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Dissertar sobre o todo da brincadeira do Cavalo Marinho torna-se inviável neste momento, por isso, vamos nos ater a três figuras importantes dentro da dinâmica da roda da manifestação popular em questão: o Mateus, o Bastião e a Catirina.

Importantes no sentido de que são figuras que possuem uma participação ambivalente na brincadeira, pois, ao mesmo tempo que são os

três escravos do Capitão, eles têm todo poder e liberdade para comandar a festa com o consentimento do seu senhor.

Além disso, são figuras apresentadas pelos mesmos figureiros durante sua permanência no grupo. Os brincadores responsáveis por estes tipos de figura se especializam nos seus códigos gestuais e vocais e as apresenta durante toda a sua vida ativa na brincadeira. Podemos dizer que, dentro das etapas de aprendizado da brincadeira, estas figuras fazem parte do estágio mais elevado de realização no drama.

Mateus é uma das figuras que permanece o tempo inteiro na arena, ficando do início ao fim da brincadeira. Segundo os brincadores, é um escravo que serve ao Capitão. Tem espírito matreiro e arredio. Seu objeto característico é uma bexiga de boi seca e inflada com ar que usa para marcar o compasso das toadas batendo- a na perna enquanto dança e, principalmente, para surrar as outras figuras.

Outros elementos característicos são: seu chapéu em forma de cone coberto de papel laminado colorido, sua roupa sempre estampada e o matulão que traz no alto das nádegas, feito de folha de bananeira, além do rosto melado de cinza de carvão. É chamado pelo Capitão para tomar conta da festa que está organizando.

Bastião também é uma figura permanente no terreiro e parceiro de Mateus. É muito parecido com este, tanto nos trajes como em sua atuação no espetáculo, com o diferencial de que o Mateus é mais ativo que ele. É chamado pelo Capitão para ajudar seu amigo a cuidar da festa. Os dois negros se chamam de “pareia” (parelha), devido à cumplicidade e companheirismo.

Catirina (ou Catita) é outra figura permanente da brincadeira. É a escrava assanhada e mulher de Mateus. Alguns brincadores dizem que ela é mulher dos dois negros, mas nosso informante, o mestre Biu Alexandre, não confirma esta versão, apesar de haver sempre insinuações neste sentido durante o espetáculo.

Apesar de ser uma figura feminina, é interpretada por um homem. Também pinta o rosto de negro, usa um lenço na cabeça, um vestido simples, um jereré (espécie de peneira para pescar) e uma boneca (a calunga) como

elementos de caracterização. Vem para a roda a pedido de seu marido Mateus. É uma figura que está voltando aos poucos ao espetáculo, depois de muitos anos de ausência e notamos que, devido a este afastamento, muita coisa em relação a sua participação na brincadeira se perdeu (toadas, loas, enredos, etc.).

Percebemos, em todas as formas de jogos e manifestações espetaculares, que o acentuado caráter visual é importante para a instalação da consciência de que, naquele momento, se apresenta uma outra maneira de compreender e narrar a vida.

Patrice Pavis (2003, p. 196-170) também atribui um importante papel aos elementos responsáveis pela transformação do homem em seu momento espetacular:

O figurino é, no teatro, um embreador natural entre a pessoa física e privada do ator e a personagem da qual ele veste a pele e os aparatos. Perfeito agente duplo, ele é levado por um corpo real para sugerir uma personagem fictícia: podemos assim abordá- lo a partir do organismo vivo do ator e do espetáculo, ou então, a partir do sistema da moda que ele transmite da maneira mais precisa possível (...)

Analisando as vestimentas das figuras do Cavalo Marinho, concordamos com Patrice Pavis, quando este observa a questão dos limites do figurino, ou seja, o que pode ou não ser chamado de figurino.

Segundo o autor, não é fácil definir o começo e o fim do que pode ser chamado de vestimenta, pois, a depender do tipo de roupa, torna-se impossível distingui-la de outros elementos como máscaras, perucas, postiços, jóias, acessórios e maquiagem.

Tanto a relação do figurino com o corpo do ator que o utiliza, quanto com o espaço que ele interage, assim como sua relação com os outros elementos visuais deve ser levado em conta no momento de uma análise mais apurada do que se convencionou chamar figurino.

