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Marcos conceituais e normativos do reconhecimento jurídico das

Nesse item buscarei construir elementos teórico-empíricos de aporte necessário ao entendimento do que possa vir a compreender como a “questão quilombola”, recorrendo, para tanto, a uma revisão bibliográfica sobre o tema.

A base legal que atualmente assegura o direito à titulação das terras aos remanescentes de quilombos no Brasil, resulta de um longo processo social de organização e de reivindicação da inclusão político-institucional de especificidades constitutivas da formação étnica negra brasileira, tal como elucidado por Leite (2000). Impulsionados pelo Movimento Negro, tais processos sociais e políticos, desde os anos 1970, com ênfase nos anos 1980, tem buscado superar narrativas conservadoras e culturalistas de compreensão e inclusão social do negro na sociedade brasileira, visando a positivação desse segmento social, em busca da materialização e reconhecimento social, político e jurídico, de uma cidadania historicamente negada, com

propósito de “[...] promover o negro na sociedade brasileira para que ele goze dos direitos plenos de uma cidadania plena” (PEREIRA, 2007, p. 88).

Nesse contexto de lutas e reivindicações políticas, segundo Leite (2000) e O’dwyer (2002), territórios tradicionalmente ocupados por negros, como terreiros de religiões de matriz afrodescentes e áreas de comunidades negras rurais, passaram a ser reivindicadas legalmente, como resgates da dívida social pública cidadã histórica da sociedade e do Estado brasileiro com esses grupos étnicos, o que culminou, portanto, com a aprovação do Artigo 68º das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988.

A aprovação desse Artigo Constitucional institui legalmente o termo jurídico Comunidades Remanescentes de Quilombos, estabelecendo que: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 2013b).

Além dessa base legal, dão sustentação a tal artigo, os artigos 215 a 216 da Constituição Federal de 1988, assegurando direito à preservação de sua cultura; e a Convenção 169 da OIT (firmada pelo decreto 5051/2004), estabelecendo o direito à autodeterminação de Povos e Comunidades Tradicionais (SEPPIR, 2012).

Apesar de instituído constitucionalmente em 1988, somente em meados dos anos de 1990, por pressão política do movimento social negro junto ao poder público federal, a Associação Brasileira de Antropologia(ABA) foi então chamada pelo Ministério Público Federal a realizar estudos com a finalidade de construir padrões conceituais para definir o que e como poderiam ser denominados remanescentes de quilombos, de modo a possibilitar o reconhecimento e a titulação dos territórios desses grupos étnicos. Segundo Eliane Catarino O’dwyer, uma das pesquisadoras promotora e coordenadora de algumas dessas pesquisas no âmbito da ABA:

A perspectiva dos antropólogos reunidos no Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo, em 1994, é expressa em documento que estabelece alguns parâmetros de nossa atuação nesse campo. De acordo com esse documento, “o termo quilombo tem assumido novos significados na literatura especializada e também para grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ‘ressemantizado’ para designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. (...) Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. (...) No que diz respeito à territorialidade desses grupos, a ocupação da terra não é feita em termos de lotes individuais, predominando seu uso comum. A utilização

dessas áreas obedece à sazonalização das atividades, sejam agrícolas, extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade (O’DWYER, 2002, p.17).

A noção de grupo utilizada por Eliane Catarino, é por nós compreendida e assimilada nesse estudo sobre os Remanescentes de Quilombos, de acordo com a definição de grupos étnicos proposta por Barth (1976), entendidos como portadores de cultura, que é a implicação ou resultado de uma característica da organização do grupo, e como um tipo organizacional, baseado em critérios de auto-atribuição e atribuição de/por outrem, em que são os próprios sujeitos quem definem os critérios que delimitam as fronteiras étnicas entre si e outro grupo social, por critérios de exclusão e inclusão, entre aquilo que consideram que seja parte de sua identidade, o que o consideram que não o seja.

Para Almeida (2002), faz-se necessária a ressemantização do termo quilombos e a ampliação da abrangência de situações entendidas como remanescentes de quilombos, remetendo-a à alteridade e à condição de cidadania negada a esses grupos étnicos, de modo a possibilitar a inserção legal nos marcos deste dispositivo, de situações de auto-atribuição de grupos étnicos que não necessariamente representam reminiscências de agremiações de escravos fugidos, como por exemplo, as Terras de Santo e Terras de Preto.

