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Entre o mágico e o cruel : a Amazônia no pensamento marxista brasileiro

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LUIZ FERNANDO DE SOUZA SANTOS

ENTRE O MÁGICO E O CRUEL: A AMAZÔNIA NO PENSAMENTO MARXISTA BRASILEIRO

CAMPINAS 2018

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LUIZ FERNANDO DE SOUZA SANTOS

ENTRE O MÁGICO E O CRUEL: A AMAZÔNIA NO PENSAMENTO MARXISTA BRASILEIRO

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de doutor em Sociologia.

Orientadora: Profª Drª Elide Rugai Bastos

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO LUIZ FERNANDO DE SOUZA SANTOS, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ELIDE RUGAI BASTOS

CAMPINAS 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPIBNAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública, realizada em 05 de março de 2018, considerou o candidato Luiz Fernando de Souza Santos aprovado.

Profa. Dra. Elide Rugai Bastos

Profa. Dra. Mariana Miggiolaro Chaguri Profa. Dra. Marilene Correa da Silva Freitas Prof. Dr. Jesus José Ranieri

Prof. Dr. Bernardo Ricúpero

A Ata de Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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À Dona Iraci, minha querida mãe, por quem parei para ver as flores explodindo em festa na primavera (In Memorian).

À Houry Karla, companheira amada, que trilhou comigo incondicionalmente esta trilha, às vezes dura, do doutoramento.

À Larissa Fernanda, Rebecca e Lucas, filhas e filho sem os quais a vida seria vazia de sentido.

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AGRADECIMENTOS

Certa vez, Hannah Arendt observou que nenhum trabalho, nenhuma obra, é feita solitariamente. O ser que assim produz não é um homem; é um deus. O presente estudo, pois, embora leve minha assinatura, não seria possível sem uma coletividade de amigos, professores e instituições que o apoiaram, criticaram, contribuíram nas trilhas a serem seguidas. O rol de agradecimentos corre, então, o risco de não fazer justiça a todos que concorreram para que este trabalho se tornasse efetivo.

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), que custeou a bolsa de doutoramento, e aos seus funcionários, sempre prestativos no acompanhamento das relações entre bolsista e a Instituição. Apesar do ataque sistemático, e por isso mesmo, desferido pelo atual Governador do Estado, José Melo, contra o sistema de CT&I no Amazonas, com suspensão de projetos e atrasos no desembolso das bolsas, reconheço o lugar estratégico dessa Fundação.

À professora Elide Rugai Bastos, orientadora, pelas generosas e respeitosas observações, desde a proposta inicial de Tese que queria abraçar o mundo até o trabalho com os contornos que agora tem.

Agradeço ao professor Jesus Ranieri pelas disciplinas ministradas em torno do pensamento de Hegel e Marx e pela condução do grupo de estudo de O Capital, que foram fundamentais teórica e metodologicamente para as bases intelectuais em que a tese está assentada.

Aos amigos do grupo de estudo de O Capital Henrique Braga, Tábata Berg, Ricardo Festi, Natália Cerri, Murilo van der Laan, Hyury Pinheiro e Gilberto Busso, agradeço pelas manhãs teoricamente ricas.

Aos amigos do Grupo de Estudos da Pan-Amazônia, particularmente Alejandro Ramirez e Marco Tobón, agradeço pelos debates em torno de pesquisas diversas sobre uma Amazônia continental, que fala português, espanhol e diversas línguas indígenas e que sofre e resiste ao devassamento contemporâneo da região pelo capital.

Ao professor Michael Löwy agradeço pela leitura e considerações críticas à minha proposta inicial de pesquisa.

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Agradeço também aos professores Marcelo Ridenti e Mariana Chaguri pelas preciosas observações como avaliadores em meu Exame de Qualificação.

Agradeço à Universidade Federal do Amazonas, particularmente aos colegas professores do Departamento de Ciências Sociais, pela minha liberação para o estudo doutoral.

À Professora Marilene Correa e ao Professor Renan Freitas Pinto, meus mestres e amigos do Departamento de Ciências Sociais, que fizeram observações importantes nos primeiros insights para esta pesquisa, que pacientemente se disponibilizaram a serem entrevistados e que deram preciosas sugestões de leitura.

Ao Departamento de Coleção de Obras Raras e Especiais, da Universidade Federal de São Carlos, agradeço o acesso ao acervo da biblioteca pessoal de Florestan Fernandes, onde pude observar as marginálias do autor em obras relativas aos Tupinambá e à Amazônia.

Agradeço aos livreiros do Sebo Iluminações, em Campinas, que compreenderam minha proposta de estudos e fizeram chegar às minhas mãos obras imprescindíveis para que a mesma avançasse.

À Coordenação e Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Campinas, agradeço pela pronta resolução das demandas burocráticas que apresentei.

Aos funcionários da Biblioteca Octavio Ianni, do IFCH/UNICAMP, agradeço pela disposição em tornar acessível livros, revistas e documentos necessários à minha pesquisa. Mesmo com todos os limites que a lógica de cortes de recursos que esses tempos duros de neoliberalismo impõe, uma biblioteca como esta deve ser a meta das universidades localizadas nos rincões do país.

Ao Juntos! de Campinas, que chegou em casa com Larissa e trouxe os sonhos, as lutas, as táticas e estratégias, bem como a música e o riso de uma juventude anticapitalista.

Por fim, quero agradecer ao conjunto dos estudantes da Pós-Graduação e Graduação do IFCH/UNICAMP. Com eles enfrentei greves, lutas e debates por cotas na universidade, por mais democracia, por respeito à diversidade,

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por transporte público. Tais lutas apontam para o contexto do mundo do trabalho em que a produção intelectual é possível. Desse modo, compreendi que o presente estudo nasce da busca por apreender os aspectos mais significativos das contradições de nossa época.

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―Primeiramente, Fora Temer!‖

Frase dita em reuniões, seminários, congressos e atividades acadêmicas várias nos dias de hoje e que informa o contexto em que esta Tese foi escrita.

―A minha história é talvez É talvez igual a tua, jovem que desceu do norte Que no sul viveu na rua Que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo Que ficou desapontado, como é comum no seu tempo Que ficou apaixonado e violento como você Eu sou como você Eu sou como você Eu sou como você que me ouve agora

Eu sou como você

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RESUMO

O presente trabalho desenvolve uma análise sobre um momento particular da história das Ciências Sociais brasileira, relativa ao encontro entre o marxismo brasileiro da Escola Sociológica Paulista e a Amazônia. A hipótese diretriz deste estudo compreende a Amazônia como elemento heurístico para a investigação sociológica que se envolve com o tema da região, nação e globalização. O pressuposto metodológico, decorrente desta hipótese, é que a Amazônia é um artefato social, cultural, econômico e histórico a partir do qual a sociedade nacional e mais contemporaneamente, a sociedade mundial, podem ser explicadas. A nação e o mundo se projetam na Amazônia, transformando-a em objeto das intervenções que atendem aos interesses do capital, mas ao mesmo tempo é objetado por ela. A região se projeta na sociedade mais envolvente desnaturalizando velhos estereótipos e preconceitos, perturbando as referência conceituais e categoriais que pretendem explicá-la. Como unidade empírica de pesquisa tem-se os diversos estudos que tomaram a Amazônia por objeto, ou ainda, por referência nas análises sobre o Brasil desenvolvidos por autores centrais da Escola Sociológica Paulista: Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Francisco de Oliveira e José de Souza Martins. Um outro conjunto de estudos analisados é aquele dos autores representativos de um ―marxismo que vem de dentro‖, de uma reflexão sociológica feita por pesquisadores da região amazônica cuja base intelectual foi construída no diálogo com a Escola Sociológica Paulista: Violeta Refkalesky Loureiro, Marilene Correa da Silva, Alex Fiúza de Mello e Renan Freitas Pinto. Por se tratar de um estudo que envolve o pensamento marxista, o método de investigação e de exposição se fundamenta na contribuição marxiana, de maneira que trata-se de pesquisar autores marxistas por meio de uma categoria central para essa tradição de pensamento: a categoria de totalidade.

