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O ‘NÃO HOMEM’ NA HISTÓRIA

O PROCESSO DE LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

Guardamos este capítulo para rematar o percurso histórico do ‘não homem’ ao longo da história da Igreja e do mundo, à luz concreta das contribuições de Gutiérrez.

O ‘não homem’, recordamos, no sentido que Gutiérrez dá a este neologismo, enquanto o insignificante, o invisível da sociedade, o ausente da história, irrompe resolutamente na teologia, na década de 60 do século passado, no contexto da dinâmica daquilo que o autor designa como o ‘processo de libertação’ na América Latina.

Analisaremos este breve capítulo a partir de dois subtemas: o processo de libertação e o papel que a Igreja é chamada a adoptar perante este processo, aos olhos de Gustavo Gutiérrez.

1 – O ‘processo de libertação’

O ‘processo de libertação’ constitui, na sua origem, um movimento político e social de cariz revolucionário, de emancipação das classes sociais tradicionalmente mais desfavorecidas, desencadeado por uma nova consciência da realidade latino-americana – marcada por estruturas sociais e económicas que perpetuavam um sistema de injustiça social e de profunda desigualdade de oportunidades -, ao qual a TL se irá juntar, emprestando-lhe uma leitura teológica própria, a partir do princípio da opção preferencial pelos pobres e da recusa de uma visão (teológica) dualista, que separava o domínio temporal do domínio espiritual de forma estanque, como se fossem duas realidades indiferentes entre si.

Este novo entendimento da TL, marcado pela perspectiva do pobre e pelo anti- dualismo, naturalmente, bebe também do Concílio Vaticano II, com a revalorização que este fez da ordem temporal e o seu apelo à participação consciente dos cristãos no mundo da política, ainda que o mesmo Concílio deixe claro que, “A comunidade política e a Igreja são entre si independentes e autónomas, cada uma no seu próprio campo”346.

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Contudo, por via dos compromissos político-partidários incautamente assumidos por alguns dos representantes mais emblemáticos da TL – onde Gutiérrez também não foi excepção -, esta teologia, a este respeito, também se afastou do mesmo Concílio Vaticano II, pois o Concílio é claro à hora de prevenir que se misture a religião com a política partidária activa, particularmente por parte dos membros do clero347.

Se se fala de libertação pressupõe-se uma situação prévia de dependência e de opressão. E assim era, conforme já tivemos oportunidade de ver na primeira parte deste trabalho. A realidade da miséria social, da alienação e despojamento da grande maioria da população latino-americana daquele tempo imponha uma reflexão teológica estruturalmente diversa que rompesse com o sistema prevalecente - pautado pela mesma mentalidade colonial de séculos, simplesmente agora já não em relação ao império espanhol, mas em relação ao império do capital internacional – e adoptasse, de vez, a perspectiva do pobre. Foi isto que a TL procurou fazer ao juntar-se ao ‘processo revolucionário’, apelando concomitantemente à Igreja latino-americana que fizesse a mesma opção.

Tratando do tema da práxis de libertação e da fé cristã, Gutiérrez é claro ao afirmar que não se deve separar a reflexão teológica, nem da comunidade cristã nem do mundo em que esta se insere, com todos os seus conflitos e tensões, e que, por isso, opções políticas concretas também têm que ser tomadas pelos cristãos e pela Igreja, a partir da perspectiva do pobre, i.e., em solidariedade activa com os interesses e as reivindicações das classes mais desfavorecidas348.

Para Gutiérrez, ao associar-se a teologia ao processo de libertação seria por fim possível ultrapassarem-se séculos de uma mentalidade religiosa que desvalorizava o mundo temporal e as realidades políticas, como algo meramente passageiro, quase que irreal. E ao considerar a vida eterna como realidade exclusivamente futura, esta mentalidade religiosa, inadvertidamente, tornava o Evangelho inofensivo e supérfluo na história.

