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FESTAS PPGAC. Lúcia Lobato Érico José Souza de Oliveira. Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas

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FESTAS

Lúcia Lobato

Érico José Souza de Oliveira

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GIPE-CIT

Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em

Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade

Nº 20

FESTAS

Organização:

Lúcia Lobato Érico José Souza de Oliveira

PPGAC

P rog rama de P ós-gra duaç ão em Art es Cênica s

Escola de Teatro/Escola de Dança

Universidade Federal da Bahia

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Cadernos do GIPE–CIT N. 20

FESTAS

Maio - 2008

Coordenação Geral do GIPE-CIT

Prof. Armindo Bião

Conselho Editorial

André Carreira (UDESC), Antonia Pereira (UFBA), Betti Rabetti (UNI-Rio), Cássia Lopes (UFBA), Christine Douxami (CNPq-UFBA), Eliana Rodrigues Silva (UFBA), Makarios Maia Barbosa (UFRN),

Sérgio Farias (UFBA)

Diagramação e Formatação

Nádia Pinho - Fast Design

Capa

Desenho de Sônia Rangel

Revisão:

Érico José Souza de Oliveira

Impresso no Brasil em maio de 2008 pela: Fast Design - Prog. Visual Editora e Gráfica Rápida LTDA. CNPJ: 00.431.294/0001-06 - I.M.: 165.292/001-60 - e-mail: fast.design@terra.com.br - Tiragem: 300 exemplares

Biblioteca Nelson de Araújo – TEATRO/UFBA

Caderno do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade/ Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro / Escola de Dança. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. – N. 20, maio. 2008. Salvador (Ba): UFBA/ PPGAC, 2008. 93 p. ; 21 cm.

Periodicidade semestral ISSN 1516-0173

1. Teatro. 2. Festas populares 3. Festas religiosas. I. Universidade

Federal da Bahia. Programa em Artes Cênicas. II. Título

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APRESENTAÇÃO

Lúcia Lobato e Érico José Souza de Oliveira... 5

HOMENAGEM A JEAN DUVINGAUD

Armindo Bião... 7

FESTA: UMA TRANSGRESSÃO QUE REVELA E RENOVA

Lúcia Lobato... 13

A TRADIÇÃO E A REINVENÇÃO EM UM OLHAR SOBRE A FESTA DO CONGADO

Valeska Ribeiro Alvim... 18

REZAR, CANTAR E FESTAR – HOMENAGEM A SENHORA DO ROSÁRIO: Pontuações sobre a congada em Uberlândia/MG

Ana Maria Pacheco Carneiro... 28

FESTAS, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES

Célia Conceição Sacramento Gomes... 44

DE OLHO NA LAVAGEM DO BOMFIM: transfiguração de uma festa

CÉLIDA SALUME MENDONÇA... 53

DIA DE FINADOS EM RIO REAL: uma festa dos vivos para os mortos

Cristiano Fontes... 67

A RODA DO CAVALO MARINHO: espaço para uma memória espetacular de uma ancestralidade festiva

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Apresentação

O Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Fed-eral da Bahia foi pioneiro no Brasil a implantar, em sua linha de pesquisa Matrizes Culturais na Cena Contemporânea, a disciplina Etnocenologia, inaugurada quando da fundação, em Paris, do Centro Internacional de Etnocenologia no dia 03 de maio de 1995. A partir de seu Manifesto de autoria de Jean Marie Pradier ficou definida como “o estudo, nas diferentes culturas, das Práticas e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados (PCHEO) e tem como defesa de princípios a multiculturalidade, a alteridade, a pluridisciplinaridade e, entre outros a lógica da indistinção apresentada pelo Professor Dr. Armindo Bião na Conferência de abertura do I Seminário Nacional sobre Performáticos, Per-formance e Sociedade em 22.11.1995 na UNB, em Brasília.

Os professores doutores Lúcia Lobato e Érico José Souza de Oliveira, ambos do PPGAC e com teses defendidas em Etnocenologia, no ano de 2006 inauguraram na disciplina Tópicos Especiais em Artes Cênicas um estudo específico que denominaram de Festas e Espetacularidade. A nova proposta foi fruto do próprio amadurecimento do Programa e conseqüente desdobramento do bem sucedido curso em Etnocenologia.

A disciplina apresentou como conteúdo programático a conceituação de festas e sua função civilizatória, destacando dentre seus elementos constitutivos, o jogo, a brincadeira e o corpo festivo. Ressaltou sua dimensão espetacular, o grotesco, o riso, o significado dos comportamentos e das práticas espetaculares e as perspectivas de investigação das festas. Entre outros autores foram visitados Mikhail Bakhtin, Laplatine, Jean Duvignaud, Michel Maffesoli, Clilfford Geertz, Johan Huizinga, Renato Ortiz, Armindo Bião, Roberto da Matta entre outros.