Desde meados de 1990, além desses estudos da ABA e de Almeida, outros estudos e laudos antropológicos foram e vem sendo realizados, corroborando para existência empírica e necessidade de reconhecimento político-jurídico das múltiplas e variadas formas que tais grupos étnicos possam se auto-definir como Remanescentes de Quilombos, como exemplos recorro centralmente aos estudos de O’dwyer (2002), da ABA (2006), de Arruti (2006), e também à revisões sobre o tema realizadas a partir dos estudos de e Rubert e Silva (2009) e Melo et. al. (2011), entre outros realizados.

Abrangendo, dessa forma, uma diversidade de situações caracterizadoras da condição de remanescentes de quilombos, desde àquelas vinculadas à festividades e rituais religiosos, como no caso na comunidade Conceição das Crioulas em Pernambuco (SOUZA, 2002); de heranças deixadas por fazendeiros aos negros, como no caso da Comunidade Remanescente de Quilombo Arnesto Penna no Rio Grande do Sul (MELO et. al. 2011); situações em que negros ex-escravos e descendentes de libertos migraram de uma região para outra, adentrando nas matas interioranas, como no caso de famílias que migraram de Minas Gerais, formando o quilombo Furnas de Dionísio no Mato Grosso (Bandeira e Dantas, 2002); e a centralidade das relações de parentesco em conexão com o modo de vida no campo, como nos estudos

etnográficos realizados no Vale do Ribeira de Iguape por Andrade, Pereira e Andrade (2000) e dos processos de surgimento e organização de CRQ no Rio de Janeiro, realizados por Marin (2009).

Como se pode observar, o termo remanescentes de quilombos, ressemantizado e recontextualizado, abrange um amplo espectro de situações que guardam em si alguns traços potencialmente comuns, mas raramente homogêneos e observáveis no conjunto dos casos estudados. Para Arruti (2006, p. 39):

As comunidades quilombolas constituem grupos mobilizados em torno de um objetivo, em geral a conquista da terra, e definidos com base em uma designação (etnônimo) que expressa uma identidade coletiva reivindicada com base em fatores pretensamente primordiais, tais como uma origem ou ancestrais em comum, hábitos, rituais ou religiosidade compartilhados, vínculo territorial centenário, parentesco social generalizado, homogeneidade racial, entre outros. Nenhuma dessas características, porém, está presente em todas as situações, assim como não há nenhum traço substantivo capaz de traduzir uma unidade entre experiências e configurações sociais e históricas tão distintas.

Para Ilka Boaventura Leite (2000, p.335): “O quilombo, na atualidade, significa para esta parcela da sociedade brasileira sobretudo um direito a ser reconhecido, e não propriamente e apenas um passado a ser rememorado”. Para ela:

[...] de todos os significados do quilombo, o mais recorrente é o que remete à ideia de nucleamento, de associação solidária em relação uma experiência intra e intergrupos. A territorialidade funda-se imposta por uma fronteira construída a partir de um modelo específico de segregação, mas sugere a predominância de uma dimensão relacional, mais do que de um tipo de atividade produtiva ou vinculação exclusiva com a atividade agrícola, até porque, mesmo quando ela existe ela aparece combinada a outras fontes de sobrevivência. Quer dizer: a terra, base geográfica, está posta como condição de fixação, mas não como condição exclusiva para a existência do grupo (LEITE, 2000, p. 344).

A relação que o grupo estabelece com a terra demarca a possibilidade de permanecia de determinadas relações sociais e de produção da existência. Para Leite (2000, p. 344) “[...] é o que propicia condições de permanência de continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação do imaginário coletivo, e os grupos chegam por vezes a projetar nela sua existência, mas, inclusive, não têm com ela uma dependência exclusiva.

Nesse sentido, os quilombos representam atualmente visões de mundo e ethos particulares, baseados em representações simbólicas particulares, e relações de reciprocidade e parentesco, cujo traço comum de unidade representa trajetórias e memórias de esperança e empenho na construção de meios e modos de constituição de uma vida melhor para si e seus

familiares, marcados por uma trajetória de violência, expropriação e resistência, por conjuntos específicos de crenças, códigos sociais e morais, os quais lhes caracterizam como grupo étnico, e lhes possibilitam o reconhecimento legal, bem como a assunção à condição de beneficiários de políticas públicas.