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Marxismo e Amazônia no pensamento de Florestan Fernandes

CAPÍTULO II: A AMAZÔNIA NO DEPÓSITO ARQUEOLÓGICO DE ÉPOCAS E REGIÕES

2.2. Marxismo e Amazônia no pensamento de Florestan Fernandes

Nesta seção será analisado o ―encontro‖ do pensamento de Florestan Fernandes com a Amazônia. Para tal, o universo documental tomado como objeto de estudo concerne aquele produzido nas suas pesquisas antropológicas. O argumento que serve de liame com a hipótese da presente Tese é o de que em tais pesquisas já há a presença de elementos da sua sociologia militante e que marcará sua trajetória intelectual. O que implica em considerar que, a Amazônia que podemos aí vislumbrar através da sociedade Tupinambá e das comunidades caboclas, já contem o princípio de pesquisa que toma angulação dos subalternos como ponto de partida. O marxismo não será explicitamente a linha teórico-metodológica que orientará os seus estudos nesse período, embora estivesse no âmago de sua militância ainda na juventude, mas, como veremos adiante, será mobilizado ao lado de outras tradições teóricas para a definição e delimitação dos fenômenos tomados como objetos de pesquisa44.

2.2.1. Amazônia e marxismo e o ponto de vista dos subalternos

Assinalei anteriormente que o pensamento de Florestan Fernandes é matizado por diversas influências intelectuais, o que coloca a necessidade de considerar que a referência ao marxismo deve levar em conta o diálogo do autor com tal diversidade intelectual e a síntese que promove desta através do ponto de partida da análise, que privilegia uma angulação pelo olhar dos

44 Vale ressaltar que, concomitante ao seu acesso à universidade é a sua inserção no movimento socialista de corte trotskista que, a partir do encontro com Hermínio Sachetta, ocorre pela aproximação com o PSR. No cruzamento do encontro com a universidade e a experiência do movimento socialista, nos dizeres do próprio autor há uma escolha dramática: ―Ficar no movimento socialista clandestino, que não tinha nenhuma significação política e destruir certas potencialidades intelectuais; ou aproveitar essas potencialidades, sair do movimento e esperar que numa ocasião ou noutra, a minha identificação com o socialismo viesse à tona‖ (FERNANDES, 1978, p. 78)

subalternos. A Amazônia, informe, subsidiária de outros problemas de pesquisa, que veremos emergir nesse autor estará, fundamentalmente, nos seus estudos etnológicos e no conjunto diverso de correntes teóricas que estão na base das reflexões de Florestan Fernandes. Tais estudos já apontam para uma orientação crítica e militante, conforme o próprio autor apontou ao discorrer sobre sua produção intelectual no período de 1942 a 1960:

Pediria a esses leitores que procurassem ler melhor o que escrevi e ver se, por trás de um aparente empírico- criticismo ou de um sociologismo ―experimentalista‖, não havia uma firme intenção que cresce aos poucos, na medida em que abria espaço para defrontar-me com as inibições de uma sociedade tão opressiva quanto a brasileira. Não pude ligar a minha condição de socialista a minha condição de sociólogo. Todavia, isso era algo que transcendia às possibilidades de uma ―sociologia científica‖ que era aceita, pelos donos do poder, em termos de um sociologismo positivista mal compreendido. O que importa, no caso, é a projeção de minha vontade e o elemento subjetivo intrínseco às intenções que transmitia, implícita ou explicitamente, pelas quais enquadrava a sociologia dentro de uma posição materialista especificamente engelsiana e a comprometia com o confronto com a sociedade (FERNANDES, 1976, p. 140-141)

Do exposto nas palavras do próprio autor deve-se observar que a compreensão de que o período marcado pelos seus estudos antropológicos é fundamentalmente funcionalista, padece de um reducionismo que pouco esclarece sobre o encadeamento das ideias nesse autor e sobre seu ponto de partida metodológico. Ao lado de referências à Malinowski e Radcliffe-Brown nos estudos que realizou, por exemplo, sobre a sociedade Tupinambá, vamos encontrar a decisiva presença de Mannheim, como o autor mesmo esclarece:

[…] a discussão do problema das fontes não poderia ser confinada aos estreitos limites do seu conteúdo etnográfico. Na crítica das fontes, a sociologia do conhecimento, em virtude de considerar as conexões existentes entre as técnicas de consciência da realidade histórica e a estrutura social, sempre tem alguma coisa construtiva sugerir (FERNANDES, 1958, p. 80).