Palavras-chave: Amazônia, Marxismo brasileiro, Escola Sociológica Paulista,

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ABSTRACT

The present work develops an analysis on a particular moment in the history of the Brazilian Social Sciences, concerning relationships between the Brazilian Marxism of the Paulista Sociological School and the Amazon. The guiding hypothesis of this study understand the Amazon as a heuristic element for the sociological investigation that is involved with the theme of the region, nation and globalization. The methodological assumption, derived from this hypothesis, is that the Amazon is a social, cultural, economic and historical artifact from which national society and more contemporaneously, world society can be explained. The nation and the world are projected into the Amazon, transforming it into the object of interventions that serve the interests of capital but, at the same time, it is objected to by Amazon. The region projects itself in the most embracing society deconstructing old stereotypes and prejudices, disturbing the conceptual and categorical references that intend to explain it. As empirical unit of research we have the several studies that took the Amazon by object, or, for reference in the analyzes on Brazil developed by central authors of the Paulista Sociological School: Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Francisco de Oliveira And José de Souza Martins. Another set of studies analyzed is that of the authors representing a "Marxism that comes from within", a sociological reflection made by researchers from the Amazon region whose intellectual base was built in the dialogue with the Paulista Sociological School: Violeta Refkalesky Loureiro, Marilene Correa Da Silva, Alex Fiúza de Mello and Renan Freitas Pinto. Because this study involves the Marxist thought, the method of investigation and exposition is based on the Marxian contribution, so it is a question of researching Marxist authors through a central category for this tradition of thought: the category of Totality.

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SUMÁRIO

Introdução 14

Capítulo I: Amazônia e marxismo brasileiro: objeto, pressupostos e hipóteses

25

1.1. O salto a partir de “A Miséria”: aproximando-se do objeto 25

1.2. O Objeto nos interstícios da tentação metodológica 38

1.2.1. Os marxismos e os encontros e desencontros para uma leitura da Amazônia

41 1.2.1.1. O marxismo e as polêmicas dos estudos pós-coloniais 41 1.2.1.2. Marx e os marxismos na periferia latino-americana 47 1.2.1.3. E o mundo tropical impactou o Capital, de Marx 57

1.2.1.4. O marxismo e seus múltiplos 62

1.2.2. A Escola Sociológica Paulista: o caminho analítico do circuito fechado

67 1.2.2.1. A Comunhão Paulista e os condicionantes políticos e

ideológicos para a criação da Universidade de São Paulo

68

1.2.2.2. A Escola Sociológica Paulista 73

1.2.3. A Amazônia: categoria sócio-histórica-cultural 84

1.3. Pressupostos e Hipóteses da Pesquisa 104

Capítulo II: a Amazônia no depósito arqueológico de épocas e regiões

118

2.1. Introdução 118

2.2. Marxismo e Amazônia no pensamento de Florestan Fernandes 122 2.2.1. Amazônia e marxismo e o ponto de vista dos subalternos 122

2.2.2. A Amazônia em Florestan Fernandes 128

2.2.3. A Amazônia nas Marginálias de Florestan Fernandes 143

2.3. Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni a caminho do encontro com a Amazônia

158

2.3.1. O contexto dos dois autores 158

2.3.2. Os marxismos de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni e a Amazônia Quase

164

Capítulo III: A sociologia chegante entre o mágico e o cruel 182

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3.2. O Contexto do encontro com a Amazônia 185

3.3. A Escola Sociológica Paulista no limite das sociedades amazônicas

190 3.3.1. A terra cativa como matriz histórico-estrutural de explicação do

Brasil

194 3.3.2. Conflitos Agrários na Fronteira Amazônica 196 3.3.3. A questão indígena na realidade da terra 204

3.3.4. O planejamento autoritário na Amazônia 209

3.4. O CEBRAP e a Amazônia 214

3.4.1. Francisco de Oliveira e a dimensão amazônica do Ornitorrinco 215 3.4.2. Fernando Henrique Cardoso e o devassamento da Amazônia 229 3.4.3. Octavio Ianni e a miséria do capital na Amazônia 239

3.4.3.1. A contrarreforma agrária 245

3.4.3.2. Ditadura, Capital Monopolista e Amazônia 246 3.4.3.3. A ―comunhão‖ contra as sociedades indígenas 248 3.4.3.4. A acumulação primitiva de capital na Amazônia 251 3.4.3.5. A Amazônia e a explicação da sociedade nacional 253

CAPÍTULO IV: O marxismo que vem de dentro 258

4.1. O Sentido da produção intelectual do ―marxismo que vem de dentro‖ 261

4.2. Capital e trabalho na Amazônia 263

4.3. Região e Nação 276

4.4. Amazônia como momento do mundo 284

À GUISA DE CONCLUSÃO: De te fabula narratur! 294

Referências Bibliográficas 301

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INTRODUÇÃO

Na Metamorfose de Kafka, Grete irmã de Gregor Samsa, chama de monstro o irmão que virou inseto; a palavra usada em alemão é “ein Untier”, um inanimal, em simetria estrita com inumano. O que temos aqui é o oposto de inumano: um animal que, embora permaneça animal, não é realmente animal- o excesso além do animal, o núcleo traumático da animalidade que só pode surgir “como tal” num ser humano que se tornou animal.

(Slavoj Žižek , A Visão em Paralaxe)

Esse é um estudo sobre o encontro do pensamento marxista da Escola Sociológica Paulista com a Amazônia brasileira. Dito dessa forma, a intenção mesma do que aqui pretendo permanece um enigma. Parece um conto de Borges sobre um livro maldito, de páginas infinitas e que o leitor, desesperado, jamais consegue abrir no trecho em que parara anteriormente.

É necessário, então, precisar o que está na finalidade da exposição: é um envolver-se com o que há muito tem uma história, mas que foi esquecida, não-dita, omitida, nas bárbaras lutas entre os campos intelectuais pela definição de quem tem a autoridade legítima para dizer sobre o ser das coisas, das sociedades, do movimento do real. Uma história silenciada sobre a aventura objetiva, concreta, fáustica do capital nos rincões da terra — numa região às vezes narrada como paraíso, outras vezes como inferno — e sobre um pensar e um agir ontológico, radical, destrutivo para os interesses postos nessa aventura.

Na era dos discursos científicos assépticos, ou de críticas radicais que não ultrapassam os umbrais das formas estetizadas de enunciação, próprias do império dos termos acompanhados pelo prefixo pós (moderno, pós-estruturalismo, pós-marxismo, pós-colonialismo), este é um trabalho que se envolve com uma página da sociologia brasileira, particularmente da Escola Sociológica Paulista, que pretende retirar da quietude, do silêncio, seus nexos com a tradição marxista e os desdobramentos destes no encontro dessa escola e dessa tradição intelectual com a Amazônia. Trata-se de um encontro em que a perspectiva de análise não é aquela dos jogos relacionais positivistas entre

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sujeito e objeto. Tem mais a ver com uma ideia que um filósofo nascido na longínqua Liubliana1 avançou sobre esses componentes decisivos da investigação científica: se é correto dizer que o sujeito do conhecimento constrói seu objeto de análise, não é menos correto considerar que este último também objeta o primeiro. Isso significa que os enunciados produzidos pelo pesquisador sobre determinado objeto é condição da posição em que se encontra em relação a este. O objeto se impõe sobre o sujeito do conhecimento, objetando-o. O Objeto incomoda, é aquilo que traz perturbação à tranquilidade das coisas. É, pois, um objeto paralático, cujo movimento aparente decorre da mudança do lugar a partir do qual se observa, o que possibilita a emergência de uma nova perspectiva de visão. Sujeito e objeto são inerentemente mediados e isso implica em que o olhar do primeiro é um ―sempre-já inscrito‖ no segundo. Desse modo, o lugar epistemológico do sujeito que observa expressa uma condição ontológica do objeto, que muda quando aquele lugar sofre mudanças.

