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Maria da Piedade: Santidade e Virtude

CAPÍTULO 3 DOS AFETOS – AMORES DE PERDIÇÃO: A DESORDEM DO

3.2 No Moinho – Sedução, ficção e perdição

3.2.1 Maria da Piedade: Santidade e Virtude

Maria da Piedade, bela e jovem, é a princípio a mãe e esposa devotada que dedica todo o seu tempo aos cuidados com os seus filhos e com seu marido. Além disso, também administra os bens do esposo, impossibilitado de exercer as funções

145 BUENO, Aparecida de Fátima (org.). A Vênus e a Maometana: o “problema moral” em Eça de

Queirós e Machado de Assis in Literatura Portuguesa – História, Memória e Perspectivas. Alameda Casa Editorial: São Paulo, 2007. p.91.

tradicionalmente masculinas por conta da sua invalidez, incluindo-se aí a sexualidade. Para Marie-Héléne Piwnik146:

O seu marido inválido não desempenha mais o papel de homem, e ela oferece-lhe noites consagradas à prece ou aos medicamentos. As relações sexuais que existiram entre eles, de onde resultaram três crianças, são colocadas sob o signo da procriação e pertencem ao passado. Maria da Piedade não é senão uma virgem mãe, cujo marido é a quarta criança.

A ausência de uma vida sexual parece ser sublimada pela rotina de enfermeira e administradora da casa e das propriedades; posteriormente, essa sublimação será posta em xeque. A admiração da vila, que aplaude o sacrifício de Piedade, surge desde a introdução do conto :

D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como “uma senhora modelo”. O velho Nunes, diretor do correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com autoridade os quatro pêlos da calva:

- É uma santa! É o que ela é!

A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria. Poucas vezes saía. O marido, mais velho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha; havia anos que não descia à rua; avistavam-no às vezes também à janela murcho e trôpego, agarrado à bengala, encolhido na robe-de-chambre, com uma face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao cachaço. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A casa, interiormente, parecia lúgubre. Andava-se nas pontas dos pés, porque o senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insônias, irritava-se com o menor rumor; havia sobre as cômodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de linhaça; as mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de emplastro sobre a orelha, ou a um canto do canapé, emb rulhado em cobertores com uma amarelidão de hospital.

Essa introdução nos coloca imediatamente a par da situação vivida pela protagonista, uma vida de sofrimento com a qual ela se resigna, desempenhando a função de cuidar integralmente daquela família doente que o casamento lhe dera. Também fica claro na apresentação do conto a assimetria entre a beleza e juventude da esposa e o estado débil do marido e dos filhos. Ela era a única nota de vida, de

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PIWNIK, Marie-Helene. No Moinho ou um destino despedaçado, Dicionário de Eça de Queiroz, Op.cit. 604.

vivacidade naquele ambiente lúgubre e repleto de referências que marcam a atmosfera doentia da casa: tumores, chorões, tristonhos, garrafada, febre, emplastro, amarelidão.

O nome Maria da Piedade nos remete imediatamente à religiosidade cristã. Nossa Senhora da Piedade representa no catolicismo aquela que recebe Jesus Cristo em seus braços depois da crucificação e leva seu corpo juntamente com os discípulos para o sepulcro147, reforçando o caráter de virgem mãe apontado por Piwnik. É uma das imagens mais conhecidas na arte sacra, representada por Nossa Senhora com Jesus morto em seu colo, a exemplo da Pietá de Michelangelo. O seu sofrimento sugere resignação como caminho para a perfeição, como se o sofrimento de Cristo, assim como da sua Santa Mãe, fossem exemplos. Piedade também é conhecida como Nossa Senhora das Do res, a Mater Dolorosa.

Além disso, juntamente com sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência e temor de Deus, a piedade é considerada pelas leis católicas como um dos dons espirituais, virtudes que sustentam a vida moral do ser humano e são cons ideradas como disposições permanentes que tornam o homem dócil aos impulsos do Espírito Santo148. Logo, o nome escolhido por Eça é motivado pela relação intrínseca com a idéia de santidade e virtude supostamente vivenciadas pela personagem. Desenvolvido ironicamente, o conto desfaz essa sacralidade da Mater Dolorosa, na medida que põe a nu o ser corruptível, dominado pelo desejo e pela ânsia de prazer..

Embora sua vida dê mostras tão sólidas de resignação cristã, Piedade não é uma católica praticante, pois acredita que dedicar tempo demais à igreja seria subtrair sua atenção para com a sua família:

Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata; todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o pequerrucho mais velho pela mão, todo pálido no seu vestido de veludo azul. Com efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas. A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupações do Céu: naquele dever de boa mãe, cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava adorar santos ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tempo gasto em se arrastar pelo confessionário ou junto do oratório, seria uma diminuição cruel do seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo-a só a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para amar toda uma humanidade pronta.

É interessante notar que a personagem apresenta um conceito bastante peculiar de religião. Ela sacraliza a família. É diante dos filhos e do marido que se prostra, sua

147Disponível em: www.geocities.com/Heartland/Bluffs. Consultado em 30/05/09 148

casa é o seu templo, seus filhos, suas imagens e, seu marido, o cristo crucificado que precisa muito mais dela que o verdadeiro. Ela, como a Pietá, carrega a todos em seus braços.

