• Nenhum resultado encontrado

4. PRÁTICAS E SABERES NO CAMPO

4.1. Os fluxos e contra-fluxos da equipe multiprofissional do PSF

4.1.1. Os profissionais médicos

Os profissionais médicos eram contratados, majoritariamente, para prestar assistência clínica aos usuários mediante marcação prévia de consultas e para efetuar por, pelo menos uma vez na semana, visitas domiciliares aos usuários acamados identificados pelos ACS. O preconizado é que fossem contratados médicos de família, mas, em decorrência das dificuldades encontradas para reter esse profissional no sistema público de saúde, a maioria dos profissionais que adentrava o SUS por meio de concurso público municipal era clínico geral. Ainda assim, por meses durante a pesquisa de campo, acompanhei editais serem abertos e prorrogados sem que sequer houvessem inscritos. Ressalto que, com raras exceções, os médicos contratados possuíam consultórios privados e/ou acumulavam vários empregos públicos, especialmente, como plantonistas em hospitais. Desse modo, eram, em sua ampla maioria, informados pela lógica da atenção secundária e sua passagem pela atenção primária era, quase sempre, temporária. Salários incompatíveis, exigência de cumprimento de uma jornada mínima de trabalho, distância geográfica e cultural dos assistidos e desorientação com relação à semântica da atenção primária eram alguns dos motivos que geravam descontentamento entre os profissionais médicos e explicavam a alta rotatividade no sistema.

Drª Rose, médica do PSF durante três anos, explicou que estava se demitindo para abrir uma clínica de exames diagnósticos, pois tinham feito especialização na UNICAMP em radiologia e, para ela, era muito difícil ver que os pacientes da saúde pública não respondiam ao tratamento: “eles não tomam a medicação do modo como você prescreve, só tomam quando estão se sentindo mal, depois param; não cuidam da alimentação, não fazem os exames solicitados. Cansei de tentar mudar a cabeça deles, de tentar ajudar”. Percebemos que a idéia que se tinha da doença, de um e de outro lado, servia como mediadora das relações e dos conflitos. Enquanto a médica pensava a doença em sua cronicidade e na necessidade contínua de tratamento para a recuperação e para a manutenção da saúde, os usuários

pensavam a doença enquanto um evento temporário, que deveria ser tratado apenas enquanto o afligisse.

Drª Márcia, quem veio a ocupar a vaga deixada pela Drª Rose, disse que a atual USF da Praia Azul havia sido uma UBS; portanto, a população ainda não tinha se habituado à mudança e nem entendido a dinâmica de funcionamento da rede hierarquizada do SUS, na qual cada equipamento era responsável por atender uma demanda específica. Drª Márcia, médica de família e especialista em Saúde da Família pela Universidade Federal do Ceará (campus Sobral), afirmava que era preciso implementar ações para orientar a população (tais como o Mapa Vivo e Fórum do PSF) e melhor capacitar os profissionais. Além disso, dizia ser ”mister uma renovação da estratégia de Saúde da Família na Praia Azul para eliminar a coexistência de um PSF e um não-PSF no mesmo espaço. Os enfermeiros precisam fazer especialização em Saúde da Família, precisam aprender sobre gestão... Precisamos reativar os grupos de Promoção da Saúde, as reuniões de equipe...”.

Logo após a entrada da Drª Márcia, a ESF passou por um período de euforia. Na primeira semana de trabalho, ela reativou as reuniões de equipe semanais, com a participação de todos os funcionários (com exceção de dois que ficariam de plantão na Unidade), bem como de um gestor da Secretaria de Saúde, sempre que possível; propôs a transferência para a USF de uma recepcionista com larga experiência nos trâmites da Estratégia de Saúde da Família e interveio junto a Secretaria de Saúde para a contratação de mais um médico e um enfermeiro para completar o quadro funcional da segunda ESF. Além disso, incentivou os enfermeiros a melhor se capacitarem para exercerem os cargos de coordenação, motivando-os a procurar uma especialização em Saúde da Família à distância, bem como cursos de liderança e motivação.

