• Nenhum resultado encontrado

Conforme proposto anteriormente, toda sociedade é pautada em valores sociais construídos coletivamente no decorrer de um período histórico. Tais valores contribuem na sedimentação de estruturas sociais fundantes da coletividade e se transformam paulatinamente em entendimentos intrínsecos a qualquer membro da sociedade em questão, transmitidos estruturalmente por gerações. Um dos princípios mais basilares das coletividades humanas, dando margem, inclusive, às demais instituições capitais da sociedade, é a identificação de gênero. Convencionou-se culturalmente que os seres humanos, machos e fêmeas, devem expressar suas identidades individuais de acordo com as noções determinísticas de masculinidade e feminilidade, respectivamente. Tais noções são pouco flexíveis em suas atribuições, pois o núcleo do valor da identidade de gênero (conforme se entende correntemente) pressupõe uma dualidade exclusivista entre identidade masculina e identidade feminina, sem possibilitar a interação ou sobreposição de características de ambos os gêneros.

28 ―[...] as Butler suggests, we instead think of gender in terms of parody and imitation - as "a kind of persistent

impersonation that passes as the real" - then this changes the way we think about sex because the real to which gender supposedly refers - sex - is itself exposed as an impersonation. The notion of gender parody... does not assume that there is an original which such parodic identities imitate.‖

29 ―A state‘s sovereign subjectivity is […] ‗[i]llusive, Always on the move‘. It is ‗at best like something, but it

No entanto, em contraposição ao que o cidadão ordinário percebe de sua realidade social, a literatura pós-estruturalista trabalha no sentido de desmistificar a dualidade binária masculino X feminino. Essa desconstrução se dá por meio da teorização proposta de que gênero é um contínuo processo em andamento, não sendo possível, portanto, admitir critérios determinísticos para classificar o que é masculino e o que é feminino (MONTE, 2010).

Anteriormente foi assentido que o masculino é construído hierarquicamente acima do que é ser feminino. A prevalência das características masculinas sobre as femininas é esmiuçada n‘―O estigma do passivo sexual‖, de Michel Misse (1979). Na obra, o autor se utiliza da conceituação do que é estigma – ―[...] uma relação formal pela qual são atribuídos comportamentos e expectativas ‗desacreditados‘ ao indivíduo que tenha mostrado ser dono de um ‗defeito, falha ou desvantagem‘‖ (MISSE, 1979, p. 23) -, conceito proposto em Goffman (1970 apud MISSE, 1979), para caracterizar o gênero feminino como estigmatizado, dotado de atribuições desacreditadas. De acordo com o quadro proposto pelo autor, o ―mito machista‖ é construído com base na seguinte dicotomia:

Quadro 1 - Características antinômicas entre o feminino e o masculino

Feminilidade Virilidade

Doce, suave Duro, rude

Sentimental Frio

Afetiva, intuitiva Intelectual, racional

Superficial Profundo

Improvisadora, impulsiva Planificador

Frágil Forte

Liberal Autoritário

Dependente Independente

Protegida (Covarde) Protetor (Valente)

Tímida Agressivo

Recatada, prudente Audaz

Volúvel, instável Constante, estável

Sedutora (conquistada) Conquistador

Bonita Feio?

Pode chorar, insegura Homem não chora, seguro

Monogâmica Poligâmico

Virgem Expert

Fiel Infiel

Sacrificada, abnegada Cômodo

Masoquista Sádico

Passiva Ativo

Fonte: MISSE, 1979, p. 15–16, grifos do autor.

Conforme observado no quadro acima, para além da observância do engessamento das características tidas como femininas e masculinas, um fator-chave na teorização de Misse é a

ideia da passividade (último elemento do quadro). A passividade feminina, inicial e biologicamente relacionada à sua função sexual, acaba por difundir-se por todos os atributos sociais relacionados à feminilidade – nas palavras de Misse (1979, p. 17), o que ocorre é uma ―[...] ‗naturalização‘ simbólica da ‗passividade‘ feminina – conteúdo sintético do mito da feminilidade - [...], usada como matéria-prima principal de estigmatização‖.

