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4. PRÁTICAS E SABERES NO CAMPO

4.3. O dia a dia do campo

4.3.3. D Marta

Numa manhã de quarta-feira, após eu ter participado do Grupo de Caminhada na Praça Antônio Leite de Camargo, recebi o convite da ACS Bianca para conhecer uma pessoa que ela considerava muito especial e a quem sempre recorria quando sentia que seus problemas estavam maiores do que ela poderia suportar. Bianca percebera que eu andava um tanto abatida pelas visitas domiciliares que tanto me entristeciam e resolvera levar-me até uma usuária que teria tudo para ser poliqueixosa, mas que havia se tornado uma referência para as mulheres das redondezas.

Antes, porém, gostaria de tecer algumas considerações sobre o Grupo de Caminhada. Tratava-se de um dos Grupos de Promoção da Saúde na Praia Azul e era coordenado por uma educadora física, a qual era auxiliada por uma técnica de enfermagem e por dois ou três agentes comunitários de saúde. O papel da técnica de enfermagem era medir a pressão de todos os participantes antes do início da atividade e encaminhar para a USF aqueles cuja aferição indicasse um episódio hipertensivo, os quais seriam medicados, esclarecidos e encaminhados para uma consulta médica se necessário. O objetivo do Grupo era incentivar a população a criar o hábito de praticar exercícios físicos matinais. As atividades não estavam restritas a caminhada em si, mas também eram compostas por alongamentos e relaxamento. Na época de Festas Juninas, o Grupo ensaiava quadrilha e promovia uma festa na Praça. Ele era freqüentado por cerca de cinqüenta pessoas, a maioria idosos, mulheres e crianças. O Grupo era uma oportunidade que eu tinha de estar próxima dos usuários, mas em ambiente outro que a USF ou suas residências.

A residência de D. Marta situava-se em bairro próximo ao de D. Lourdes. Embora contíguos, tinham algumas características diferentes: este era totalmente asfaltado e suas casas apresentavam um padrão de construção superior ao do bairro anterior. Um amplo portão eletrônico dava acesso à garagem, na qual estava estacionado um Gol Vermelho. Após passarmos pela garagem, três degraus nos deixaram diante de uma porta de madeira entalhada que se abria para a sala de visitas. A sala era composta por um sofá de três lugares, um sofá de dois lugares, uma cadeira de balanço e algumas almofadas espalhadas pelo chão. No centro da

parede esquerda encontrava-se um rack com um televisor, um aparelho de DVD, o telefone e um vaso de flor. A parede direita desembocava no corredor onde se dispunham os quartos e os banheiros. Mais três degraus davam acesso à cozinha e mais adiante à lavanderia.

D. Marta vivia praticamente na sala, dada a sua dificuldade de locomoção em decorrência das seqüelas de um acidente vascular cerebral e de sete bicos de papagaio e uma hérnia de disco, os quais restringiam bastante sua mobilidade. Ela andava apenas dentro de sua casa, utilizando-se de barras e das paredes como apoio, mas, como essa era uma tarefa que exigia muito esforço ela raramente se levantava do sofá. Apesar de suas limitações, D. Marta tinha grande senso de humor e declarava-se como uma pessoa feliz, embora sua “sacolinha de remédios” contivesse uma cartela de fluoxetina. Segundo ela, sua vida girava em torno de suas duas netas: uma de três e outra de seis anos e das visitas constantes que recebia em busca de seu aconselhamento, uma vez que sua história de superação tornara-se referência nas adjacências de sua residência.

D. Marta foi a única usuária visitada a citar a utilização de outros sistemas terapêuticos concomitantemente ao sistema biomédico. Mostrando uma sacola repleta de medicações, dentre as quais: Captopril (para hipertensão), Fluoxetina (para depressão), Paracetamol (para dor e febre), Ibuprofeno (para dor e inflamação), Diclofenaco (para inflamação), AAS (para impedir a agregação das plaquetas), Diazepan (calmante), a usuária ia contando sobre sua infância e adolescência passadas na roça e sobre como tinha aprendido a utilizar-se de ervas para o tratamento de doenças. Detentora desse saber, ela afirmou que não ensinava esse conhecimento para ninguém, porque “as pessoas de hoje fazem tudo errado e se não seguir a receita certinho você acaba por tomar veneno; então, quando alguém me pede, peço os ingredientes e faço eu mesma”. As ervas mais utilizadas por ela eram as seguintes: folha de batata doce (para inflamação), mastruz (para refrescar e limpar o sangue), chás de erva doce e cidreira (para nervoso, insônia), picão (para refrescar o sangue), feijão bandu (para refrescar o sangue e eliminar o catarro parado), flor de mamão macho (para eliminar catarro), guaco (idem) e raiz da jurubeba (idem).

Outro sistema terapêutico muito citado por D. Marta foi o religioso, pois ela atribuía muitas de suas curas a sua fé em Deus. “Por duas vezes estive desenganada pelos médicos. Na primeira vez, tive uma parada cardíaca no hospital e vim a descobrir que eu havia nascido com uma deformidade no coração. Eles me disseram que eu não viveria muito, mas eu rezei muito e isso já aconteceu há oito anos. Ano passado eu comecei a sentir uma

tontura, um aperto no peito e achei que iria morrer por causa do meu problema. Cai no chão e não tinha ninguém para me ajudar, pois era domingo e minha filha tinha saído com uma amiga. Tentei alcançar o telefone, mas a dor era muito forte. Daí pensei que só restava recorrer a Deus e acreditei que Ele me salvaria. Rezei, supliquei, chorei em prantos e Ele me salvou. Tive um AVC e fiquei em coma, mas voltei viva para casa.”

Para encerrar esse capítulo, apenas gostaria de expor uma declaração da agente comunitária de saúde Lúcia: “A problemática dessas famílias é muito mais social e não temos muito como auxiliar. Tem horas que é melhor fingirmos que não vimos certas coisas, que não ouvimos certas coisas para não trazermos problemas prá nós mesmas. É mexer em vespeiro, e isso pode ser muito perigoso. Acolhemos o problema daqueles usuários que são mais abertos, que gostam de conversar com a gente, mas não podemos intervir muito além disso... e a problemática segue seu ciclo sem que eu, o PSF, o CRAS, a polícia ou a escola dêem conta de solucioná-lo”.