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AS FESTAS NA SÃO PAULO COLONIAL (1711-1828)

MATERIAL E REALIZAÇÃO

Como já dissemos, a forma de realização das festas públicas seguia as Ordens Régias (legislação civil), que, desde o século XVIII, estipulavam as normas e regras que deveriam ser obedecidas e o modelo de organização e de programação a ser seguido. Também as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (legislação eclesiástica), estabeleciam uma série de procedimentos com relação à sua realização, estabelecendo data e horário. Em ambas as legislações, sempre havia embutido um “significado ritual e sua vulgarização era

Maria Cristina Caponero

politicamente indesejável e socialmente perigosa na urbe colonial” (SILVEIRA, 1994, p. 151. In: KANTOR, 1998, p. 166).

A forma de realização das festas públicas poderia variar de acordo com a natureza da mesma, uma vez que, como vimos, havia festas organizadas pela Câmara, pela Igreja e outras pelas irmandades e confrarias. Cada uma delas tinha características e especificidades, além de algumas práticas em comum. Guardadas tais especificidades, como veremos a seguir, todas as festas de realização obrigatória e de responsabilidade da Câmara (festas reais, festas de representação e entradas solenes) seguiam praticamente a mesma programação (com algumas ressalvas), sendo compostas tanto de uma parte religiosa como de uma profana, mesmo em se tratando de festas religiosas católicas, como era o caso das festas reais.

Ao pensarmos nas festas públicas que aconteciam nas ruas, adros e praças da cidade de São Paulo, pomos luz no espaço (CERTEAU) das mesmas nas cidades. Esses “lugares” temporariamente tornavam-se “territórios comuns” por onde os cidadãos circulam e conviviam para além de suas diferenças, numa apropriação temporária do espaço urbano público pelo povo.

Como era costume na época, a realização da festa deveria ser obrigatoriamente comunicada. O marco inicial da festa envolvia anúncio alardeado pelos “arautos”146, representantes da corte e vestidos a caráter (normalmente mascarados) que, acompanhados de músicos, percorriam as ruas da cidade anunciando a festa. Eles liam o “pedido” da Câmara para que os moradores colaborassem, enfeitando a cidade e iluminando suas casas com festivas luminárias nas seis (ou três) noites antecedentes à festa. Mary del Priore assim descreve:

O anúncio da festa revestia-se de características que enfatizavam o especial, o peculiar, da data. Vestimentas luxuosas, instrumentos musicais e máscaras tinham por objetivo sacudir a comunidade da modorra do seu cotidiano, por meio do barulho dos tambores e do espetáculo visual da promessa de divertimento (DEL PRIORE, [1994] 2000, p. 30).

Na ocasião também eram publicados editais (chamados “bandos solenes”) que tinham como objetivo divulgar as notícias lidas pelos “arautos”, bem como detalhar as decisões tomadas pelo Senado da Câmara referentes à realização da festa, sua natureza e as respectivas incumbências que caberiam a cada morador. Nas festas menores não ocorriam pregões, apenas a publicação desses editais ou bandos que tinham tamanha importância a ponto de serem fixados em locais estratégicos, em lugares de grande circulação e de fácil

visualização, estabelecidos pela Câmara (e registrados nas Atas). Eles deveriam ser sempre “llugares pubricos147” [sic], “llugares acostumados” [sic], ou lugar em que a cidade se fizesse mais pública, numa apropriação do conceito de “espaço público”. No caso de São Paulo, em geral elegia-se a porta da Sé Catedral, pela importância da Igreja e pela sua centralidade espacial, lembrando que a festa deveria atrair o maior número possível de pessoas, pois a importância e o poder da Igreja e do Estado só poderiam ser expressos dependendo do número de pessoas cooptadas (DIAS, 1984; DEL PRIORE, 1994).

Tais editais eram ao mesmo tempo a “autorização” e a “determinação” para a realização das festas e marcavam o início dos preparativos necessários. Dependendo do tipo de festividade, demanda-se muito tempo e trabalho, podendo durar vários dias ou até mesmo vários meses, uma vez que as festas reais deveriam ser realizadas com primor e esmero e com “o maior brilho possível”, como exigia a Câmara (TAUNAY, 1735-1765, tomo I).

As festas reais normalmente se iniciavam com missa solene, seguida por procissão pelas ruas iluminadas e enfeitadas da cidade e envolvia o espocar de fogos de artifício (também chamados de “fogos-do-ar” ou “foguetes-do-ar”), costume que remonta ao século XVII148 (sempre presente em todas as festas oficiais, religiosas ou cívicas), e que persiste até os dias de hoje. Em 1799, os fogos estiveram presentes na Festa de Corpus Christi, como pode ser comprovado pelos Termos de Vereança da Cidade de São Paulo,

(...) indo o senado da Câmara como Real Estandarte das casas deste Senado para a Sé, querendo a tropa adiantar-se Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General a mandou parar para o Senado seguir, adiante da tropa e o mesmo mandou praticar na recolhida do Santo (São Jorge) para as casas do dito Senado, onde lhe mandou fazer as contingências devidas e conclui o ato com uma descarga de 21 tiros (...) (Termos de Vereança da Cidade de São Paulo, 23 de maio de 1799 apud WESTPHALEN; BALHANA, 1992, p. 106).