À guisa de hipótese, pois, o presente estudo aprecia o seguinte enunciado: a Amazônia não é o relicário de um passado remoto, mas é presente, intimamente ligada que está às formas de acumulação capitalista. E mais que uma espacialidade geográfica particular, ela se constitui para as ciências sociais, para o marxismo brasileiro, num potente elemento de explicação heurística, que nos ajuda a refletir melhor sobre o sentido de nossa época.

Para além de seus aspectos físicos, geomorfológicos, ecológicos, a Amazônia que aqui será abordada, aquela que é o conteúdo do problema de pesquisa deste trabalho, refere-se a uma espacialidade e, ao mesmo tempo, uma temporalidade prenhe de simbolismos, de significados histórico-estruturais, que só podem ser explicados na apreensão dialética do local e do particular, da região e da nação. A Amazônia não é, dessa maneira, a matéria de uma realidade distinta, de uma sociedade diferente, estranha, à sociedade brasileira. A realidade amazônica é o espelho da sociedade nacional, do que

1 O filósofo é Slavoj Žižek.

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estas foi tornada possível no âmbito do processo de expansão da acumulação capitalista em frentes diversas no país.

Tomar a Amazônia como ponto de partida para a investigação sociológica, pois, é observar um princípio metodológico que, como será visto adiante, remonta a Antonio Gramsci e suas reflexões sobre a questão meridional. Para o autor sardenho, a chave de explicação da questão nacional italiana está nas questões postas pela condição periférica de classes e de territórios. Essa perspectiva metodológica será central nos estudos dos autores cujas obras servirão de unidade empírica para a análise do sentido do encontro entre o marxismo da Escola Sociológica Paulista com o vale amazônico.

Lembro que nos momentos iniciais e flutuantes deste estudo, apresentei um conjunto de ideias e hipóteses no II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte, em 2010, na cidade de Belém. Na ocasião, a professora que coordenava os debates no GT fez uso da seguinte expressão para dizer sobre como percebeu o trabalho: ―Estranho. A Amazônia tem sido estudada em sua diversidade cultural, flora e fauna, como lugar empírico importante dos debates ambientais, do avanço do agronegócio. Mas, marxismo, isso é estranho‖. Com o avanço da pesquisa, com as leituras e discussões no Grupo de Estudos d‘O Capital, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, em torno do pensamento de Hegel e de Marx, e face à observação feita pela professora em Belém, posso dizer que este é um trabalho que se deixa mover por um fenômeno fundamental para os dois pensadores alemães, a saber, aquele expresso na palavra Entäusserung, e do qual extraio a positividade do sentido de pôr-se para fora, colocar-se fora, ir para fora. Aqui, sair dos temas que são hegemônicos nas pautas de pesquisa e de financiamento das agências de fomento, das políticas de ciência e tecnologia e de desenvolvimento econômico para a região, a fim de sair de escopos teóricos, de matrizes epistemológicas e epistemologizantes, que tornam a dimensão ontológica do ser social um não-dito, algo que se pode omitir quando o olhar quer se voltar para o vale amazônico, ou que se pode dizer desde que depurado dos riscos dos desdobramentos da análise crítica. Aqui, a positividade da Entäusserung é como o fio de Ariadne a conduzir para fora do labirinto da Entfremdung das representações hegemônicas sobre a

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região, da posição estranhada, que acha estranho o dizer sobre algo que está na história intelectual e política desse lugar, mas que foi ―esquecido‖, tomado como não-inscrito ali.

Este estudo, cumpre observar, é também o desdobramento de uma pesquisa anterior, O Panóptico Verde. Nesse trabalho pretérito, me envolvi com a gente que vivia às margens do rio Unini, Carabinani e Jaú, afluentes do Rio Negro, e que se vira envolvida numa máquina de formações discursivas oriundas das ciências da natureza, das políticas de proteção ambiental do Estado brasileiro e do movimento ambientalista, que lhe dizia que aquele lugar era um parque nacional e lhes impunha, então, uma engrenagem ―participativa‖ de controle e disciplinamento que a protegia de si, da destrutibilidade imanente à natureza humana. Quis fazer uma descrição densa dessa engrenagem de ambientalização da gente que vivia num canto da Amazônia. Panóptico, controle, disciplinamento, formações discursivas, descrição densa, são palavras a indicar que as fontes intelectuais que deram fundamento para aquele estudo foram encontradas nas reflexões de Michel Foucault, Ludwig Witgenstein e Clifford Geertz. Com essas referências intelectuais mergulhei no panóptico verde para descrever sua arquitetura e seu sistema de vigilância sobre o ―perigo que vem de dentro‖ (os caboclos que moravam dentro do parque). Numa ocasião, naquele período, li também uma obra de Octávio Ianni, Ditadura e Agricultura, que discorria sobre como as terras-do-sem-fim, devolutas, indígenas, foram apropriadas pelo grande capital nacional e internacional sob a batuta de uma política agressiva e sistemática de subordinação da agricultura ao capital pelo Estado Brasileiro. Me chamou a atenção, ou causou um estranhamento, que a análise da indução agressiva e repressiva de uma política de capitalismo dependente na região, nessa obra de Ianni, dá conta de uma Amazônia que deixa de fora da abordagem aquela zona em que a política de proteção ambiental mais proliferou, e da qual, numa pequena parte eu desenvolvia minha pesquisa. A Amazônia do avanço da fronteira agropecuária do grande capital e a Amazônia das políticas preservacionistas pareciam se configurar em universos distintos, determinações diversas, para os variados interesses de pesquisa das ciências sociais, para debates que davam a impressão de serem irredutíveis entre si. Os

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questionamentos postos pela leitura do livro de Ianni foram colocados em suspensão e voltei-me para as referências que me conduziam pelas celas do panóptico verde. E por me deixar conduzir seriamente pela expressão de Geertz ―outros campos, outros gafanhotos‖, deixei de considerar, naquela pesquisa, que poderia haver uma conexão íntima entre a Amazônia do capitalismo sistematicamente agressivo e repressivo e a Amazônia para a proteção da flora e da fauna e da rara beleza cênica. Assim, me vi, em alguma medida, prisioneiro da máquina panóptica que eu me dispunha a criticar.

―Entre o mágico e o cruel‖, expressão extraída de um livro de Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Müller sobre a expansão do capitalismo na Amazônia e que dá título ao presente estudo, é a busca por reconectar na análise essas diferentes Amazônias. A conjunção e presente na oração do título é o lugar que torna possível esse esforço de retomada dos nexos existentes naquilo que é diverso e ao mesmo tempo uno; é um elo efetivo, visível, mas que parece numa condição de um ―deus oculto‖ goldmanniano que coloca o desafio para o pensamento de se pôr em movimento num contínuo oscilar entre o todo e as partes que se referem e se explicam mutuamente.