Em trabalho intitulado O Estudo da Organização Social, escrito inicialmente para ser introdução à dissertação de 1947 A Organização Social Tupinambá, a abordagem teórica mannheimiana sobre organização social ocupou lugar privilegiado:

[…] penso que os etnólogos e antropólogos contemporâneos endossariam facilmente as explanações de Karl Mannheim, que tomo a seguir como ponto de partida para a discussão do conceito de organização social‖ (FERNANDES, 1974).

Em outra ocasião, Florestan Fernandes aponta o lugar e o sentido das influências mannheimianas na formação de sua sociologia militante:

o amplo uso que fiz de Mannheim sugerem as fronteiras não declaradas de um inconformismo que incorporei à sociologia (e que, portanto, nunca foi externo àquilo que poderia designar como a minha prática pedagógica) (1976, p. 141).

Em que pese a marcante presença de Mannheim, sob um cotejamento mais cuidadoso vamos encontrar, ao longo dos estudos de Florestan Fernandes sobre os Tupinambá, diversas referências a autores da tradição marxista ao lado de representantes de outras tradições teóricas. Aliás, o recurso ao método mannheimiano da ―análise circunstancial‖ aplicado à investigação de fenômenos sócio-históricos configura-se como um desenvolvimento do ―materialismo-histórico‖45

.

Em O Estudo da Organização Social, encontramos uma reflexão que recorre à contribuição de Marx e Engels para explicitamente atender às exigências de maior rigor conceitual. De Marx e Engels a Mannheim, a reflexão que Florestan Fernandes empreende em torno do conceito de organização social resulta numa análise que já aponta para a necessidade de estabelecer os nexos entre o empírico singular e os processos históricos que o marcam. Neste mesmo estudo, considera fundamental a anterioridade dos escritos de

1844 de Marx, em relação à Antropologia, para abordar com mais solidez teórica a dicotomia entre indivíduo e sociedade, o que lhe permite assinalar que aquele só pode ser compreendido no âmbito das relações concretas estabelecidas nesta última. Ainda no mesmo texto, Florestan Fernandes se aproxima de O Manifesto Comunista, para ancorar a explicação em torno das mudanças tecnológicas e econômicas e seus impactos nas representações e ideologias e, dessas, na organização social. A obra Crítica da Economia Política, de Marx, ao lado de Economia e Sociedade, de Weber, ao estabelecer o nexo histórico entre o protestantismo e o capitalismo, é apontada pelo autor como contribuição para elucidar a influência daquilo que ele chama de ―mentalidade grupal‖ sobre a organização social.

Na esteira dessa linha de raciocínio, vamos encontrar na obra A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, escrita originalmente no período de 1947-1951, a presença da contribuição de Marx e Engels e ainda, de Lênin. A referência à vida em sociedade e seus equipamentos culturais adaptativos ao meio natural, que reforçam a interdependência entre os homens, recorre ao estudo A Ideologia Alemã como fonte de fundamento teórico. Entre os autores que serviram de referência para uma explicação sociológica da guerra nas ―sociedades civilizadas‖ encontramos Lênin, com o trabalho La guerra y la Humanidad.

Tais observações concorrem para reforçar nosso entendimento sobre a forma particular de investigação etnológica que Florestan Fernandes empreende. O método funcionalista empregado no estudo da sociedade Tupinambá, ao transitar por Mannheim e pelo marxismo, ainda que este de forma menos decisiva que aquele, não se deixa aprisionar por fórmulas abstratas, por formalismos que aprioristicamente dessem conta do objeto. Para o autor, os conceitos relativos à ―guerra‖, ―organização social‖, ―função‖, ―integração‖ só poderiam efetivamente serem definidos e interpretados no confronto com ―tipos sociais determinados (FERNANDES, 1970 [1951], p. 11). Isso implica numa arquitetura metodológica de pesquisa que necessariamente teria que recorrer à explanação histórica, o que, por sua vez, lhe possibilitou analisar o avanço dos colonizadores europeus sobre o território ocupado pelos Tupinambá e outros povos indígenas, a destruição de suas formas de

organização, dos seus meios tecnológicos e da sua capacidade adaptação ao meio natural, bem como discorrer sobre e as estratégias de resistência que a sociedade Tupinambá construiu para se opor aos conquistadores. Desse modo, seus estudos sobre a sociedade Tupinambá, e também sobre o folclore e sobre as comunidades caboclas do vale amazônico, já estão marcados pelo princípio metodológico que toma os debaixo da estrutura social como o ponto de partida da investigação.