Os fogos tinham uma função oficial, social e política de propagar o júbilo, atrair as pessoas ou consagrar homenagens. Eram utilizados tanto para anunciar a partida das procissões como para celebrar sua chegada à Igreja ou à praça onde aconteciam os principais eventos. A possibilidade de alardear as homenagens no céu, ou de escrever com luz, fez com que diferentes grupos sociais passassem a se apropriar da tradição dos fogos e utilizá-la em

147 Raphael Bluteau (Vocabulario Portuguez & Latino, 1712) explica que se buscava o lugar mais público que

houvesse, sendo esse o adro da matriz que por estar diante da matriz era a construção mais importante da época. Muito embora o conceito de “local público” como conhecemos atualmente ainda não existisse.

148 Os fogos foram introduzidos pelos portugueses, mas vieram da China e passaram a ser elementos marcantes

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benefício próprio. Afinal, se era possível investir nas festas dos Reis e da Igreja, por que não em suas próprias festas e em suas próprias necessidades de prestígio. Os fogos de artifício foram se tornando um instrumento de poder e pareciam significar a vitória da cultura sobre as forças hostis da natureza, do poder e do tedioso cotidiano (AMARAL, 1998). Posteriormente, o uso de fogos na abertura das festas passou a constituir um veículo da propaganda governamental ou de resistência das elites contra o mesmo governo (DEL PRIORE, 1994).

Requisitava-se para a capital os mais hábeis fogueteiros, mandando-os vir de outras vilas para “fazer os fogos das festas reais” (WESTPHALEN; BALHANA, 1992, p. 103).

(...) [O] General ordena a Vossa Mercê que imediatamente receber esta, faça vir para esta cidade o Mestre Fogueteiro que aí se acha para fazer outro igual fogo ao que fez nas festas reais do ano passado, para cujo fim trará já consigo todas as pessoas e mais aprestos que ele disser que precisa (...) (Documentos Interessantes, nº 46, p. 235 e 302 apud WESTPHALEN; BALHANA, 1992, p. 103).

Aos poucos foram incorporados às festas religiosas da igreja práticas externas ao culto católico, práticas profanas, como as mascaradas, danças, os bailados também chamados de folguedos, os carros alegóricos e a queima de fogos. Essas práticas eram consentidas e foram incluídas nos programas oficiais no princípio do século XVIII, sendo encampadas e até incentivadas pelas autoridades. A Câmara chegava a indenizar os juízes dos ofícios pelas despesas efetuadas com os bailados, sendo descritas nas Atas da Câmara Municipal de São Paulo (GAETA, 1994; WESTPHALEN e BALHANA, 1995; FREITAS, 1921).

A essas práticas acrescentaram-se as cavalhadas, divertimentos praticados pela aristocracia portuguesa obrigatórios das grandes festas inclusive das festas reais. Elas eram custeadas pelo Senado da Câmara e/ou pessoas ilustres, sendo disputadas pelos membros da elite local, “movidas por valores aristocráticos e de distinção social, que faziam uso de todo o fausto ao alcance da mão para ornar seus cavalos e uniformes” (MOURA, 2005, p. 84). Francisco de Assis Vieira Bueno considera que “a cavalgada dava à procissão a fisionomia de uma exibição carnavalesca, mas era justamente isso que fazia as delícias do rapazio da Cidade e da gente da roça, que afluía em grande número, até de bem longe...” (BUENO, s/d apud WERNET, 2004, p. 213).

Raphael Bluteau (Vocabulario Portuguez & Latino, 1712) explica que as cavalhadas eram uma forma de diversão popular, em que vários contendores149, montados em cavalos ou

jumentos, empunhando lanças ou canas, procuravam obter vários prêmios, ordinariamente frangos ou patos e outras peças suspensas por argolinhas.

Denise Moura (2005), apoiando-se em Alceu Maynard, esclarece que em São Paulo havia três diferentes tipos de cavalhadas: a teatral, a sério-burlesca e a religiosa. A cavalhada teatral era a mais antiga, de herança portuguesa (introduzida por volta do século XVII). A cavalhada sério-burlesca envolvia duas classes distintas: a dos aristocratas, mascarados, cavalgando animais de trato e o grupo de trabalhadores de ofícios mecânicos, representados por peões com seus molambos e jograis. As camadas populares também participavam, mas sob fiscalização das autoridades régias. Fora das cavalhadas burlescas, em épocas de festejos reais, as camadas populares eram apenas espectadoras dessas corridas e disputas dramáticas (MOURA 2005).