Originalmente, ao entrar no programa de Pós-Graduação em sociologia da Unicamp, o projeto de tese já apresentava essa disposição para pensar as diversas faces da Amazônia num movimento de totalidade. Nessa busca a proposta inicial tinha a preocupação em abarcar os problemas postos pelos objetivos de estudo como um processo unitário, que se traduz numa busca por precisar metodologicamente o raciocínio adequado aos objetivos propostos. E por isso, foram mobilizados diversos autores que contribuíram decisivamente para o estudo das ideias: Quentin Skinner, Michel Foucault, Paul Ricouer e Antônio Cândido. Todavia, a posteriori, no contato com as leituras de György Lukács sobre estética e literatura, sobre a ontologia do ser social, e com o uso que faz da categoria de totalidade; ao mesmo tempo, com as sugestões metodológicas extraídas da leitura dos escritos de Lucien Goldmann e das reflexões de Theodor W. Adorno sobre estática e dinâmica; e ainda as leituras de hegelianas, em A Ciência da Lógica, e marxianas, em Miséria da Filosofia e O Capital; ficou compreendido que a questão a ser resolvida de um ponto de vista metodológico, tinha menos correspondência com o ―raciocínio adequado

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aos objetivos propostos‖, e mais com a determinação ontológica das categorias postas em movimento para uma interpretação da Amazônia. Isso implicava em lidar com o desafio proposto por Michael Löwy, em A Teoria da Revolução no Jovem Marx, para desenvolver uma análise marxista de obras de autores marxistas. A categoria de totalidade e seus desdobramentos metodológicos configura, então, o fio condutor deste estudo como eu o apresento agora.

Mas, sobre o marxismo brasileiro que se encontra com a Amazônia, qual é a sua natureza? Que elementos ele guarda da contribuição original de seus fundadores, Marx e Engels? Que diálogos estabeleceu com o marxismo dos pensadores que se envolveram diretamente com a Revolução Russa de 1917? Quais os impactos sofridos do contato com o chamado marxismo ocidental? Que linhas de rupturas e continuidades foram aí estabelecidas? Dizer que o marxismo desta pesquisa se circunscreve aquele da Escola Sociológica Paulista não suspende essas questões, apenas coloca outras, derivadas da marcada influência do funcionalismo e do pensamento mannheimiano em Florestan Fernandes; do diálogo de Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni e Francisco de Oliveira no famoso Grupo de Estudos O Capital e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, nos quais travaram debates e estabeleceram polêmicas com as contribuições de Sartre, Althusser, Poulantzas, Gramsci, Celso Furtado, Rui Mauro Marini, os teóricos do capitalismo tardio, entre outros. O marxismo a que me refiro aqui, pois, como a Amazônia, é um híbrido, um múltiplo, que bebe em fontes diversas.

A essa altura, face à opção em torno do marxismo que apresento, outras questões podem ser colocadas: só o marxismo da Escola Sociológica Paulista foi ao encontro da Amazônia? Esse recorte não é também um exercício de não-dizer, de omitir, marxismos outros que percorreram o vale amazônico? O que posso dizer é que esse é um encontro entre múltiplos, mas que dada as exigências típicas de temporalidade voraz da produção acadêmica de nossa época, tal recorte se impôs. Para além da Escola Sociológica Paulista, esse encontro ainda tem muitos tons e cores. Há as lutas da segunda metade do século XIX, em Belém, Macapá e Manaus, de organizações de trabalhadores e de partidos políticos, bem como de jornais a eles ligados, que dão conta dos primeiros contatos com aspectos do pensamento do Mouro de Trier. Há no

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século XX a contribuição interna à Amazônia de nomes como Abguar Bastos e Moacyr Paixão e Silva, Dalcídio Jurandir e de outros, ligados às artes plásticas como Álvaro Páscoa e Hahnemann Bacelar. Há também, nos anos de chumbo da Ditadura Militar, a Guerrilha do Araguaia, de forte inspiração maoísta. E há ainda, os estudos de Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Jacob Gorender, em que vamos encontrar referências diversas, umas mais detidas outras mais breves, sobre a região amazônica. E por fim, há os estudos daqueles professores das ciências sociais na Amazônia que foram formados na Escola Sociológica Paulista, na qual puderam dialogar com Florestan Fernandes e Octávio Ianni e que apresentam fortes marcas desse contato. Como o livro do já referido conto de Borges, a Amazônia e o marxismo são intérminos em páginas e entradas possíveis. Daí o recorte e os riscos de omissões e não-dizer, mas que são imanentes a toda delimitação do objeto.

Sobre os procedimentos técnicos cumpre observar que recorreu-se a elementos diversos: leitura e análise de livros, capítulos de livros, dos autores centrais para a pesquisa; no caso de Florestan Fernandes, em que o esforço arqueológico foi maior para reconstruir sua aproximação da Amazônia e das sociedades que ali viveram e vivem, foram realizados, também, registros e análises das marginálias deste autor em livros que pertenciam a sua biblioteca pessoal e que, em alguma medida, diziam respeito à região; recorreu-se ao uso da técnica de entrevistas com pesquisadores da Amazônia e que trazem marcada influência da Escola Sociológica Paulista; coletou-se e analisou-se uma massa documental relativa aos cursos de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará e Universidade Federal do Amazonas que informavam sobre o processo de formação dos pesquisadores destas universidades e o contexto de institucionalização dos referidos cursos.

Antes de ir a uma breve apresentação dos capítulos que compões este trabalho, é mister apontar o que compreendo aqui quando me refiro à Amazônia. Ela não se reduz à divisão política que agrupa os Estados ditos do Norte (Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Some-se a estes, parte do Maranhão e do Mato Grosso, que compõem, assim, o cálculo político-econômico do Estado brasileiro que resulta na chamada Amazônia Legal.

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No primeiro capítulo, farei uma exposição do objeto, hipóteses e pressupostos teóricos e metodológicos da investigação. Isso não significa, entretanto, se deter na tentação metodológica que se deleita com as batalhas epistemológicas. A intenção é dar conta dos termos do objeto múltiplo. Tendo por referência o método de exposição de Marx, em O Capital, o percorrerei como um ―círculo de círculos‖ em seus momentos diversos, mas componentes do mesmo ser: Amazônia, Escola Sociológica Paulista e marxismo. Isso implica em envolver-se com a questão da viabilidade de um encontro entre marxismo e a periferia fora da visada que o reduz a uma herança do pensamento iluminista teleológico, de concepção de história linear e eurocêntrico, o que remete a uma breve incursão pelo debate com as teorias do pós-colonialismo; de analisar a institucionalização das ciências sociais no Brasil, particularmente a da Escola Sociológica Paulista, e as condições para uma produção acadêmica que, num diálogo com diferentes correntes do pensamento ocidental, inclusive o marxismo, ao investigar o país, sua formação, industrialização, urbanização, sua estrutura de classes, a questão racial e a agrária, que criarão as bases a partir da qual é possível um olhar para as terras-do-sem-fim; de compreender que o encontro com a Amazônia já era uma possibilidade dada no ponto de partida que marca a análise de Florestan Fernandes e seus assistentes: análise que inicia pelo olhar e condições objetivas da periferia, dos subalternos, para daí desvelar a estrutura da sociedade nacional; de discorrer em torno da proposição de que a Amazônia é menos uma condição geográfica e mais um artefato sócio-histórico-cultural, que por isso mesmo, é portador de uma força heurística para a visada ontológica do pensamento marxista. Diante desse objeto, o capítulo expõe as razões para tomar a categoria de totalidade como fio condutor da análise.

No segundo capítulo, far-se-á uma análise dos momentos iniciais do encontro da Escola Sociológica Paulista com a Amazônia, que cobre o período da década de 1940 à década de 1960. Neste momento, a região amazônica ainda aparece de forma imprecisa, como lugar distante, terras do sem fim. É neste período que a produção de Florestan Fernandes tem referências à Amazônia. Diferente de outros autores representativos da Escola Sociológica Paulista que beberam na fonte do marxismo e que mobilizaram conceitos e

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categorias desse veio teórico para produzirem investigações sobre a região, Florestan Fernandes não deixou, seja em artigos, livros, etc. nenhum trabalho que tomasse a região por objeto de análise. Todavia, ao se debruçar sobre as sociedades Tupinambás, o folclore, os diversos autores que contribuíram para uma interpretação etnológica do país, a questão racial, a estrutura de classes, a condição periférica e subdesenvolvida do capitalismo brasileiro, sua burguesia consumida pelo pânico das camadas populares, o autor produziu uma obra que nos permite situar a Amazônia nos movimentos mais gerais de formação e produção do capitalismo brasileiro, ao mesmo tempo em que concorre para adentrarmos nos meandros de sua singularidade. O capítulo analisa também as primeiras aproximações do pensamento de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni com a região em foco. A produção que se desdobrou do Projeto Economia e Sociedade, elaborado no âmbito da Cadeira I de Sociologia, da Universidade de São Paulo, e ainda dos debates no grupo de estudo d‘O Capital, já permite vislumbrar breves olhares sobre a Amazônia, que se insinua nos estudos sobre a questão racial, o empresariado latino-americano e paulista, as instituições estatais.