Urgia, pois, religar o Evangelho à história, incarná-lo na realidade do mundo e nos problemas da humanidade. Para tanto, havia que entrar no mundo da política e no mundo do outro, concretamente do pobre e do marginalizado. Para tanto, Gutiérrez coloca uma questão de fundo – quem foi o próximo deste homem? (a partir da parábola

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Neste sentido, ver G.S., nº73ss. Ver também C.D.C. Cân.287 §2.

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do bom samaritano) -; apela a uma nova compreensão do universo político; e propõe a transformação da história através do amor libertador349.

Para o autor, o cristão deve sair ao encontro do próximo - que no Evangelho é por excelência o pobre -, de modo a não ficar encerrado no seu pequenino mundo. Deve percorrer as ruas e praças, os bairros pobres, as minas e os campos, deste modo saindo do seu casulo. Ora, o mero assistencialismo e o espírito de reformismo não conduzem verdadeiramente ao encontro com o nosso próximo, pois perpetuam uma situação estática, na qual, é certo, é possível ajudar algum infeliz, mas sempre a partir de uma posição exterior e distante, protegida, sem envolvimento pessoal, e, sobretudo, sem mudança das regras de jogo.

A partir desta constatação, Gutiérrez apela então a uma nova compreensão do político. Urge ir às causas profundas da ordem social injusta do seu tempo, entrando no mundo do pobre e assumindo o confronto político que daí decorre, com vista à transformação estrutural da ordem social vigente, transformação esta que, em Gutiérrez, tem o condão de transformar (converter) o coração humano.

A transformação social pretendida está ancorada, em Gutiérrez, na justiça e no amor cristão. A práxis libertadora é uma práxis de amor, que o autor concretiza como um “amor real, eficaz, histórico, em favor de homens concretos; de amor em favor do próximo e, nele, em favor de Cristo, na medida em que Ele se identifica com o mais pequenino dos nossos irmãos”350.

Gutiérrez sublinha que a Sagrada Escritura é muito clara quando afirma que só existe culto autêntico e verdadeiro quando haja solidariedade com os pobres. Por isso, reconhece que, para se viver coerentemente segundo este espírito, o cristão tem que ter a coragem de empreender a acção política e envolver-se no processo de libertação, ainda que muitas vezes tenha que sofrer as agruras por saber que muitos sectores da Igreja estão ligados à ordem social injusta.

O compromisso no processo de libertação introduz o cristão num mundo que lhe é pouco familiar, mas que tem o condão de provocar uma verdadeira conversão, com enormes efeitos práticos, como sejam o questionamento radical da ordem social vigente e da ideologia que a sustenta, assim como a ruptura com formas caducas de pensar e estar em Igreja e em sociedade.

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Ver Ibidem, pp. 14-32.

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Daqui nasce uma nova teologia, que brota precisamente da práxis libertadora. A reflexão aqui parte dum compromisso primeiro, em vista da transformação da sociedade numa realidade mais justa e fraterna. Assim como São Paulo nos recorda que a fé opera pela caridade (Gl 5,6), o discurso teológico torna-se tanto mais verdadeiro quanto reflectir uma inserção real e fecunda na vida concreta das pessoas e nas opções que tomam.

A teologia, com esta vertente prática – evitando o idealismo e o espiritualismo - converter-se-á em força libertadora e profética em favor daqueles que lutam por serem reconhecidos plenamente como pessoas humanas. A libertação de Cristo, sendo certo que não se reduz à libertação política, deve-se espelhar, contudo, nas realidades históricas e políticas, que constituem mediações necessárias na nossa relação com Deus e com os irmãos.

2 – A Igreja no processo de libertação

Gustavo Gutiérrez dedica ainda uma reflexão e análise particular à situação da Igreja no processo de libertação em curso na América Latina351.

Gutiérrez entende que a Igreja latino-americana vive, em geral, numa atitude defensiva, de quem se sente acossada, por uma parte devido à hostilidade do liberalismo e dos movimentos anticlericais do séc. XIX, e, por outra, pelas críticas daqueles que, no seu tempo, lutavam pela transformação social, onde se encontram, desde logo, os partidários da TL. Esta sensação de cerco – ou “mentalidade de gueto”, como lhe chama o autor352 - levou a Igreja a apoiar-se no poder estabelecido.

