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CAPITULO III DAS MARCAS CORPORAIS ESTIGMATIZANTES À CONSCIÊNCIA DE S

MARY DFH

O desenho desta pessoa que está nesse papel sou Eu, quando me descobri doente. Momento deficil e bem constrangedor em minha vida. Quando descobri, fiquei assim, desta forma. Olhar triste, cabelos muito ralos, sorrisso triste, meus seios diminuiram, os braços ficaram muito finos, as pernas também, e as costas largas, mas a minha preocupação maior era com o rosto, eu tinha muito medo de ficar como as pessoas que eu via no hospital. Tinha muito medo de alguém perceber pelo rosto que eu estva doente.As pessoas me olhavam muito de diziam”voce está muito magra, parece que está muito doente”e isso me incomodava muito. Fiquei muito triste com isso tudo, me isolei dentro de uma rede.(2010)

DFH2

Tudo começou a melhorar coms as práticas corporais, hoje estou bem, no inicio passei por momentos preconceituosos. Hoje me sinto muito bem, cabelos cheios, braços trabalhados, sorriso feliz, seios volumosos, cintura trabalhada, bumbum melhorando, pernas torneada, joelhos bem melhor, paturrilha bem feita, costas afinadas. Tirando algumas coisas qua vida nos reserva, e que todos enfrentam, está tudo bem. Me acho LINDA, sou eu de novo.(2013)

Em sua fala sobre o primeiro desenho (DFH 1), fica muito claro que a sua maior preocupação era que as modificações atingissem seu rosto, embora, como ela mesma afirma, não tenha sido efetivada. Deixando explicito o medo de que as pessoas a descobrissem/percebessem doente de AIDS pelas modificações no rosto que traria a tona a temível “Cara da AIDS”, que por muito tempo, povoou o imaginário social desta Síndrome. Sendo, ainda hoje, um estigma muito forte, por muito tempo isolou, distinguiu e, ao mesmo tempo, reuniu e identificou as PVHAs (SILVA, 2011).

Sobre essa questão, Fernandes et al (2007), afirmam que as mudanças na imagem corporal podem causar impacto negativo na qualidade de vida dos indivíduos que vivem com AIDS, sendo ainda um importante fator estigmatizante, principalmente quando se trata da lipoatrofia, que trás a tona a temível “cara da AIDS”. Essa realidade posta, na maioria dos casos, pode causar processos de autoexclusão da sociedade, sendo observável na maioria das PVHAs.

No caso dessa participante, essa realidade fica visível quando afirma que “ficava o tempo todo dentro de uma rede”. Na verdade, esta autoexclusão, é apenas um dos fatores

advindos dessa desestruturação da imagem corporal. O afastamento do convívio social ocorre para evitar situações semelhantes às já vivenciadas na ocasião do diagnóstico, ou seja, o preconceito e a discriminação.

Nessa situação, o caminho “mais fácil”, se é que podemos afirmar alguma facilidade em uma situação tão extrema, foi a rejeição de si enquanto corpo marcado. Percebe-se, no caso dessa participante, uma crescente rejeição por essa nova imagem que surge de forma gradativa, avassaladora. Rejeitada pela consciência, essa nova imagem corporal fica enclausurada, numa tentativa de fugir do incomodo das tensões, das comparações. Surge então o medo, o temor de, através dessa imagem desconhecida e irracional, ser denunciada como portadora de uma anormalidade. Gostaríamos de ressaltar que essa é uma situação encontrada em todas as falas/relatos de nossas participantes no pré-teste, mesmo que implicitamente.

Essa situação coloca a nossa participante diante de duas emoções latentes o medo e a tristeza. O medo, ou amedrontamento, de ser vista pelos outros como diferente ou doente pelas marcas grafadas em seu corpo. Embora o medo não seja uma emoção ameaçadora, é paralisante (LOWEN, 1997), e se traduz na ausência de vitalidade geral, na apatia do olhar, na própria tristeza, que, no caso de nossa participante, levaram-na a um enclausuramento dentro de casa, mas também dentro dela mesma, como se estivesse congelada, sem capacidade de se mover, de reagir, que a levou, segundo Lowen (1997, p.169), “a perda da concepção consciente de seu próprio self real. Essa é em si mesma, uma vivencia muito assustadora. A pessoa fica desorientada, despersonalizada”.