O mestre Biu Alexandre, do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, também está de acordo com esta forma de pensar a vestimenta e sua importância para quem a utiliza:

Rapaz, pra mim, tudo é importante. Eu não separo de importância. Eu não separo nada, porque, pra mim, tudo é importante (...) o figureiro, se ele não tiver uma roupa certa pra botar aquela figura, ele já está achando ruim. Porque, você vê, tem figura que a gente bota de manga de camisa, mas têm outras que não, que são de paletó. Porque a figura só assenta com paletó. Uma figura pesada, sem paletó, ela não é de nada. 61

Os negros Mateus e Bastião, quanto às suas vestimentas, são as figuras mais curiosas em termos de análise, pois possuem um figurino que vem se estilizando a um ponto em que não mais os enquadram nas suas funções de escravos e serviçais. Não há, neste caso, como deixar de fazer uma relação entre a roupa destas figuras com as antigas imagens de bufões, palhaços e os famosos Arlequins da Commedia dell’arte.

Principalmente, se evidenciarmos um elemento que eles trazem nas costas à altura das nádegas, o chamado matulão, que é feito de palha seca de bananeira. No início de nossa pesquisa, pensávamos que a função deste objeto era de diminuir o impacto dos tombos que as figuras levavam no decorrer das apresentações, mas, através de entrevistas, fomos informados que seria uma espécie de bagagem que os negros levavam consigo: Aquilo ali é a mala dele (...) É a bagagem. Os negros, antigamente, não andavam com as bagagens? Quando iam viajar, não levavam aquelas bagagens? A mesma coisa são os Mateus.62

O curioso é que encontramos referências longínquas sobre o emprego deste material nas roupas de personagens cômicas, como vemos a seguir:

Por outro lado, palhaço vem do italiano paglia (palha), material usado no revestimento de colchões, porque a primitiva roupa desse cômico era feita do mesmo pano dos colchões: um tecido grosso e listrado, e afofada nas partes mais salientes do corpo, fazendo de quem a vestia um verdadeiro “colchão” ambulante, protegendo-o das constantes quedas (RUIZ, 1987, p. 12).63

60 Idem, p. 11.

61 Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 17/02/2005, na cidade

do Condado, Pernambuco.

62 Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 16/02/2005, na cidade

do Condado, Pernambuco.

63 In: BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas, SP: Editora da Unicamp,

De fato, não podemos asseverar de forma conclusiva tais relações, mas, podemos perceber certa proximidade entre os dois casos expostos.

A roupa em si do Mateus e do Bastião também nos lembra, pelo colorido e pela forma, as roupas mais conhecidas dos Arlequins, ficando claro que há uma ligação muito antiga entre a graça, a diversão e a utilização de roupas coloridas, pois, nos dois casos, estes são personagens encarregados em manter o tom cômico dos espetáculos, além de suas origens modestas que geraram um figurino em forma de retalhos multicores.

Também, são estas figuras, juntamente com a Catirina, que assumem a função de inverter as relações sociais estabelecidas pelo sistema vigente, isto é, dentro da roda, através do riso e do escárnio, são eles que dominam as outras figuras que, na vida real, são os detentores do poder. Neste caso, o figurino demonstra sua forma de participação na brincadeira.

Em se tratando da maquiagem que, segundo Patrice Pavis, tem a função de vestir o corpo, assim como a alma de quem a usa, ela desempenha papéis simples e de fácil percepção, à primeira vista, em se tratando da brincadeira do Cavalo Marinho. Poderíamos mesmo dizer que a maquiagem se resume a rostos pintados de preto ou branco ou o uso de máscaras.

Porém, numa análise mais apurada podemos observar significantes de profunda relação com o imaginário que constitui o universo que permeia os brincadores e, atentos à conduta de Pavis, tentaremos avaliar, sobretudo, a função simbólica que a maquiagem e a máscara preenchem no momento da espetacularização do corpo e suas conexões com o sistema sócio-cultural de seus participantes.

Mas, antes de adentrarmos nestas questões, observemos o que Pavis (2003, p. 170) nos diz a respeito da máscara e da maquiagem:

A maquiagem não é, no entanto, uma extensão do corpo como podem ser a máscara, o figurino ou o acessório (...) É, melhor dizendo, um filtro, uma película, uma fina membrana colada no rosto: nada está mais perto do corpo do ator, nada melhor para servi-lo ou traí-lo que esse filme tênue.

Esta passagem nos faz refletir sobre a utilização das máscaras, maquiagens e rostos limpos dos integrantes do Cavalo Marinho.

A maquiagem de cor preta só é usada por três figuras no espetáculo, o Mateus, o Sebastião e a Catirina, os negros escravos do Capitão que são contratados para tomar conta da festa. Por mais que seus intérpretes não sejam brancos, isto é, estejam mais próximos dos descendentes de escravos, seus rostos são maquiados de preto, o que ressalta o branco dos olhos quase sempre arregalados e dos dentes sempre aparentes através da ginástica facial característica que imprime o tom zombeteiro e satírico das figuras.