Nesse comportamento inicial, temos em Piedade um perfil muito mais cristão do que o das beatas que cumprem ardorosamente todas as obrigações com a igreja, esquecendo sua vida pessoal. É importante lembrar que o combate anticlerical que Eça trava em boa parte dos seus textos não pode ser confundido com anti-religião; a sua crítica se dirige à hipocrisia de determinados membros da Igreja ou à mercantilização da fé, como fica claro em O crime do Padre Amaro (1875) e em A Relíquia (1887).

O casamento de Piedade acontecera devido à sua vida familiar, marcada pela pobreza e por uma convivência atrib ulada com uma mãe nervosa e um pai alcoólatra. O que precipitou seu casamento não fora o amor pelo futuro marido, mas a necessidade de fugir de um lar infeliz e a melhoria da condição financeira que se acenava a partir do enlace :

Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua existência fora triste. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai, que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já velho, sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a mulher. E quando João Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quase com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado. Não amava o marido, decerto; e mesmo na vila tinha-se lamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joãozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho, por morte do pai, ficara rico; e ela, acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a alcova, ter-se-ia resignado, na sua natureza de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. Mas aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes, que depois pareciam apodrecer-lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-na. Às vezes só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma.

O casamento com João Coutinho se estabelece fora das convenções românt icas. Sua união a esse marido doente em nada lembra o amor romântico alimentado pela tradição já difundida no século XIX; não há sentimento, não há idealização, apenas conveniências, já que o casamento representava o caminho possível para a mulher daquele período, única ambição no seu horizonte. Para Piedade, casar era, portanto, ascender socialmente e libertar-se do sofrido convívio familiar e ainda amparar os pais, já que o texto fala sobre “salvar o casebre da penhora”, sugerindo que o casamento foi arranjado em troca de um acordo financeiro.

Ela é comparada à Virgem Maria e a uma fada. Como já vimos, no seu próprio nome está presente a filiação religiosa de caráter sacrificial, mas a comparação à fada merece destaque. De acordo com Chevalier e Gheerbrant149:

Mestra da magia, a fada simboliza os poderes paranormais do espírito ou as capacidades mágicas da imaginação. Ela opera as mais extraordinárias transformações, num instante, satisfaz ou decepciona os mais ambiciosos desejos. Talvez por isso ela represente a capacidade que o homem possui para construir, na imaginação, os projetos que não pode realizar.

Portanto, na simbologia da fada estão presentes os traços delineadores do caráter de Piedade. Ela sofrerá durante o conto uma transformação que migra da condição de santa à pecadora, decepcionando aqueles que louvavam suas virtudes. Esse processo de mutação é desencadeado pela imaginação, despertada pela figura de Adrião. A presença perturbadora desse homem diferente que vem modificar sua rotina a introduzirá no universo da imaginação, e ela passará a idealizar uma outra existência.

Quanto ao casamento, temos em Luísa, protagonista de O Primo Basílio, semelhante motivação. Ela também não amava seu marido, buscava o conforto de um casamento que lhe traria a proteção de um lar e tranqüilidade para sua mãe. Todavia, Luísa tinha um marido normal, saudável e que lhe fazia todas as vontades, ao contrário de Piedade. Embora ambas demonstrassem tédio e solidão, Piedade tem motivos mais concretos para se sentir infeliz e frustrada, enquanto o mal de Luísa parece advir do ócio e dos valores que circulam em sua sociedade.

Para Giddens150, “durante o século XIX, a formação dos laços matrimoniais, para a maior parte dos grupos na população, baseava-se em outras considerações além dos julgamentos de valor econômico.”, ou seja, a idéia de casamento a partir de laços afetivos já era difundida na sociedade. Logo, temos no casamento de Piedade uma clara transação mercantil que contraria o sentimentalismo. Um casamento realista, como tantos outros presentes na literatura do Ocidente.

É também perceptível na passagem algumas nuances que começam sutilmente a questionar o quadro de resignação de Piedade. A doença dos filhos e suas lágrimas. O sofrimento do marido doente seria amenizado, se ao menos ela tivesse filhos sadios, pois ela aceitava a frustração como esposa, mas a debilidade dos filhos lhe era mais custoso, implicando mesmo em abrir mão da garantia de permanecer, numa descendência, já que as crianças definhavam em suas mãos.

149 CHEVALIER e GHEERBRANT, Allain. Dicionário de Símbolos. Op. cit. p.415. 150

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade. Trad. Magda Lopes. São Paulo: EDUNESP, 1993. p.36.

Suas lágrimas denotam o seu real estado interior, uma espécie de confissão do que trazia de fato na alma: “Às vezes só, picando a sua costura, corriam- lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma”. Nesses momentos de solidão, quando suas mãos não se dedicavam aos cuidados de enfermeira, e sim à costura, simbolizando o único momento que era só seu, ela deixava transparecer o tecido de sua alma, tomado pela névoa e pela fadiga. Nessa imagem, colocada delicadamente pelo autor no conto, como se fosse um bordado aplicado na superfície do tecido, temos o elemento que conduzirá o restante da narrativa. Piedade guardava no seu íntimo uma tristeza, uma insatisfação com o seu cotidiano, com a sua vida de mãe e esposa que se desvelava para manter a ordem da casa e os cuidados com sua família doente. Ocultos, existem sentimentos que só virão à tona com a chegada de um novo elemento, o primo do seu marido, o escritor Adrião.