Ao final do curso os alunos foram avaliados a partir de seminários onde apresentavam uma descrição etnocenológica de uma festa de sua escolha. O sucesso alcançado nesses trabalhos incentivou os professores a fazerem uma seleção e organizar em artigos alguns dos referidos seminários que ora são publicados nesse 20º Cadernos do GIPE-CIT.

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Homenagem a Jean Duvignaud

Em nosso livro coletivo Artes do Corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia (Salvador: P & A, 2007, 492 páginas), em sua Apresentação, rendemos discreta e sincera homenagem ao líder do encontro fundador da Etnocenologia, realizado em 1995, na UNESCO e na Maison des Sciences de l’Homme, em Paris, França. Aqui e agora, voltamos a render mais uma sincera e discreta homenagem a nosso grande inspirador: Jean Duvignaud (La Rochelle, 22 de Fevereiro de 1921 - La Rochelle, 17 de Fevereiro de 2007).

Essa nova iniciativa é de dois pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia – PPGAC/ UFBA, Lúcia Fernandes Lobato e Érico José Souza de Oliveira, cujos doutoramentos tive a honra e o prazer de orientar. São eles que organizam a presente publicação. E o veículo é nosso periódico, do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, os Cadernos do GIPE-CIT, que publicamos já há dez anos.

Na vida, assim como na arte e na academia, quando tudo corre bem, andamos, voamos, navegamos, subimos em espirais, passando por muitas encruzilhadas, o tempo todo. Por isso precisamos, sempre, fazer escolhas, usando o verbo, aquilo que distingue uma coisa da outra. De fato, é a linguagem que nos permite avançar. Mas é também a linguagem – nossa língua – que pode nos prender e fazer ficar parados, empacados. Pode até mesmo nos fazer retornar aos inumeráveis becos sem saída que existem por aí. A linguagem liberta, mas também pode aprisionar, pois a tentação de nos direcionarmos a nossos próprios umbigos é muito grande, nessas espirais do mundo. É a armadilha abissal por onde nossa vaidade nos engole, é o rodamoinho das lamas movediças mais internas de nós mesmos.

A busca do conhecimento pode nos levar a perder a alma, mas certamente pode também nos levar a contribuir para a formação de novos pesquisadores e a criação de conhecimento novo. A crença em nosso próprio conhecimento, contudo, pode nos abrir os caminhos do mundo, mas também pode nos levar a nossa própria perda, de ponto de vista, da necessária humildade e recuo, quando

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de eventuais passos falsos, tão naturais para quem anda muito. Só quem não anda não se machuca (?), nem a si nem aos outros. Jean Duvignaud caminhou muito, formou muita gente e nos legou obras de referência, particularmente nas áreas das artes do espetáculo, da sociologia. É certo que somos, a todo momento, levados a fazer escolhas, opções, eventualmente fazendo – ou perdendo – amigos e colegas. Perdemos o professor, o colega e o amigo, mas ganhamos muito em nossa memória.

Esse é o risco da vida, da arte, da academia e das encruzilhadas, onde encontramos os mensageiros, os línguas – intérpretes tradutores, as crianças perdidas, os exus e as pombagiras. É também aí que encontramos Hermes (Trimegisto) - o três vezes grande, que nos ensina a decifrar os textos e Mercúrio, o das asas – e capacete – alados, que protege as artes e o comércio. Pois, como não poderia deixar de ser, foi nas encruzilhadas da vida, da arte e da academia, que conheci Jean Duvignaud, e foi nas escolhas de palavras para nos comunicarmos que eu cresci como pessoa, artista e acadêmico, correndo riscos, me movimentando – muito, ganhando e perdendo, errando e acertando. Mas não apenas eu é claro!

Tanta referência pessoal pode ser a reafirmação da tentação do doutor Fausto, de conhecer o máximo e ser feliz para toda a eternidade. Mas, na verdade, trata-se apenas de um recurso retórico, para dar conta da grandeza do homem que perdemos em fevereiro de 2007. E que tanto se interressou por aquilo que nos encanta, a festa e o teatro, por exemplo, e pelo que é, simultaneamente, maravilhoso e também perigoso, o diferente, o diverso, o anômico.

Escritor, crítico de teatro, sociólogo, dramaturgo, ensaísta, cenógrafo e antropólogo, francês, dirigente máximo da Maison des Cultures du Monde, Jean Duvignaud foi um desses seres das encruzilhadas, mensageiros do conhecimento, que nos ensinam a andar, voar, navegar, subir, falar e fazer escolhas. No caso muito particularmente do GIPE-CIT e do PPGAC/ UFBA, nosso mestre é referência maior, sem dúvida e nos tem – muito – inspirado, tanto antes quanto depois de maio de 1995, quando presidiu o colóquio de fundação da etnocenologia.