Podemos, a partir disso, afirmar que, nesta estrutura do Cavalo Marinho, a maquiagem é a personificação do elemento oprimido que se faz livre na brincadeira, ganhando poderes acima das normas do dia-a-dia. São os antigos escravos que, reinventados pelos brincadores, são vividos como identidade destes, são as figuras mais próximas a eles, que se identificam com seus pesares, sofrimentos e injustiças.

Por isso, não a máscara, nem o rosto limpo, como acontece com as outras figuras, mas aquela fina membrana colada no rosto, simbolizando que nada está mais próximo do universo dos brincadores que seus antepassados escravizados e, sendo assim, seus lugares são os mais próximos possível do corpo do brincador, na sua pele, representando o elo, as referências sociais, econômicas e simbólicas que refletem o sistema destrutivo que permanece por anos a fio e unem passado e presente de uma história infeliz.

Para Maria Acselrad, as figuras do Cavalo Marinho fazem alusão, ao mesmo tempo, à realidade e ao imaginário local, trazendo em sua aparição, tanto a história do figureiro (pessoa responsável em executar a figura) que lhe dá vida, do povo de seu lugar como a presença de um universo mais coletivo e imemorial.

Esta relação dinâmica se estabelece através da vivificação da memória que atua como um elo entre o passado e o presente, conferindo uma constância identitária para o grupo:

A memória cria efetivamente uma ligação temporal sensível, entre lugar e corpo, e faz ressentir, num dado momento, o que foi ou o que teria podido ser, na reconstrução de um passado no momento presente.64

Porém, esta noção de memória não deve ser vista como algo saudoso ou melancólico, algo distante que não se pode resgatar, mas como experiência que possui representatividade no agora, como complementa Pascal Roland:

A mobilização da memória se insere, consequentemente, na expressão do instante presente e não na lembrança de um passado inexistente, uma nostalgia.65

Neste processo de rememorização através do ato espetacular, não importa a cronologia, o momento exato de algum fato, pois, ele já não existe mais. Está nos elementos que transpassam o tempo e penetram nos dias atuais a necessidade do relembrar.

Relembrar para esquecer o que passou, mas para não esquecer de si mesmo, produzindo forças para poder seguir a diante e recriar a vida.

A brincadeira que corporifica as figuras do passado une um tempo ancestral ao tempo atual, através de uma conjunção de ações e movimentos que transitam entre tais temporalidades, ressignificando e atualizando a história e neste contexto a referência ao passado só se faz no eco suscitado no período atual e só vale por ele.66

Este acontecimento da memória se dá também na escolha dos tipos que compõem o Cavalo Marinho como sendo um arcabouço de interseções entre o hoje e o ontem, circulando no corpo dos participantes num fluxo infindável de conhecimento e diversão, como explicita Helena Tenderine (2003, p. 64):

64 ROLAND, Pascal. Danse et imaginaire – Étude sócio-antropologique de l’univers chorégraphique

contemporain. Paris: EME, 2005, p. 94. Minha tradução : La mémoire crée em effet um lien temporel

sensible, entre lieu et corps, et fait ressentir, à um moment donné, ce qui a été ou aurait pu être, dans la reconstruction d’um passe au moment présent.

65 Idem. p. 95. Minha tradução: La mobilisation de la mémoire s’insère em conséquence dans l’expression

de l’instant présent et non dans le rappel d’un passe révolu, une nostalgie.

66 Id. ibid, p. 96. Minha tradução: (...) la référence au passé ne se faisant que dans l’écho suscite dans la

Eles mostram o universo em que vivem e o universo em que viveram seus antepassados. Mesmo que alienadamente, eles estão representando e apresentando uma realidade que foi vivida há tempos passados (na época da escravidão) por seus ancestrais. Por isto, eles são e não são eles na brincadeira, porque para alguns deles esta realidade está distante, guardada no passado, mas para outros não, ela está bem viva no presente.

Maria Acselrad (2002, p. 108) desvela o caráter cósmico que emprenha a brincadeira do Cavalo Marinho de sentido, interesse e dinâmica, personalizado no conjunto de figuras que anima o espetáculo, através das vielas da memória, do significado cultural e da relação estabelecida entre elas e o público: As figuras são os outros dentro de um só eu. A maneira como são colocadas, na maioria das vezes, sem ruptura ou transição enfática, sugere que a multiplicidade é constitutiva da integridade dos sujeitos que as colocam.

E mais, que tal multiplicidade é parte integrante de cada indivíduo, permeado de tantos outros em sua suposta individualidade.

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