O terceiro capítulo irá ao momento em que efetivamente o marxismo brasileiro da Escola Sociológica Paulista desenvolverá estudos a partir da Amazônia. É o período do regime militar, da expansão repressiva e extensiva do capitalismo em direção à fronteira amazônica. É o momento no qual os sociólogos que passaram pela Cadeira I de Sociologia chegam à para experimentar uma ―sociologia chegante‖, que se encontra com a gente do lugar (indígenas, caboclos, posseiros, fazendeiros, empresários, latifundiários, entre outros) para reafirmar o princípio metodológico do ponto de vista dos subalternos. Os autores cujos estudos serão discutidos são: José de Souza Martins, Francisco de Oliveira, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni. A mobilização de categorias de análise do pensamento marxista nas pesquisas desenvolvidas no âmbito das ciências sociais farão parte dos elementos teóricos que utilizam em suas investigações sobre a realidade amazônica. Entretanto, como expressão do objeto a objetar o pensamento, a que me referi acima, ou da potência heurística da região amazônica, e também do marxismo como um campo múltiplo e movediço, a apropriação que fazem das categorias

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de análise da tradição intelectual do pensamento dialético para dar conta da região amazônica os leva a resultados distintos, em que o marxismo se realiza, por um lado, de forma adstringida e, de outro lado, por meio de uma crítica radical da estrutura do capital e dos efeitos de sua aventura na região.

O capítulo quinto tem a intenção de apresentar ―o marxismo que vem de dentro‖, produzido por intelectuais da Amazônia que dialogaram com a Escola Sociológica Paulista. Violeta Refkalesky Loureiro, Alex Fiúza de Mello, Renan Freitas Pinto e Marilene Correa da Silva são os representantes desse grupo. Estão entre os responsáveis pelo processo de institucionalização das ciências sociais na Amazônia, particularmente na Universidade Federal do Pará e na Universidade Federal do Amazonas. Seus estudos pós-graduados foram em programas de pós-graduação na Universidade Estadual de Campinas e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde tiveram contato com os debates dos remanescentes da Escola Sociológica Paulista oriundos da Cadeira de Sociologia I, liderada por Florestan Fernandes. Na produção desses autores, a Amazônia aparece profundamente conectada à expansão do capitalismo, desde o período colonial até a era da globalização. E suas múltiplas dimensões (geomorfológicas, faunísticas, florestais, hídricas, étnicas, econômicas, etc.) se articulam num todo dinâmico que agora é relativo à hegemonia do capital num escopo planetário.

Desse encontro do pensamento marxista brasileiro com a Amazônia, desse percurso entre o mágico e o cruel, num lugar que é paraíso e inferno concomitantemente, que é destruição e alteridade, que é o mesmo e o outro, considero estimulante e desafiador para o pensamento sociológico que essa região, ao fim e ao cabo, ainda tenha uma natureza tal qual a do ein untier em que se converteu Gregor Samsa na obra de Kafka, e que a epígrafe a essa sessão faz alusão. Como o inanimal kafkaniano (aquilo que já foi homem e não o é mais, que morfologicamente lembra um animal, mas está distante da animalidade) a Amazônia é um lugar cuja apreensão se dá por meio de conceitos que veem seus sentidos erodidos no contato com ela, que se realizam de forma provisória, transitória, para o desespero das ciências que se movem por entre modelos positivistas matematizados ou em pequenas narrativas que se torcem e retorcem em torno de alguns fragmentos da mesma.

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O marxismo, por sua vez, oscilando entre o todo e as partes, por entre os labirintos de uma realidade cuja solidez se dissolve rapidamente no ar, parece encontrar o seu outro nesse ein untier que é a Amazônia. A partir dela o pensamento marxista se depara com especificidades da lógica de acumulação capitalista que, como o inanimal no qual Gregor Samsa se metamorfoseou, causa um mal-estar insuportável nos arautos desse modo de acumulação e constitui um momento de desafio heurístico, como referido anteriormente ao enunciar a hipótese deste trabalho, para aqueles cujas críticas são elaboradas tendo o marxismo como referência.

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CAPÍTULO I: AMAZÔNIA E MARXISMO BRASILEIRO: OBJETO, PRESSUPOSTOS E HIPÓTESES

Ao ser humano não cabe viver a sua vida individual. Consciente ou inconscientemente, ele toma também parte na vida da sua época e da sua contemporaneidade.

(Thomas Mann, A Montanha Mágica)

1.1. O salto a partir de “A Miséria”: aproximando-se do objeto

É uma explosão de cores onde tons amarelos predominam a reproduzir um encontro amazônico em que corpos femininos se amontoam de modo anárquico junto a uma figura masculina (indígena?) sentada ao chão a coçar a cabeça com os pés descalços em posição desengonçada. O horizonte, retratado na parte superior à direita é abstrato, pouco nítido, irregular, não permitindo dizer se a floresta está logo ali. No mesmo espaço, os punhos de uma rede denunciam uma pessoa deitada, não visível, só inferida. No centro, à esquerda, uma criança (uma cunhatã) brinca distraidamente, as costas voltadas para o observador. São quatro mulheres cujas expressões faciais parecem apresentar uma multiplicidade de sentimentos: alegria, dor, indiferença, desespero, incerteza. Os olhares se lançam em direções diversas como se estivessem a catar respostas para a condição de vida em que se encontram, ou talvez queiram se desviar do olhar do observador, exceto a mulher na parte superior no centro do quadro, cujo olhar volta-se para este com um sorriso irônico, a desafiá-lo a compreender a composição, ou a rir do seu estranhamento. Quem sabe a dizer ―decifra-me ou te devoro‖. Em destaque, na parte inferior, um galo em traços bem definidos caminha preguiçosamente, compondo assim, uma cena comum da cidade de Manaus da década de 1960. Trata-se do quadro ―A Miséria‖, de Hahnemann Bacelar (Figura 1). Estudiosos da obra desse artista assinalam que a mesma é representativa de tendências expressionistas e neorrealistas em arte, com flertes, em alguns

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casos, com correntes pós-impressionistas e fauvistas2. Seria ainda, representativa de uma ―estética assombrada‖, própria da Amazônia, produzida à sombra da ineficiência das políticas culturais ou como efeito de um esforço de ocultar, tornar invisível, insustentável, esquecida, toda arte que afronte a visão de mundo das elites locais. Estética assombrada, também, por emergir como revide daqueles que estiveram submetidos aos efeitos da engrenagem do esquecimento, e que agora, como espectros, vêm à tona para assombrar3.

Figura 1. A Miséria. 1968. Óleo sobre tela, 93 x 133 cm.

Fonte: Coleção Pinacoteca do Estado do Amazonas

2 Tais indicações são encontradas em Relações culturais e artísticas entre Porto e Manaus através da obra de Álvaro Páscoa em meados do século XX, de Luciane Viana Barros Páscoa (2006), Cores de um meteoro, de Otoni Mesquita (2000), e Um estudo iconográfico da obra de Hahnemann Bacelar (1962 a 1969): contribuições para um inventário, de Décio Viana da Silva (2014).

