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Viagens à minha terra: a iniciação de Jacinto

CAPÍTULO 1 DOS ESPAÇOS PORTUGAL EM TEMPOS DE ULTIMATUM:

1.2 Jacinto na civilização: a flor do pessimismo

1.2.2 Viagens à minha terra: a iniciação de Jacinto

35 SÉRGIO, Antonio. Notas sobre a imaginação – A fantasia e o problema psicológico -moral na

novelística de Queirós. In: QUEIRÓS, Eça. Obra Completa. Vol.1. Org. João Gaspar Simões: Rio de Janeiro: Ed. Aguillar, 1970. p.55.

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Os preparativos da viagem de Jacinto são descritos com as tintas do exagero. A sua bagagem é uma espécie de transferência do Jasmineiro para a velha quinta de sua família, uma construção do século XV, ocupada há trinta anos pelos caseiros. Providências e mais providências são tomadas entre março e junho, mês em que ele partiu na companhia de Zé Fernandes, que aproveitaria a viagem para visitar uma tia em Goães:

Jacinto, logo nos começos de Março, escrevera cuidadosamente ao seu procurador Sousa, que habitava a aldeia de Torges, ordenando-lhe que compusesse os telhados, caiasse os muros, envidraçasse as janelas. Depois mandou expedir, por comboios rápidos, em caixotes que transpunham a custo os portões do Jasmineiro, todos os confortos necessários a duas semanas de montanha - camas de penas, poltronas, divãs, lâmpadas de carcel, banheiras de nickel, tubos acústicos para chamar os escudeiros, tapetes persas para amaciar os soalhos. Um dos cocheiros partiu com um coupé, uma vitória, um break, mulas e guizos. Depois foi o cozinheiro, com a bateria, a garrafeira, a geleira, bocais de trufas, caixas profundas de águas minerais. Desde o amanhecer, nos pátios largos do palacete, se pregava, se martelava, como na construção de uma cidade. E as bagagens, desfilando, lembravam uma página de Heródoto ao narrar a invasão persa. Jacinto emagrecera com os cuidados daquele Êxodo. Por fim, largamos, numa manhã de Junho, com o Grilo, e trinta e sete malas .

É interessante notar na descrição da bagagem o excesso de objetos considerados como essenciais para uma estada de duas semanas. Além disso, fica evidenciada na expressão “como na construção de uma cidade”, a intenção de Jacinto de levar às serras a sua cidade, com todo o seu pesado conforto. Ele não concebia afastar-se de sua civilização, dos elementos que pareciam conferir- lhe a sua identidade. Como um representante das elites portuguesas, portanto, um cosmopolita, Jacinto só se reconhecia em presença de seus incontáveis objetos civilizados; sem eles, a sua personalidade encontrava-se ameaçada, comportamento semelhante ao do Alferes Jacobina, personagem do conto O Espelho37 de Machado de Assis, que, sem a sua farda, não se reconhecia, pois esta lhe conferia identidade, assim como a múltipla bagagem de Jacinto.

Todavia, as múltiplas precauções de Jacinto para que nada lhe faltasse na sua viagem começam a ruir no momento em que ele chega à estação de trem. Sousa, seu procurador, deveria estar ali esperando com os seus cavalos, mas não aparecera: “Mas quando nos apeamos no pequeno cais branco e fresco – só houve em torno de nós solidão e silêncio... Nem procurador, nem cavalos”.

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ASSIS, Machado de. Papéis Avulsos In: Obras Completas. vol. II. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1986.

Por diversos desencontros que não valem ser mencionados, dentre eles erros de comunicação, o plano de Jacinto fracassara, numa nova alusão às falhas do projeto civilizatório. Para chegar à quinta, ele e Zé Fernandes tiveram que partir com um comboio formado por “uma égua lazarenta, um jumento branco, um rapaz e um pondengo”; uma comitiva que indica a construção de um novo projeto. Justamente durante esse percurso, zona de intersecção entre a cidade e as serras, entre cidade e campo, começa a transformação do protagonista, o seu ritual de iniciação ganha forma. A beleza da paisagem comove Jacinto e a sua costumeira fadiga passa a ser minada pela visão da natureza:

...E aí começamos a trepar, enfastiadamente, estes caminhos agrestes - os mesmos decerto por onde vinham e iam de monte a rio os Jacintos do século XV. Mas, passada uma trêmula ponte de pau que galga um ribeiro todo quebrado por fragas (e onde abunda a truta adorável) os nossos males esqueceram, ante a inesperada, incomparável beleza daquela terra bendita. O divino artista que está nos céus compusera certamente esse monte, numa das suas manhãs de mais solene e bucólica inspiração.

Nota-se no trecho a imagem da ponte trêmula, símbolo da travessia de Jacinto entre os dois mundos, entre o seu estado de ânimo provocado pelo niilismo decadentista, e a sua recuperação que estava por vir, pois a natureza e a vida campestre ajudarão Jacinto a atenuar os males de sua alma:

A grandeza era tanta como a graça... Dizer os vales fofos de verdura, os bosques quase sacros, os pomares cheirosos e em flor, a frescura das águas cantantes, as ermidinhas branqueando nos altos, as rochas musgosas, o ar de uma doçura de paraíso, toda a majestade e toda a lindeza - não é para mim, homem de pequena arte. Nem creio mesmo que fosse para mestre Horácio. Quem pode dizer a beleza das coisas, tão simples e inexprimível? Jacinto adiante, na égua tarda, murmurava: «Ah! que beleza!» Eu atrás no burro, com as pernas bambas, murmurava: «Ah! que beleza!» Os espertos regatos riam, saltando de rocha em rocha. Finos ramos de arbustos floridos roçavam as nossas faces, com familiaridade e carinho. Muito tempo um melro nos seguiu, de choupo para castanheiro, assobiando os nossos louvores. Serra bem acolhedora e amável... Ah! Que beleza!

O panorama é considerado indescritível até mesmo para o poeta latino Horácio38 (65-8 A.C), mestre em cantar as belezas da natureza nas suas Odes, que têm como um dos motivos principais justamente o encanto da vida no campo. Percebemos então que a transformação de Jacinto começa a se processar. A mudança em curso é representada pela expressão “Ah! Que beleza”, que no texto se opõe à frase “Ah! Que maçada”.

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FURLAN, Oswaldo Antônio. Língua e literatura latina e sua derivação portuguesa . Petrópolis: Ed. Vozes, 2006.