Podemos perceber no tratamento metodológico que deu à análise das fontes deixadas pelos cronistas, os alicerces desse princípio que marcará toda a sua obra. No trabalho Resultado de um Balanço Crítico Sobre a Contribuição Etnográfica dos Cronistas (originalmente publicado sob o título A Análise Funcionalista da Guerra: possibilidades de Aplicação à Sociedade Tupinambá, em 1949), o autor assinala que as fontes dos cronistas quinhentistas e seiscentistas não poderiam se circunscrever aos limites da análise do conteúdo etnográfico que continham. Fazia-se necessário, para uma compreensão mais objetiva, confrontá-las com a sociologia do conhecimento e, então, apreender os nexos entre a ―consciência da realidade histórica‖ que expressavam e a estrutura social em que eram produzidas (FERNANDES (1958 [1949], p. 79- 80).

Se considerarmos seu trabalho, Tiago Marques Aipobureu: um Bororo Marginal, (escrito originalmente em 1945, conforme Florestan Fernandes, para o Seminário sobre os índios do Brasil, organizado por Herbert Baldus), veremos que já nesse estudo o ponto de partida é o da apreensão do sentido de marginalidade. Assinala o autor: ―O marginal é um homem que se situa na divisa de duas culturas, sem pertencer a nenhuma delas‖ (p. 311). E dessa definição ele fará a análise do caso do índio bororo Tiago Marques Aipoboreu, que foi ainda criança levado para o sistema educacional ocidental pelos padres salesianos e depois para o complemento de sua formação na Europa. Ao voltar, Tiago não é europeu, mas também não é mais um bororo. Está à margem do mundo dos brancos e dos indígenas. Essa marginalidade é tomada

como objeto de análise para a compreensão dos impactos dos contatos com o branco na organização da personalidade do indígena46.

Uma última observação antes de avançar pelos trabalhos de Florestan Fernandes relativos ao que eu defino como um ―encontro‖ do autor com a Amazônia. Ao tratar do horizonte metodológico do presente estudo, tomei Lukács e Goldmann acima como fundamentos para uma apreensão do marxismo aqui analisado. Para o caso específico da contribuição de Florestan Fernandes nesse veio teórico, acrescentemos, a essas primeiras recomendações, aquelas feitas por Isaac Ilich Rubin, em História do Pensamento Econômico (2014 [1926]), ao desenvolver um estudo das ideias econômicas. Conforme Rubin, as ideias não nascem no vácuo. Emergem no contexto dos conflitos sociais, dos embates entre classes. Isso coloca o desafio, para os estudiosos das ideias de darem conta de uma tarefa dual, a saber: por um lado, dar conta de uma exposição das condições históricas a partir das quais diversas correntes de pensamento se efetivam, e por outro lado, apreender o ―significado teórico‖, as relações lógicas internas às ideias (p. 30). Compreendo que este desafio, não é propriamente posto por Rubin, mas pelo conjunto do marxismo. Todavia, no caso de um estudo do pensamento de Florestan Fernandes, com um interesse específico por dar conta da presença e do significado de referências à Amazônia, à sua sociodiversidade, o trabalho de Rubin interessa também pela contribuição que deu a uma reconstrução do itinerário de estudos de um autor, Karl Marx. Rubin informa que percebeu que as referências de Marx à Petty, Smith, Ricardo e tantos outros economistas, esparsas no corpo do texto e em notas de rodapé de sua obra magistral, ―são os resumos abreviados, para não dizer parcimoniosos, das pesquisas altamente detalhadas –e, por vezes, extenuantes- contidas nas Teorias da mais-valia‖ (p. 32). Somente à luz das anotações pretéritas de Marx sobre as ideias econômicas é que poderemos apreciar a presença das notas de rodapé

46 Em 1942, portanto antes do trabalho sobre Tiago Marques Aipobureu, Florestan Fernandes desenvolveu pesquisa em Sorocaba sobre um culto religioso criado e desenvolvido pelo ex- cativo João de Camargo. Os resultados desta investigação foram publicados pela primeira vez sob o título Contribuição para o estudo de um líder carismático, em Mudanças Sociais no Brasil, em 1960. Em tal trabalho, já é possível perceber a tomada do ponto de vista daqueles que estão à margem, os subalternos, para uma compreensão da realidade brasileira.