3 Cf. Estética assombrada: um olhar sobre a produção artística contemporânea na Amazônia brasileira, de Gil Vieira Costa (2014).

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Essa ideia de um encontro entre uma ―estética assombrada‖ com um ambiente de beletrismo, utilitarista, animoso às artes que fuja da boa técnica e métrica acadêmica, teve seus traços assinalados ainda na década de 1970, poucos anos após a morte de Hanemann Bacellar, por Márcio Souza (1977). Conforme esse autor, a obra de Hahnemann Bacelar é marcada por ―linhas curvas e obesas‖ em que a predominância do amarelo indica4

o desregramento, um pântano em que o erotismo dos corpos das mulheres indígenas não precisa ser dissimulado.

Naquele amarelo constante e quase sempre erótico, finalmente repugnante, Hahnemann reencontrou a agonia da Amazônia. Não somente a alienação dos caboclos, dos marginais da cidade, mas a determinista condenação ao genocídio destinada aos índios. Ao lado do discurso branco, documentarista, esse rio subterrâneo que é a linguagem originária dos índios foi retomado. Hahnemann representa com sua tragédia o homem da Amazônia. (SOUZA, 1977, p. 24)

A tragédia referida por Márcio Souza diz respeito ao conteúdo expresso na obra de Hahnemann Bacelar e também à corporificação da mesma no ato em que o artista pôs fim à própria vida. Ante uma sociedade marcada, segundo Márcio Souza, por uma tradição de silêncio, opressiva, expressa numa historiografia superficial, retrógrada e oficializante, o artista fez no próprio corpo, a golpe de tesouras, sua última obra. Nela, a cidade de Manaus de 1971, que estava em polvorosa pelo progresso com o advento da Zona Franca, vê exposta seu espírito provinciano.

4 Opto aqui pela apreensão sociológica proposta por Márcio Souza para o quadro de Hahnemann Bacelar que, assim compreendo, se articula com a angulação metodológica que atravessa a exposição deste trabalho. Todavia, convém observar que num outro campo de referência, a saber, o do existencialismo sartreano, uma obra de arte não tem que indicar um contexto e suas contradições e dilemas, pois efetivamente a obra de arte não indica, ela é. Tomando uma pintura de Tintoretto como elemento para a reflexão, Sartre (2015 [1949]) assinala que a cor amarela que aparece num rasgo no céu sobre o Gólgota não é uma representação de angústia, elá é a angústia. O amarelo, em Tintoretto, não é um signo da angústia, é uma angústia que é, uma coisa. O amarelo em Hahnemann Bacelar, por estes termos, não seria o resultado de traçar de signos sobre a tela, que remeteriam à miséria; é a miséria efetiva, a miséria como coisa. Do ponto de vista metodológico deste estudo, o amarelo é coisa e é signo, e coloca a exigência de ir ao contexto, dilemas, contradições, que indica.

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O que terá sido este último espetáculo de Hahnemann? Uma pintura de vida e morte que a burrice provinciana abomina. O ato conduz um pensamento explosivo, corrompe e alinha a mediocridade que os golpes de tesoura, mais fortes que as queixas, desvelam. O crime como última instância da alienação planejada com um sentido escandaloso. Ele propôs no final a faixa de identidade que estatela esse mundo de burrice no chão, alinhando frente ao nosso olhar a disritmia cultural e histórica. Entre o voo rápido da tesoura no espaço e o peito de uma província que vegeta, a identidade insuspeita. E neste espaço, caminho aberto, passagem secreta, é possível vislumbrar o clarão de marginalidade que se contrapõe a essa abominável vocação de ordenar as intenções, confundir a linguagem, o pensamento, a própria perplexidade (SOUZA, 1977, p. 21.).

Mas o sentido da obra de Hahnemann Bacelar se encontra fundamentalmente no exercício de negação da Manaus provinciana? Assinalar que ―A Miséria‖ e outras obras do artista, ao beberem na fonte de influências do expressionismo e do neorrealismo implica em que se tornam autoexplicativas? Tais influências estéticas e a cidade de Manaus dos anos de 1960/70 encerram todo o contexto que torna compreensível a obra do autor? Ou essa compreensão deve ser buscada em um conjunto social e histórico mais amplo?

Tais questões permitem uma remissão aos argumentos de Lucien Goldmann (1959) em torno da contribuição para a compreensão da obra de um autor. Segundo Goldmann, tal obra, tomada como fato empírico, ficará presa a uma compreensão abstrata e superficial caso não seja apreendida em sua articulação integrada numa totalidade, que ele vê expressa no grupo social. Sem essa articulação, a leitura imanente de uma obra e a apreensão das influências que lhes são subjacentes não serão suficientes para que se compreenda seu significado e sua essência concreta.

Uma ideia, uma obra recebe seu verdadeiro sentido quando integrada ao conjunto de uma vida e de um comportamento. Além disso, acontece frequentemente que o comportamento para a compreensão da obra não é o do autor, mas o de um grupo social (ao qual pode não pertencer) e, particularmente, quando se trata obras

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importantes, à de uma classe social (GOLDMANN, 1959, p. 16-17)5.

Por essa angulação posta por Goldmann, pode-se então avançar pela presença, em A Miséria, de marcas de um movimento estético, o expressionismo, que emergiu na Alemanha do início do século XX numa oposição a ideais de beleza oriundos do exercício acadêmico. Conforme Silva (2014), o expressionismo, com traços do gótico e do romantismo, cunha uma linguagem violenta para rejeitar o ambiente de crise econômica, política e cultural. O central para esse movimento não era a expressão do harmônico e do belo, mas a busca por trazer à tona a decadência social do ambiente moderno capitalista. As imagens produzidas procuram, na deformação das formas, comunicar a dúvida, a crise interior, o pessimismo do artista, o que resulta num jogo de cores que foge às regras convencionais de composição, de equilíbrio e de harmonia.

A Miséria bebe também na fonte do neorrealismo que se manifestou em Portugal e tem, segundo análise de Luciane Páscoa (2006), influências explícitas de uma filosofia de raízes marxistas. Esse movimento irá se contrapor ao naturalismo, marcadamente positivista e restrito à observação e exposição da degradação do ambiente capitalista sem a pretensão de nele intervir. O neorrealismo, por sua vez, forjado na década de 1940 no contexto político do regime fascista de Salazar e em oposição ao mesmo, nas artes plásticas e literária defenderá uma concepção de si e de sua função social6 que implica no envolvimento com o tema da luta de classes e do socialismo. Citando Goldmann, Urbano Tavares Rodrigues (2000), assinala que o neorrealismo português tem na concepção marxista uma espécie de ―deus oculto‖, a partir da qual diversos escritores ‖voltaram-se decididamente para a sondagem lúcida, mas também apaixonada, do mundo dos operários e camponeses, alimentando o ambicioso projecto de levarem a efeito, à luz da

5 ―Une ídée, une oeuvre ne reçoit sa véritable signification que lorsqu‘elle est intégrée à l‘ensemble d‘une vie et d‘um comportement. De plus, il arrive solvente que le comportement qui permet de omprendre l‘ouevre n‘est pas celui de l‘auteur, mais celui d‘um groupe social (auquel il peut ne pas appartenir) et notamment, lorsqu‘il s‘agit d‘ouvrages importants, celui d‘une classe sociale‖. (Tradução do autor).