Tais incorporações profanas às festas religiosas nos levam a considerar as festas e procissões oficiais do século XVIII e mesmo do início do século XIX como “préstitos profano-religiosos”, por serem simultaneamente sagradas e profanas (uma estava dentro da outra). Cecília Maria Westphalen e Altiva Pilatti Balhana (1995) ressaltam que a parte profana das festas religiosas fora ganhando cada vez mais espaço, adquirindo força e vida própria, assumindo certa independência, embora ainda muito articulada às práticas religiosas. Essas partes profanas das festas passaram a ser toleradas, embora muito criticadas pela irreverência que causavam nas procissões, tornando-as meros e únicos “divertimentos” coletivos da população da época, atraindo uma vasta população e transfigurando a feição das ruas (BRUNO, 1953). Mary Del Priore descreve essa transformação.

Em meio à pluralidade de eventos que têm lugar regrado dentro da festa (percebemos que há um ritmo entre o desfilar da procissão, a passagem dos carros alegóricos e os dançarinos, o momento da queima de fogos ou da cavalhada) ocorrem fatos menores cuja função deve ser interpretada, quer salientando os momentos de integração entre diferentes segmentos sociais, quer apontando suas maneiras específicas de usar a festa, como um espaço de diversão; tais partes de todo comemorativo são igualmente importantes para qualquer dos grupos sociais que dele participam (DEL PRIORE, [1994] 2000, p. 63).

A Câmara paulistana ordenava aos juízes dos ofícios que oferecessem suas danças quando das procissões e pedia reiteradamente para que as padeiras e quitandeiras concorressem com jogos de “péla” e com as suas danças costumeiras. Sant’Anna explica que péla (ou pella) era “antiga rapariga que bailava nos hombros de uma mulher, que também andava bailando; a pella fazia as mesmas cadências que a outra” [sic] (SANT’ANNA, [1944] 1952, p. 24). Sant’Anna relata a procissão de 1741 e, embora não tenha especificado de qual

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se tratava, acredita-se que seja a Festa de Corpus Christi pela data de sua ocorrência (maio de 1741). Ele relata:

(...) os taverneiros, chefiados por Antônio de Couto, enfeitariam as ruas com palmas à sua custa; os oficiais mecânicos dariam danças; as padeiras a Péla, tendo sido nomeada para preparar uma certa Mariquitas Viegas; as quitandeiras deveriam concorrer também, chefiadas pela preta Páscoa, de d. Maria de Siqueira (SANT’ANNA, 1958a, p. 444, grifo nosso).

Também em 1743, a Câmara determinou que “as padeiras dessem a ‘péla’ e que as quitandeiras dessem sua ‘dança costumada’, nomeando-se para cabeça delas a Josefa, mina preta forra, e a Quitéria, escrava” (Registro Geral da Câmara da Cidade de São Paulo, v. VI, p. 106). Elas apresentavam-se com “roupas vistosas, trazidas de Portugal” (DIAS, [1984] 2001, p. 73). O mesmo ocorreu em 1744, por ocasião da Procissão de Corpus Christi. Nesse ano, houve contratempos que demonstraram que nem sempre tais determinações eram seguidas sem contestações. No último momento, as padeiras se recusaram a apresentar a sua dança de todos os anos. Segundo Maria Odila Leite da Silva Dias (1984), este protesto foi ritualizado de modo escandaloso e as autoridades ordenaram a prisão das padeiras, cabendo aos almotacéis a atribuição das prisões ou mesmo das multas, quando necessário.

Affonso A. de Freitas (1921) ressalta que essas danças dos ofícios mantiveram-se por muitos anos, mas, desde 1752, “vinham sendo realizadas sem o caráter religioso de outrora e sem o concurso indistinto das diversas camadas sociais, pois as castas da população foram se delimitando e se detalhando os costumes até a extinção da promiscuidade de classes naqueles folguedos”150 (FREITAS, [1921] 1978, p. 147). Paulatinamente essas danças dos ofícios foram caindo em desuso, a tal ponto que “a partir dos primeiros momentos do século dezenove já não encontramos notícias nem reminiscências delas” (FREITAS, [1921] 1978, p. 140).

Thomas Ewbank, embora não especifique a qual festa se refere e nem mesmo o ano de ocorrência, faz um breve relato da complexidade de fatos que costumam envolver as festas. Segundo ele:

As ruas são varridas e cobertas de folhas, as fachadas são enfeitadas de flores e bordados, mulheres e crianças amontoam-se às janelas, os habitantes rurais acorrem ao espetáculo e à sua espera formam-se por toda a parte grupos de ambos os sexos. Finalmente aparecem estátuas em tamanho natural e pintadas ao vivo, colocadas sobre estrados e carregadas em triunfo

150 Foram mantidas as congadas, moçambiques, batuques e outros folguedos realizados pelos africanos junto às

igrejas de São Benedito e do Rosário. As camadas privilegiadas passaram a bailar à europeia, nos salões dos palacetes.