A primeira reunião dessa nova equipe multiprofissional teve três horas de duração. Iniciava-se aí um processo de avaliação, discussão e negociação que parecia mais aberto e horizontal, no qual se “dava voz a todos os atores” e cujo intuito era o de reconfigurar a estratégia de Saúde da Família nesse “território”. Muitas mudanças foram propostas, pelos mais diferentes atores, a fim de readequar o PSF à atenção básica de saúde. Procedimentos foram alterados e dois dos grupos de promoção da saúde foram reabertos com a participação do outro médico contratado: o de gestantes e o antitabaco.

Também foi colocado em pauta a falta de recursos públicos para a manutenção da Oficina da Alegria – um grupo de artesanato que visava à integração e ao

compartilhamento de experiências entre pessoas que estavam passando por processos depressivos. Esse grupo vinha sendo mantido, há anos, com recursos dos próprios agentes comunitários de saúde. A médica elogiou os ACS por tentarem manter a oficina viva por todos esses anos, mas disse que eles já estavam cansados de a “levarem financeiramente nas costas” e que era preciso encontrar uma solução urgente. Esse grupo foi extremamente estimulado quando da implantação do projeto-piloto do PSF na Praia Azul e recebeu subsídios durante alguns anos. “Antes, até camisetas nós tínhamos e muita gente participava. Tiramos muita gente da depressão e saímos até no jornal... Hoje, tem dia que aparecem duas pessoas, tem dia que aparecem três. A higiene da “Casinha” precisa ser mantida por nós mesmos e os materiais também precisam ser comprados por nós. Está insustentável!

Além disso, foram propostas alterações nos procedimentos de coleta de exames, entrega de resultados, armazenamento de fichas, cadastramento e descadastramento de famílias, agendamento de consultas, atendimento preferencial, entre outros. Para a coleta de exames, foi proposto que se designasse um funcionário responsável por identificar, na fila, usuários que se encontravam ali para fazerem exame de urina, de modo a orientá-lo acerca dos procedimentos para a coleta (uma vez que há muita contaminação do material por desconhecimento do procedimento) e encaminhá-lo para o local apropriado para a realização do mesmo. Desse modo, a fila do exame de sangue seria aliviada e os que demandavam por outros tipos de exames seriam liberados mais rapidamente. O novo procedimento para a entrega de exames visava ao agendamento de consultas com prazos de espera menores para usuários que estivessem com exames alterados. Assim, os médicos ficariam responsáveis por verificar os resultados de todos os exames e separar os que necessitariam de uma marcação de consulta breve daqueles que poderiam ser orientados pela enfermagem e entrar na lista de espera normal do agendamento de consultas.

O cadastramento e descadastramento das famílias pelo PSF foi um assunto que gerou polêmica, pois a manutenção do cadastro das famílias estava atrelada às VD mensais realizadas pelos agentes comunitários de saúde. Dessa maneira, se a família estava cadastrada, mas o agente não a encontrava por três meses consecutivos, era feito o seu descadastramento. Entretanto, grande parte da população assistida trabalhava fora, o que dificultava e, muitas vezes, impedia a manutenção desse cadastro. Novamente foi trazida à tona a necessidade de adequação da jornada de trabalho dos ACS. Uma solução proposta foi a mudança de horário de trabalho dos agentes, por exemplo, das 10 às 19h ou das 11 às 20h. Isso resolveria o problema do “ócio matinal” dos agentes, em virtude de ser cedo demais para fazer visitas e a

questão do desencontro com as “famílias trabalhadoras”. Entretanto, a Secretaria de Saúde também tinha um empecilho para isso – a administração não queria que seus funcionários trabalhassem em horários nos quais não pudessem ser fiscalizados por algum gestor e o horário de funcionamento da Secretaria era das 8h às 17h. Outra solução proposta foi a de dedicação exclusiva ao programa, mas com seguridade e respaldo da Secretaria e aumento substancial do salário, a qual foi descartada em primeira instância pelos gestores. Pode-se perceber que tanto os usuários quanto os agentes comunitários explicitam as falhas desse programa e dão o tom por onde ele poderia ser melhor operacionalizado. Todavia, contrariamente ao discurso, a atenção em saúde é suplantada por normas burocráticas, organizacionais e gestionárias que acabam por emperrar o próprio funcionamento do PSF.