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análise marxista, uma espécie de levantamento do homem e da terra portuguesa‖. Além do já citado naturalismo, conforme Páscoa (2006), o neorrealismo também rejeita o realismo da segunda metade do século XIX, de inspiração no ideário do socialismo utópico de Proudhon, e inclinado à uma disposição sensível às injustiças sociais ao mesmo tempo que rejeitava qualquer proposta de intervenção revolucionária. Ao conteúdo da geração utópica, o neorrealismo contrapõe com o socialismo marxista-leninista, no qual encontra o fundamento filosófico do materialismo dialético que atravessará suas expressões literárias e nas artes plásticas. Assim:

O Neo-Realismo via o fenômeno literário e artístico como instrumento de análise e correção de existência do homem social e pretendeu que a missão do escritor ou do artista fosse cumprida através da sintonizada atenção ao exterior circundante. De acordo com esta perspectiva educativa, da procura do verdadeiro e da representação dialética da superação do conflito, os temas prevalecentes nas obras eram a condição econômica do proletariado, a sua consciência de classe ou, inversamente, o grau de manifesta alienação, a opressão dos estratos sociais superiores, sendo que a ação decorria sobretudo em espaços rurais (PÁSCOA, 2006).

O quadro A Miséria, nas influências que expressa, pode-se assinalar então, nos remete ao nome de um outro artista além do seu autor, a saber, Álvaro Páscoa. Escultor, entalhador e gravurista, Álvaro Páscoa nasceu em Portugal, em 1920, e imigrou para a cidade de Manaus, Brasil, em 1958, onde faleceu em 1997. No acervo particular do artista — segundo Luciane Páscoa em sua Tese doutoral (2006) —, há uma diversidade de obras literárias e de iconografias que estão diretamente ligadas ao neorrealismo português, corrente estética a que esteve ligado enquanto residiu em Portugal. Na cidade de Manaus, participou do Clube da Madrugada, movimento cultural surgido nos anos de 1950 e que propunha uma resistência estética aos preceitos acadêmicos e a defesa da liberdade política. Sua produção artística, de acordo com Páscoa (2009), passou a ter no Amazonas um maior acento no que se refere ao caráter social ―a partir da observação dos costumes da população, do

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trabalho do caboclo e de suas feições características‖ (p. 2). Foi também Álvaro Páscoa professor de história da arte, desenho e xilogravura na Pinacoteca do Estado do Amazonas. E no início dos anos de 1960 teve como aluno o autor de A Miséria, Hahnemann Bacelar, cuja obra passou a carregar as marcas do expressionismo e do neorrealismo formadores do mestre.

Como o concreto apreendido por Karl Marx, em Grundrisse (2011), A

Miséria é uma espécie de ―síntese de múltiplas determinações, portanto,

unidade da diversidade‖ (p. 54). É uma encruzilhada em que se cruzam outras expressões da degradação da vida dos homens no âmbito do capitalismo. Como assinalado anteriormente, na breve referência ao neorrealismo português e sua oposição ao naturalismo e ao realismo do século XIX, o contexto de significação dessa obra remete-nos aos embates entre uma visão de mundo ancorada numa filosofia marxista-leninista e as utopias socialistas de Proudhon. É possível, pois, inferir, ainda que Hahnemann Bacelar não tivesse se apercebido de todo esse movimento da história, que A Miséria é uma recusa a uma saída segundo o conteúdo proudhoniano em Sistema das contradições

econômicas ou filosofia da miséria, no qual a política que se articula é

―utópico-reformista porque a análise histórico-social que a funda é frágil e porque a teoria econômica que a sustenta é falsa‖ (José Paulo Neto, 2009 [1980]). A Miséria está mais para a crítica endereçada à utopia de Proudhon formulada por Karl Marx em Miséria da Filosofia, na qual todo o conteúdo alegórico e místico, a concepção da vida social como um personagem cômico, é criticada de modo corrosivo. Nessa obra de Marx, o otimismo dos economistas burgueses com o desenvolvimento econômico inglês e a capacidade do capitalismo de elevar os níveis de vida dos trabalhadores é desvelado em seu cinismo, pois demonstra que estes celebram a prosperidade de um milhão e meio de trabalhadores ingleses e silenciam sobre o fato de que isso só é possível às custas da vida de dez milhões de trabalhadores indianos. A Miséria da Filosofia, de Karl Marx, não permite que concepções filosóficas e econômicas mistificadoras ofusquem as condições objetivas a que estão submetidas mulheres, crianças e homens no avanço do capital sobre o mundo do trabalho nas Índias Orientais. O quadro A Miséria, de Hahnemann Bacelar, do mesmo modo, não permite que o beletrismo, a técnica e a métrica

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acadêmica, também mistifiquem a vida dos indígenas, caboclos e trabalhadores da Amazônia.

Sobre o contexto imediato da produção de A Miséria, vale lembrar que se deu no singular ano de 1968. Naquele ano o mundo estava em convulsão. Com a Guerra Fria como pano de fundo, viu-se a emergência da cultura hippie, dos protestos estudantis nos EUA contra a guerra no Vietnã, os assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy. Na França, houve a explosão dos movimentos que ficaram conhecidos como maio de 68. No Brasil, as forças de repressão policial da Ditadura, num confronto com estudantes no Rio de Janeiro, assassinaram Edson Luís e, quase ao final do ano, foi baixado o Ato Institucional n° 5, que aprofundou os instrumentos de coerção, repressão e suspensão dos direitos civis pelo regime militar. Em Manaus, conforme Marcelo Seráfico (2011), foi implantada a pedra fundamental de construção do Distrito Industrial, ocasião em que as elites locais, os que ―tinham a posse da terra‖, os ―empresários extrativistas‖ empunharam uma faixa que trazia a inscrição ―Distrito Industrial: marco de redenção da Amazônia Ocidental‖. A região, que vivera entre 1870 e 1912 um boom de comercialização em função da demanda dos países centrais pela borracha, o que alçou as cidades de Belém e de Manaus à condição de centros comerciais importantes no país, que viu essas cidades passarem por um movimento frenético de transformação de suas paisagens urbanas –ao ponto de Manaus ser chamada de ―Paris dos trópicos‖- com a transferência do centro de comercialização desse produto para a Malásia entrou num declínio profundo. Todo o frenesi do ―ciclo gomífero‖ desaparecera. E aquele ano de 1968, então, marcava as elites locais com as esperanças de redenção (SERÁFICO, 2011, p. 24).

A Miséria vem à cena, pois, num contexto universal e particular profundamente caótico, em que promessas da modernidade são erodidas e outras cultivadas como via para redimir. Mas, carregando imanente, como um ―deus oculto‖, uma concepção filosófica que vai beber nas fontes do pensamento marxista, essa obra tem uma força crítica avassaladora. No lugar das promessas de redenção cultivadas pelas elites locais com o advento da Zona Franca de Manaus e o Distrito Industrial, os corpos confusamente amontoados de gente indígena, cabocla, faz lembrar que as comemorações

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das elites configuram para ela a tragédia que destrói culturas, etnias, tradições, relações econômicas mais amigáveis entre o homem e a natureza, e deixa como legado uma existência em cidades em que está condenada a uma vida estranhada. Numa região onde o pensamento social conservador, positivista, beletrista, dá fundamento para uma historiografia oficializante e para as formulações políticas, econômicas, culturais, sem conviver, como em outras regiões do país daquele período, com um ambiente acadêmico em que as ciências sociais façam o contraponto por meio da reflexão desenvolvida por grupos de investigação científica que dialogam com correntes teóricas e pressupostos metodológicos pautados pela crítica e pela autonomia do pensar, A Miséria denuncia os limites dos fundamentos intelectuais das elites da região e os desdobramentos destrutivos daí derivados. Parece corresponder à compreensão lukacsiana da ―arte como autoconsciência do desenvolvimento da humanidade‖ na qual

as formas fenomênicas sensíveis do mundo externo, por isso são sempre –sem prejuízo para a sensibilidade intensificada, para a sua imediata vida própria- signos da vida dos homens, de suas relações recíprocas, dos objetos que mediatizam estas relações, da natureza em seu intercâmbio material com a sociedade humana (LUKÁCS, 1968, p. 282).