espalhadas em O Capital, como um componente orgânico do mesmo. Estas notas são signos de um conjunto de leituras, hipóteses que foram pesquisadas, debates críticos que foram travados com outros autores. E Rubin, ao tomar as notas de Marx com esse espírito, foi capaz de reconstruir o percurso do pensamento desse autor e produzir sua obra História do Pensamento

Econômico47. Em relação à Amazônia nos estudos de Florestan Fernandes,

vamos encontrar, como veremos a seguir, diversas referências, em citações e notas de rodapé, à região e às suas comunidades indígenas e caboclas, que podem até ter a aparência de incidentais, mas compõem organicamente a totalidade que se efetivará nos estudos etnológicos primeiros e nos estudos de sociologia econômica que serão desenvolvidos a partir da década de 1960.

2.2.2. A Amazônia em Florestan Fernandes

A contribuição de Florestan Fernandes para a pesquisa antropológica, segundo Renan Freitas Pinto (2008), não deixa dúvidas quanto à relevância. Seu ensaio Tendências Teóricas da Moderna Investigação Etnológica no Brasil, publicado primeiramente entre 1956 e 1957, na revista Anhembi, e depois no livro A Etnologia e a Sociologia no Brasil, em 1958, é exemplar nesse aspecto, pois mobilizou e tem mobilizado o debate por parte de diversos pesquisadores do campo antropológico brasileiro como Egon Schaden, Roberto Cardoso de Oliveira, Júlio Cezar Melatti, Maria G.S. Peirano e Edgar Assis de Carvalho. Mas o que interessa desses estudos antropológicos, no escopo do presente trabalho é refletir sobre a Amazônia que é possível perceber a partir de alguns etnólogos, cronistas viajantes, cujas pesquisas e relatos foram objeto dos estudos de Florestan Fernandes.

47 José Paulo Neto, ao lidar com uma Apresentação aos Cadernos de Paris & Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844, entre outras observações aponta o seguinte sobre o lugar das notas num estudo: “parece-me ser de alguma valia, em especial pensando nas novas gerações de pesquisadores e militantes políticos e sociais dispostos ao estudo, compartilhar (ainda que pontual e parcialmente) uma documentação acumulada em décadas de trato com a obra marxiana, remetendo inclusive a analistas hoje pouco visitados e evocando fatos e polêmicas sobre os quais o tempo presente já estende o seu manto nada diáfano” (2015, p. 12-13).

Tomo como referências fundamentais da discussão na presente seção, os seguintes trabalhos do autor: Organização Social dos Tupinambá, originalmente escrita entre os anos de 1946 e 1947 para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais e publicado pela primeira vez em 1949 na Coleção Trópico, que era dirigida por Sérgio Buarque de Holanda48; A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, sua Tese de Doutoramento, escrita entre 1947 e 1951; o ensaio anteriormente citado Tendências Teóricas da Moderna Investigação Etnológica no Brasil; os ensaios Os Tupi e a Reação à Conquista (escrito para História Geral da Civilização, obra organizada por Sérgio Buarque de Holanda e publicada em 1960), Um Retrato do Brasil (originalmente publicado entre fevereiro e abril de 1946 no Jornal de São Paulo) e Relações Culturais Entre o Brasil e a Europa (escrito em 1954 para o Congresso Internacional de Escritores, realizado em São Paulo), todos publicados no livro Mudanças Sociais no Brasil, em 1960).

Desse conjunto de trabalhos, um elemento primeiro a observar é a Amazônia que Florestan Fernandes encontra nos estudos sobre os Tupinambá. Efetivamente, não há ainda a Amazônia. O que há é uma região distante, para a qual, contra a fúria destrutiva do colonizador, os Tupinambá se retiram. Uma região ainda taquigrafada conforme os termos que o pensamento social europeu reservou a ela ao longo do processo de conquista e as notas que tomou das referências produzidas pelos indígenas. É sertão, lugar edênico e, ao mesmo tempo, de pobreza ecológica. Uma incursão, então, pelos estudos do autor sobre os Tupinambá, no escopo do presente trabalho, não tem o objetivo de lidar efetivamente com a organização social dessa sociedade, seus rituais, sistemas econômicos a função da guerra em si mesmos, mas na medida em que, esse conjunto possibilita compreender as imagens primeiras que a investigação etnológica de Florestan Fernandes pôde apreender da Amazônia e dos povos que a habitaram e ainda a habitam. É nessa disposição metodológica que passamos a analisar agora determinados aspectos desses trabalhos que tomaram os Tupinambá por objeto.