Contudo, Gutiérrez sublinha, com satisfação, que o posicionamento da Igreja na América Latina começa a mudar, fruto duma leitura atenta dos ‘sinais dos tempos’. E começa a mudar, desde logo a partir das bases. Isso é muito claro nos movimentos apostólicos de juventude, particularmente os estudantis, que radicalizaram as suas opções políticas, algo que também sucedeu ao nível das associações cristãs ligadas ao operariado e ao campesinato.

De todo o modo, o autor é ciente que um fraco enquadramento teológico- pastoral desses movimentos e a percepção da ligação da Igreja à ordem social vigente

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Ver Idem, Teología de la Liberación – Perspectivas, pp. 145-183.

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conduziram muitos dos referidos movimentos a trocarem o desígnio superior da implantação do Reino de Deus no mundo pelo simples projecto de uma revolução social.

Por outra parte, muitos sacerdotes e religiosos também se tornaram muito sensíveis à questão social e política, procurando que a Igreja rompesse com o statu quo, o que implicou também algumas tensões com bispos locais e com os núncios apostólicos, além de aberta perseguição política. Muitos sacerdotes passaram a ser considerados elementos subversivos, sendo vigiados pela polícia, presos, exilados e, inclusivamente, assassinados por esquadrões de morte anticomunistas.

Mas os próprios bispos, particularmente nas regiões mais deprimidas da América Latina, também começaram a despertar paulatinamente para o processo de libertação, denunciando corajosamente o regime de opressão política e as injustiças sociais, não só através de documentos das conferências episcopais, como também na participação efectiva em greves e manifestações públicas.

É neste contexto que escutamos o cardeal peruano Juan Landázuri afirmar, expressamente, num discurso na Universidade de Notre Dame, nos EUA, no ano de 1966: “Estamos vivamente conscientes da revolução social que está em progresso. Identificamo-nos com ela”353.

Este novo ambiente e esta nova mobilização da Igreja latino-americana criou as condições para a realização da conferência de Medellín, em 1968, que teve um enorme impacto, de certo modo transformando o rosto da Igreja católica na região.

Não nos iremos deter demasiado nas contribuições de Medellín neste momento, pois dela falaremos mais aprofundadamente na terceira parte deste trabalho, mas não podemos deixar de referir, nesta sede, duas ideias-força desta conferência do CELAM, directamente relacionadas com a participação da Igreja no processo de libertação.

A primeira ideia-força de Medellín é a do reconhecimento da solidariedade da Igreja com a realidade latino-americana, o que explica que os documentos finais desta conferência falem em ‘violência institucionalizada’ e denunciem a situação de dependência dos países da América Latina face aos grandes centros de decisão económicos e financeiros mundiais, para além das graves desigualdades sociais, económicas, políticas e culturais, que põem em causa a própria paz social354.

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Cf. Ibidem, p. 160. Op. Cit. Tradução nossa.

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A segunda ideia-força prende-se com o facto de Medellín ter tido o condão de fazer com que a Igreja se apresentasse com uma nova presença na América Latina. Neste sentido, à Igreja, e aos bispos em particular, foi pedido que cumprissem uma função de denúncia profética em relação à situação de verdadeira ‘situação de pecado’ (pecado social) que se vivia na região355; a exigência de uma função de evangelização que actue sobre a consciência das pessoas356; por fim, e em solidariedade com os pobres, as comunidades cristãs, e o clero, em particular, são convidadas a adoptarem um estilo de vida simples e modesto, com espírito de serviço e liberdade diante dos poderes temporais357.

Gustavo Gutiérrez faz, depois, um levantamento das questões teológico- pastorais mais significativas que se colocam diante desta nova situação da Igreja na América Latina358.

Uma primeira questão diz respeito à reflexão sobre o significado da fé numa vida comprometida na luta contra a injustiça e a alienação. O autor reconhece que a participação no processo de libertação é muitas vezes angustiante e que provoca grande desgaste, pela dicotomia que muitas vezes se estabelece entre a vida de fé do crente e o seu compromisso revolucionário. Mais que acusar esses cristãos – a partir de uma posição cómoda e instalada – de confundirem o Reino com a revolução social, para Gutiérrez, urge encontrar pistas de resposta teológica a estes problemas existenciais daqueles que optaram por participar na luta pelos oprimidos.