Para precisar melhor o sentido da crítica em A Miséria, ela não é expressão de uma sensibilidade pura e simplesmente assentada num indivíduo genial, típico do eu cartesiano, que rejeita construções de outros indivíduos. Mas, seguindo os argumentos de Michael Löwy (1995) em torno da contribuição de Lucien Goldmann, expressa um ―sujeito transindividual‖ –que dialeticamente se realiza como uma ―relação do homem com os outros homens, o fato de que o Eu individual só existe por detrás da comunidade‖ (p. 185) - que vai se opor ao desenvolvimento sem referência à normas éticas que permitam o controle da técnica em favor da comunidade. Na contraposição a sujeitos transindividuais que empunham a faixa ―Distrito Industrial: marco de redenção da Amazônia Ocidental‖ e que historicamente estruturam a sociedade local erodindo sua sóciodiversidade, cultura, economia não-capitalista e suas bases ecológicas, A

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Miséria é a crítica que se opõe às catástrofes da aventura capitalista que pesam sobre as comunidades amazônicas.

E se optei por iniciar esse trabalho a partir dessa expressão artística de Hahnemann Bacelar, é porque ela me permite, diante do exposto, indicar que as ideias em torno da Amazônia e das sociedades que a habitam têm uma história que vai além daquilo que a historiografia oficial nos legou e que, consciente ou não, esteve articulada com a visão de mundo das camadas sociais dominantes. Me permite, seguindo a trilha há muito aberta por Edgar de Decca, em 1930: o silêncio dos vencidos (1984), avançar uma análise que considere o acionamento de dispositivos ideológicos que conformam o pensamento hegemônico à produção de um conhecimento que, se não anula uma angulação a partir das camadas subalternas, a compreende como impotente para a tarefa de sujeito das transformações históricas. Ao considerar a disposição desse pensamento hegemônico, A Miséria me permite assinalar que outros exercícios do pensar, seja na literatura, nas artes plásticas e no pensamento social, emergiram tomando a Amazônia como inspiração, objeto de reflexão, para se opor e buscar desmontar, desnaturalizar, desmistificar, as imagens sobre a região e suas sociedades produzidas. Isso me permite, enfim, assinalar o encontro dialético entre a Amazônia e uma visão de mundo assentada numa concepção marxista.

Convém observar, entretanto, que o encontro da Amazônia com o marxismo é anterior à obra de Hanneman Bacelar. Na própria região há notícias desse encontro na cidade de Belém do século XIX, no ano de 1871, quando o Jornal do Pará, publica um artigo intitulado ―O Comunismo‖, traduzido de um jornal de Leipzig e no qual se explora, através de um conteúdo deformador e eivado de pré-noções, as origens da concepção comunista, as revoluções de 1848 e as linhas gerais do pensamento de Karl Marx. Os ecos da II Internacional, fundada em 1889, também chegaram à Belém e foram expostos nos jornais Tribuna do Povo (1889), Jornal do Povo (1890) e na Tribuna Operária (1891) que era órgão de comunicação do Partido Operário do Pará, filiado ao Partido Operário Socialista Brasileiro. Em 1892, os Estados do Amazonas e Pará estiveram representados com delegados ao Congresso do Partido Operário Socialista Brasileiro, realizado em agosto no Rio de Janeiro. O

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alemão Hans-Karl Wiegandt, que chegou ao Pará em 1870 e militou no Partido Operário do Pará e no Partido de Artistas e Operários do Pará, foi o responsável por introduzir nos jornais locais, inclusive nos jornais operários, a caricatura e a técnica de litogravura. Esse artista compôs para o jornal O Trabalho, publicado a partir de 1901 até 1904, um logotipo que estampava uma efígie de Karl Marx circundada pela convocatória ―proletários de todos os países uni-vos‖7

.

No escopo do pensamento social e na produção literária produzidos a partir da Amazônia e segundo uma angulação marcadamente marxista, há que se assinalar a presença de dois pensadores ligados ao PCB: Abguar Bastos e Moacyr Paixão e Silva. Bastos foi Deputado Federal pelo Estado do Pará, membro da junta governativa em seu Estado quando do movimento de 1935, preso em 1937, teve cassado o seu mandato pelo governo de Vargas. Foi um dos fundadores da Revista Brasiliense e o tradutor de diversas obras que contribuíram para a difusão do marxismo no Brasil, dentre as quais estão os Extratos de O Capital, de Paul Lafargue, Materialismo e Empiro-Criticismo, de Lênin, Lenine: sua vida e sua obra, de Mirsky, Anti-Dühring: filosofia, economia política, socialismo, de Engels. Publicou ainda duas obras de história de um ponto de vista dialético: escreveu Prestes e a Revolução Social (1946), História da política revolucionária no Brasil (1969); participou também da obra coletiva Combates da História: a trajetória de Heitor Ferreira Lima. No campo literário, seus romances Terra de Icamiaba (1934), publicado inicialmente em 1931 com o título Amazônia que ninguém sabe, Certos caminhos do mundo (1935) e Safra (1937), expressam uma compreensão do destino dos povos da região intimamente ligado a aventura capitalista (FARIAS, 2010). Moacyr Paixão e Silva, candidato a deputado pelo PCB nos anos 40, publicou Sobre uma

Geografia Social da Amazônia – ensaios para uma obra maior, em 1943,

Formação Econômica do Amazonas - Tese ao III Congresso sul-riograndense de História e Geografia, de 1940, O desequilíbrio no desenvolvimento econômico do país, 1958 (COSTA, 1997).

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Entre os autores inaugurais que pensaram a formação da nação a partir do pensamento dialético, e que ao fazê-lo, se debruçaram também sobre a Amazônia, ainda que essa não fosse o foco central de suas análises, temos a obra de Caio Prado Junior. Em a Evolução Política do Brasil (2012 [1933]), a região, que existira em todo o período colonial como ―um governo à parte‖, isolada do restante do país e em contato direto com a Metrópole, aparece nos anos iniciais da independência política do país como o palco de uma revolta de grandes proporções: a Revolta dos Cabanos. Em Formação do Brasil Contemporâneo (2011 [1942]) e História Econômica do Brasil (1945) ao desvelar o ―sentido da colonização‖, de constituição de uma nação que é organizada política e economicamente em razão das demandas do comércio exterior, primeiro por especiarias e depois por metais preciosos, Amazônia é lembrada como capítulo da extração de produtos da floresta a serem comercializados, a criação de gado, a pesca, e na estratégia de consolidação das fronteiras políticas da conquista portuguesa por meio da ação religiosa e das fortificações militares, que resultam no povoamento das margens de seus principais rios em núcleos populacionais que darão origem a cidades como Tabatinga, Tefé, Manaus e Belém.

Em Nelson Werneck Sodré, cujo pensamento está marcado pelas teses do Partido Comunista Brasileiro de desenvolvimento a partir do modelo democrático-burguês e a compreensão da coexistência de etapas do desenvolvimento histórico no Brasil, a Amazônia pode ser apreendida como a expressão ―de contemporaneidade do não-coetâneo, isto é, da existência, no mesmo tempo, de realidades sociais diferentes, mas no mesmo país ou colônia‖ (SODRÉ, 2010, p. 28). Pensada no quadro da exploração econômica inicial, a região amazônica é fonte de atividade extrativa cujo impacto tem um peso aquém daquele da produção de açúcar em outras regiões (Idem, p. 33).

Há ainda uma leitura sobre a Amazônia que emerge da crise de hegemonia do PCB nas fileiras da esquerda do país na década de 1960 e do Golpe Militar de 1964. Uma Amazônia que é expressa intelectualmente no trabalho de Jacob Gorender (1978) e na militância guerrilheira no Araguaia, na qual uma tática maoísta e os ecos da Revolução Cubana ainda se fizeram ouvir.

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