seguimento de Cristo, poderá então designar-se por práxis ‘cristã’, de resto, na peugada de São Paulo, que, em Gal 5, 6, afirma que “a fé opera pela caridade”.

Para alicerçar e justificar espiritualmente a importância da práxis histórica, enquanto primeiro momento da TL, Gustavo Gutiérrez socorre-se de um antigo adágio jesuítico, atribuído a Jerónimo Nadal – ‘in actione contemplativus’ (‘contemplativo na acção’) -, assim como da espiritualidade do laicado, presente em muitos movimentos

78

Cf. BOFF, Clodóvis – BOFF, Leonardo, Teologia da Libertação no debate actual, pp. 21-22.

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Cf. VATICANO II, G.S. nº43 e PAULO VI, E.N. nº29.

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eclesiais mais recentes, e correspectiva promoção da acção do cristão no mundo e, até, da valorização do profano81. A importância do discernimento dos ‘sinais dos tempos’, com origem mais recente no magistério de João XXIII e do Concílio Vaticano II, reforçam ainda este entendimento.

Finalmente, Gustavo Gutiérrez fala-nos ainda do redescobrimento da dimensão escatológica como outro importante factor que afirma o papel incontornável da práxis histórica. A este respeito, diz-nos o autor que:

“(…) se a história humana é, antes de mais, uma abertura ao futuro, ela surge como uma tarefa, como um que fazer político; construindo-a o homem orienta-se e abre-se para o dom que dá um sentido último à história: o encontro definitivo e pleno com o Senhor e com os demais homens. «Fazer a verdade», como diz o Evangelho, adquire assim um significado preciso e concreto: a importância da acção na existência cristã”82.

Neste primeiro momento da TL, associado à práxis, que temos visto até agora, entra também em jogo, aparentemente de modo paradoxal, a contemplação. Este aspecto é sobretudo desenvolvido por Gustavo Gutiérrez em obras posteriores à ‘Teología de la

Liberación – Perspectivas’, que temos acompanhado até agora. O ‘primeiro momento’

passa, assim, a ser um momento, não só de práxis histórica, mas também de contemplação. A este respeito, o autor dirá que: “contemplar e praticar é no seu conjunto o que chamamos ‘acto primeiro’; fazer teologia é um ‘acto segundo’. É necessário situar-se, num primeiro momento, no terreno da mística e da prática, apenas posteriormente é que poderá haver um discurso autêntico e respeitoso acerca de Deus”83.

Concretizando esta ideia, Gutiérrez concluirá que a contemplação – que ele apresenta como o acto de estar amorosamente diante de Deus – e a prática ou práxis, enquanto compromisso e trabalho diário, constituem o momento de silêncio diante de Deus: “(…) podemos dizer por tudo isto que o momento inicial é o silêncio; a etapa seguinte é o falar”84.

Analisaremos de seguida o segundo momento: o momento de reflexão crítica, o momento de ‘falar’ sobre Deus, a teologia propriamente dita.

81

Ver Ibidem, p.62.

82

Cf. Ibidem, p.65. Tradução nossa.

83

Cf. Idem, Hablar de Dios desde el sufrimiento del inocente – Una reflexión sobre el libro de Job, p. 17. Tradução nossa.

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No pensamento de Gustavo Gutiérrez, a teologia, além de dever constituir um pensamento crítico de si mesma, dos seus fundamentos, deverá também adoptar uma atitude crítica em relação aos condicionalismos económicos e sócio-culturais que envolvem as comunidades cristãs, à luz da Revelação. Isto implica uma abertura ao mundo e às questões que o atravessam. Deste modo, a teologia deverá assumir uma atitude crítica em relação à sociedade e à própria Igreja.

Este segundo momento, o momento da reflexão teológica, é o momento do discurso sobre Deus. Segundo Gutiérrez, duas linguagens, que se entrelaçam profundamente, deverão presidir a este discurso sobre Deus: a linguagem profética e a linguagem contemplativa85.

A mensagem profética tem duas dimensões: uma dimensão de anúncio e uma dimensão de denúncia. Na primeira está em causa o anúncio da presença de Deus no mundo e no meio dos homens, um Deus que faz caminho connosco na história humana. Efectivamente, mais que pressagiar o futuro, o verdadeiro profeta é aquele que sabe ler e discernir, através dos ‘sinais dos tempos’, a vontade de Deus para os diferentes momentos históricos e seus desafios, em fidelidade ao Evangelho. A dimensão da denúncia, por sua vez, revela-se na capacidade de não calar diante do mal, do pecado, da injustiça flagrante. Por isso se fala na ‘coragem’ da denúncia profética. É uma linguagem de exigência.

A dimensão da denúncia, por sua vez, só faz sentido enquadrada no anúncio da benevolência, do favor e da misericórdia de Deus, sob pena de não haver esperança, virtude especificamente cristã.

Para Gutiérrez, no centro da mensagem profética encontra-se a relação entre Deus e os pobres. Na Sagrada Escritura, o Senhor está sempre atento ao pobre, escutando-o quando mais ninguém lhe liga, quando todas as portas se fecham diante dele. O carácter profético da mensagem dos profetas bíblicos baseia-se na Aliança e nesta o compromisso com os pobres é fundamental.

Sucede que a linguagem profética não é suficiente e é aqui que a dimensão contemplativa se faz presente. Torna-se imperioso enraizar que tudo vem de Deus, aceitando a sua vontade. A gratuidade e a liberdade soberana de Deus tornam-se então patentes. O amor de Deus não se deixa encerrar em nenhum sistema de prémios e castigos, tão ao jeito do mundo dos homens, como se constata no livro de Job. Falando

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deste personagem, Gutiérrez refere que, afinal, depois de todas as dificuldades e provações por que irá passar, Job chega ao ponto de acreditar “por nada” e aí se chega ao amor gratuito ou totalmente desinteressado, que se percebe através da contemplação: “O amor de Deus, como todo o amor, não se move num universo de causas e efeitos, mas no da liberdade e da gratuidade”86.

Assim se explica que o pobre seja amado preferencialmente por Deus. Não é que o pobre seja superior de um ponto de vista moral ou religioso, mas é-o simplesmente pelo seu estado de pobreza, marginalidade e abandono, uma situação contrária à vontade de Deus. O fundamento último deste ‘privilégio’ não está, pois, nos méritos do pobre, mas sim no próprio Deus, concretamente na gratuidade e universalidade do seu amor.

Não deixa de ser curioso constatar como a dimensão contemplativa – i.e. a escuta, a adoração, o assombro perante o amor de Deus -, em Gutiérrez, tanto se faz presente no ‘primeiro momento’ da TL – um momento em que o autor junta a mística e a práxis -, como no ‘segundo momento’ da TL, momento de reflexão e discurso sobre Deus. A tradicional dicotomia vita activa vs vita contemplativa aparentemente é suspensa por Gutiérrez, ao juntar, no ‘primeiro momento’ da TL, contemplação e acção.

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