Ainda versando sobre os aspectos que transpõem as barreiras biológicas e se instauram nos atributos sociais de gênero, Misse evidencia, por meio de estudos da linguagem, as diferenças simbólicas no discurso sobre a feminilidade e a masculinidade. A normatização, vista anteriormente em Butler, relacionada às práticas discursivas reiteradas é verificada: ―[...] Os órgãos genitais masculinos conferem ao seu portador o significado de ‗prestígio‘, enquanto que os órgãos sexuais femininos [...] constituem ‗símbolos de estigma‘ na linguagem de gíria e palavrões.‖(MISSE, 1979, p. 55).

O estigma do passivo sexual, portanto, relaciona a inferiorização social feminina à sua condição sexual passiva. Tal fenômeno é ilustrado nos apontamentos de Sjoberg e Gentry (2008) sobre a ligação direta feita entre a agência feminina relacionada à violência e algum aspecto sexual da mulher. Segundo as autoras, relacionar aspectos da sexualidade feminina com sua disposição à violência é uma tentativa de minar a agência das mulheres, ao destituí-la de escolha racional ao cometer um ato violento – esta é uma prática que se observa desde os tempos bíblicos (SJOBERG; GENTRY, 2008). Ao agir de maneira adversa às expectativas da performatividade do gênero feminino, as mulheres violentas são objeto de fascínio e colocadas em uma categorização de ―fenômeno‖, considerado à parte da violência masculina: ―[...] a mulher violenta cometeu dois crimes: sua violência, e desafiar os estereótipos de gênero que creem na sua incapacidade de cometer aquela violência.‖ (SJOBERG; GENTRY, 2008, p. 7, tradução nossa)30.

O que as autoras propõem se adequa ao estigma do passivo sexual: ao falhar com suas atribuições de passividade sexual – seja pelo conto da ninfomania ou o conto da disfunção sexual (dois aspectos opostos da sexualidade) -, a mulher acha motivações para ações irracionais como, por exemplo, o recurso à violência (SJOBERG; GENTRY, 2008). Portanto, mesmo mulheres imbuídas de agência e comprometidas com violência política em sua forma combativa são vistas, também na política internacional, como subordinada aos homens. Essa afirmação é ilustrada pela seguinte passagem:

30 ―[...] a violent woman has committed two crimes: her violence, and defying gender stereotypes that deem her

Maquiavel assumia que ―todas as mulheres no Exército eram prostitutas, que buscavam aqueles passatempos vis que comumente tornam soldados ociosos e subversivos‖. Nessa passagem, Maquiavel relaciona o envolvimento das mulheres nas forças militarizadas ao comportamento sexual e desvio sexual (SJOBERG; GENTRY, 2008, p. 8, tradução nossa)31.

Assim, observa-se que um dos próprios autores cujas obras são fundamentais para a construção das Relações Internacionais institui os estudos da guerra à custa da subordinação e inferiorização feminina. Desta maneira, retomamos o ponto de que a área de estudos é construída em bases androcêntrica – perspectiva que deve ser repensada.

A fim de concluir os aspectos da passividade sexual feminina, vale a referência a um trecho interessante sobre a própria construção dos mitos e símbolos coletivos:

A ―dessexualização‖ dos mitos religiosos ocidentais parece obedecer à mesma lógica de ocultação do imenso significado do sexo na conformação da identidade social feminina no Ocidente. O principal mito religioso feminino do catolicismo, a Virgem Maria, não é a mulher do principal mito religioso masculino, Jesus Cristo, mas sua mãe. A deslocação implica afugentar qualquer vinculação degradante (i.é, sexual-feminina) para o âmbito oposto, assexuado e elevante, da feminilidade, o papel de mãe (MISSE, 1979, p. 13, grifos do autor).

Documentos relacionados