Os processos de despersonalização, segundo Schilder (1994), são causados por alterações do modelo postural do corpo, sendo um distúrbio da imagem corporal que ainda não tem sua psicogênese definida. As pessoas acometidas desse processo não apenas sentem modificações em sua percepção do mundo externo, também sofrem mudanças nítidas em relação ao seu próprio corpo.

Em tempo de AIDS é um fenômeno que aparece as PVHAs, pela dissociação de si enquanto corpo, que as acomete sem mediações ou fantasias, mas como algo real, inexpugnável, que as desloca para um espaço/tempo de subjetivação indiferente e desinteressada diante de si e do outro e, segundo Schilder (1994, p.123):

Neste caso, o indivíduo sente-se inteiramente diferente do que era antes. Essa modificação se apresenta tanto no ego quanto no mundo externo, e o indivíduo não se reconhece como uma personalidade. Suas ações lhe parecem automáticas, e as observa como se fosse um espectador

Essas modificações acontecem em relação ao mundo externo, mas principalmente em relação ao próprio corpo. Sobre esse processo de despersonalização Melo (1998), afirma que diferentes corrente psicanalíticas admitem existir uma entidade psíquica que antecede a estruturação do Eu corporal, e chama atenção também para o fato de que esse déficit na percepção do mundo e as alterações relativas ao seu corpo são reflexos da subjetividade de sua imagem corporal, pois apesar de conter elementos de ordem psíquica, “a despersonalização pode ocorrer por diferentes vias, que vão desde a ingestão de drogas a experiências sociais desagradáveis” (MELO, 1998, p.15).

O que entra em jogo, nesse caso, é a relação indivíduo/mundo, que foi submetida a uma determinada situação/problema e “expressou uma reação condizente com seu momento existencial” e, nesse caso, é a imagem corporal que é desfigurada (MELO, 1998). Segundo o autor:

E assim a aceitação da sua imagem corporal passa por desequilíbrios, e as relações sócias passam, inevitavelmente, por impactos negativos, cuja consequência imediata revela-se na diminuição da sua auto-estima. A sociedade, então, conduz cada um de nós a alterar nossa imagem corporal em prol de um modelo “social” de corpo, e a nos submeter aos valores morais por ela defendidos, gerando frequente despersonalização na imagem que cada um tem e si. (MELO, 1998, p.39-40)

Nas PVHAs, este processo é um sintoma passageiro, porque, ainda de acordo com Schilder (1994), não tem característica de neurose ou psicose, mas numa fase em que o individuo não ousa investir nem em si e nem no mundo externo. É mais uma fuga importante do mundo e do corpo, causado pela dissociação da imagem corporal que surge na esteira dos sintomas advindos da doença e da terapia medicamentosa.

Essa situação fica bastante clara no caso de nossa participante, quando afirma em seu relato sobre o segundo desenho (DFH 2), “que tudo começou a melhorar com as práticas corporais”. E esse “tudo” é muito emblemático, porque não diz respeito às mudanças corporais, mas também as mudanças externas a ela e a partir dela mesma.

Em seu relato percebe-se que para a participante, nessa realidade de marcas e estigmas, o que interessa é o ressurgir do corpo com o qual vivenciou, experimentou e fantasiou sua vida, ou seja, deseja o seu corpo real. Onde experienciou sensações, desejos, gozos, atravessado de um sentimento de ser ela mesmo (NASIO, 2009). Sua fala evidencia uma excitação prazerosa e, embora observemos uma certa melancolia em relação as coisas

cotidianas, mesmo nesses momentos, existe um movimento em busca da transcendência que “não é alheia ao ego, pois é natural e confiante na vida”(LOWEN, 1979, p.169).

A representação que nossa participante faz desse corpo ressurgindo, não é idealizada é sim, de acordo com Merleau-Ponty (1994), um conhecimento seguro a partir da materialidade sensível e, nessa caminhar, a noção de corporeidade se torna mais abrangente, pois que emerge da experiencialidade do vivido.Nesse sentido, em consonância com Nóbrega (2010, p.52-53), “o passado especifico do corpo torna-se presente e é reaprendido pela via individual; assim, o comportamento pode ser considerado como um movimento único, com criação e destruição de formas estáveis, não sendo reduzido a causalidades.

CRIS