Consciente também da crise da vida de oração pessoal e comunitária dos cristãos comprometidos com o processo de libertação, Gutiérrez apela à elaboração de uma espiritualidade da libertação que tenha em conta a idiossincrasia desta geração inédita de cristãos. De facto, eles não estão respaldados por uma tradição teológica e espiritual, antes, constituem a primeira geração de cristãos a se verem envolvidos no processo de libertação.

O momento histórico da América Latina está também marcado por um ambiente conflituoso e de muita polarização. Sobre isto, Gutiérrez recorda, em jeito de lamento, que no cristianismo se tem evitado sempre a realidade conflitual, quando havia que encará-la de frente e fazer opções históricas: “Preferimos uma irénica conciliação ao

355 Ibidem, nº 75. 356 Ibidem. 357

Ver Idem, Pobreza, Medellín nº 208-213.

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antagónico; uma evasiva eternidade ao provisório. Devemos aprender a viver e pensar a paz no conflito, o definitivo no histórico”359.

Conexo com esta problemática, Gutiérrez também constata que, diante do processo de libertação, a Igreja latino-americana encontra-se profundamente dividida, sendo que a maioria da Igreja permanece, de muitos modos, ligada à ordem estabelecida. Assim, assiste-se a uma situação interna de tensão e mal-estar dentro da própria comunidade eclesial, que acolhe concomitantemente oprimidos e opressores, perseguidos e perseguidores.

Para Gutiérrez, sem ter em conta as causas mais profundas dos males sociais e as condições reais de construção de uma nova sociedade, mais justa e mais fraterna, a comunhão dentro da Igreja não será possível. Urge, portanto, pensar uma nova concepção de unidade e comunhão na Igreja.

Na América Latina, a Igreja terá eventualmente que tomar posição no quadro do processo revolucionário em curso. Para Gutiérrez, não basta à Igreja estar no sistema sem ser do sistema. Ela deverá optar pela ruptura com a ordem injusta em vigor, assumindo o compromisso expresso de lutar por uma nova sociedade, sob pena da mensagem evangélica perder credibilidade.

Conexa com esta questão, coloca-se outra: se a Igreja deverá, ou não, jogar o seu peso social na América Latina em favor da transformação social. Isso implica riscos elevados, segundo Gutiérrez, mas também não usar essa força e presença social a favor dos oprimidos da América Latina constituiria, a seu ver, um erro histórico e uma verdadeira ‘o-missão’ pastoral e teológica.

A última questão que Gutiérrez se coloca neste âmbito prende-se com a imagem da Igreja. A comunidade cristã latino-americana é, em geral, pobre de meios e de recursos económicos. Contudo, a imagem da Igreja-instituição que transparece não é a de uma ‘Igreja pobre’. Isto, de resto, é reconhecido por Medellín.

Sem prejuízo de preconceitos anticlericais e generalizações pouco honestas, que Gutiérrez reconhece, para o autor, contudo, não há grandes dúvidas que, no fundamental, esta imagem tem razão de ser, por via da cumplicidade tradicional da Igreja com a ordem estabelecida e com as situações de dependência – interna e externa – dos povos latino-americanos.

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Efectivamente, na sua óptica, a Igreja, na sua maioria, tem apoiado - e tem-se apoiado - os grupos sociais dominantes, a eles dedicando os seus melhores esforços. A este propósito, o autor dirá: “Confundimos com frequência a posse do necessário com uma cómoda instalação neste mundo, a liberdade para pregar o Evangelho com a protecção dos grupos poderosos, os instrumentos de serviço com os meios de poder”360.

Segundo Gutiérrez, a Igreja latino-americana está chamada a ir formando, a pouco e pouco, uma ‘personalidade própria’, que lhe permita fazer as opções certas segundo o Evangelho, no contexto do processo de libertação.

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