Ao se deslocarem, no século XVI, por conta do conquistador branco e suas estratégias de colonização que afetaram profundamente o equilíbrio que as sociedades indígenas haviam estabelecido com o meio e os recursos naturais, transformando o litoral antes habitados por tais sociedades em uma ―terra dos males sem fim‖ (VAINFAS, 1995), os Tupinambá foram, numa espécie de ―movimento messiânico‖, em busca do Paraíso Terreal49

, lugar onde encontrariam ―imortalidade e descanso perpétuo‖50, o ―paraíso terrestre dos

caraíbas e profetas‖51

.

Cumpre observar, no entanto, que os movimentos migratórios entre os Tupinambá estão intimamente vinculados às suas formas de atividades econômicas. Conforme as notas tomadas por Florestan Fernandes, praticavam uma economia de subsistência, caracterizada por atividades como a caça, a pesca, a coleta de frutos, de ovos e de pássaros, e ainda, a horticultura52. Independente das diferenciações geográficas que encontraram, as zonas que foram por eles povoadas não se configuraram em hostis ou inadequadas à reprodução da sua vida econômica: ―Todas elas apresentam as condições necessárias ao cultivo dos principais alimentos vegetais da dieta Tupinambá. E todas dispunham de extensas áreas férteis, dotadas de bosques amplos e de zonas piscosas‖ (FERNANDES, 1963 p.83). Possuíam um conjunto de conhecimentos relativos aos fenômenos naturais e ao aparato tecnológico que estava bem articulado às suas necessidades econômicas. Desse modo, detinham informações sobre as várias espécies vegetais e animais e seus usos, um rudimentar sistema matemático, uma cosmografia que lhes permitia compreender certas posições das estrelas, os movimentos do sol e as lunações. Tal conjunto de saber respondia satisfatoriamente aos fins práticos dos Tupinambá. Através dele, eles faziam previsões meteorológicas,

49 Essa ideia de movimento messiânico em busca do Paraíso Terreal, é extraída de citação coligida por Florestan Fernandes, Em Organização Social dos Tupinambá e A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, do documento Descrição do Estado do Maranhão, Pará, Corupá e Rio Amazonas, escrito entre março de 1662 e julho de 1667 por Maurício de Heriarte. 50 Citação a Gandavo, em Organização Social dos Tupinambá, p. 104.

51 Citação a Abbeville, em Organização Social dos Tupinambá, p. 105.

conheciam os ciclos da chuva, a chegada da piracema, o período para as atividades agrícolas e para os rituais e a guerra.

O conhecimento tecnológico que detinham os Tupinambá é um outro aspecto considerado relevante por Florestan Fernandes, ao ponto de dedicar a ele o Livro Primeiro de A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, que trata de sua tecnologia guerreira. Mas, no que interessa ao presente estudo, ficamos com as notas do autor sobre as técnicas nos seus usos estritamente econômicos. O autor aponta que, embora fosse suficiente para as necessidades econômicas do grupo, as técnicas empregadas eram rudimentares, baseadas fundamentalmente na atividade extrativa dos recursos naturais. Na atividade agrícola, a queimada associada com o uso de estaca para cavar e o machado de pedra compunham a técnica na preparação do solo para o plantio e colheita, que girava em torno do cultivo de ―mandioca, batatas, ervilhas, milho e várias espécies de raízes, legumes e ervas‖53

. Citando Acuña, o autor dá conta de uma peculiaridade da economia Tupinambá no norte (Amazônia): construíam currais nos quais eram aprovisionadas mais de cem tartarugas, que compunham parte da alimentação na região. Havia o domínio da técnica de conservação de alimentos pela moqueação54, através da qual garantia-se carne de animais, pássaros e peixes. Esse conjunto de conhecimento tecnológico, todavia, não incorporava uma disposição para atividades compensatórias face ao uso que faziam dos recursos extraídos da natureza. O que significa dizer que não havia a preocupação com o