Com suas obras dedicadas ao teatro, numa perspectiva bastante ampla, à festa e à diversidade cultural da humanidade, numa perspectiva de simpatia compreensiva, Jean Duvignaud nos legou um patrimônio útil e acessível,

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universalmente, mesmo que sua também brilhante atuação como gestor cul-tural, na França, seja um bem mais particularmente usufruído por quem conhece seu país. Do mesmo modo, honrado com sua participação, a convite de meu orientador Michel Maffesoli, como presidente da comissão julgadora de minha tese de doutorado, na Sorbonne, em 1990, eu e meus colegas presentes a esse ritual de passagem acadêmico, na Sala Louis Liard, do histórico edifício universitário, pudemos usufruir, mais particularmente, de sua preciosa experiência – e expressão – acadêmica.

Por isso meu prazer é multiplicado, aqui e agora, quando mais um leitor – deste Caderno do GIPE-CIT, de número 20, é informado que esta obra é dedicada a Jean Duvignaud. E quando posso, num laivo deslavado de vaidade, arriscado sem dúvida, mas que, por isso mesmo, aumenta meu prazer, pois repito o poeta Caetano Veloso, “tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso”, reportar-me a três momentos em que encontrei, nas encruzilhadas, o grande mestre.

O primeiro desses momentos – pessoais e envaidecedores, repito - ocorreu em Salvador, Bahia, em 1979. Foi quando, na Escola de Dança da UFBA, onde então eu começava a lecionar Filosofia da Dança, a convite dos professores Dulce Tamara Lamego e Romélio Aquino, por sugestão da colega Maria da Conceição Castro Franca Rocha, li, deslumbrado, a Sociologia do Comediante (Zahar, 1972, trad. H. Facó, publicado originalmente em francês pela Gallimard, em 1965, com o título L’acteur, sociologie du comédien). Ali, pude percorrer um vasto panorama da história e da sociologia desses outros seres das encruzilhadas, que são os atores, que vivem - e comunicam - entre a realidade e a fantasia, a sedução e a crítica, a servidão e a rebeldia.

O segundo desses momentos ocorreu na cidade de Cuernavaca, no estado de Morelos, no México, em 1996. Foi durante a realização do II Colóquio Internacional de Etnocenologia, quando o ouvi cantar – seguidas vezes - músicas brasileiras e falar entusiasmado de nosso povo, de nossos artistas e de nosso país. Na companhia de Dionísio, nos luxuosos jardins de Cuernavaca, nas ruínas de Xoxicalco e nas monumentais montanhas de Morelos, testemunhei, por exemplo, a força do Teatro Campesino e Indígena, fundado em 1971 e que tem suas origens em cerimônias, danças, festas e manifestações artísticas tradicionais

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dos povos e comunidades indígenas e camponesas mexicanos, com a liderança de María Alicia Martínez Medrano. Poder acompanhar Monsieur Duvignaud em seus comentários sobre o Brasil, o México, a Europa e a África, nessa ocasião, encheu de sangue meu espírito e de ar meu corpo. O livro se fazia gente e conhecimento e eu nasci de novo nesse momento.

O mais recente momento ocorreu em 2005, quando o visitei em sua casa natal, na cidade de La Rochelle, na Charente Maritime francesa. Conheci então sua família (como ele, também interessada pelas artes do espetáculo e pela diversidade cultural), bem como seus objetos de estimação, espalhados por toda a casa, muitos levados para ali daqui do Brasil. O Museu do Novo Mundo de La Rochelle (la rebelle), um porto de circulação de bens materiais e simbólicos, encruzilhada da anomia, registra as relações históricas entre essa cidade e o Brasil. A casa de Jaen Duvignaud também.

Professor Duvignaud foi professor nas Universidades de Túnis, na Tunísia e Tours e Paris Diderot (Paris 7, Jussieu), na França. Fundou várias revistas, entre as quais Argumentos, com o filósofo Edgar Morin, nos anos 50, Causa comum, com o escritor Georges Perec e o filósofo Paul Virilio, nos anos 70, e Internationale de l’imaginaire, com Chérif Khannadar e François Gründ, nos anos 90.

Seus livros mais importantes são: L'Acteur, esquisse d'une sociologie du comédien, Paris, Gallimard, 1965. Rééd. L'Archipel, 1995; Durkheim, sa vie, son œuvre, Paris, PUF, 1965; Sociologie du théâtre, Paris, PUF, 1965. Rééd. Quadrige, 1999; Georges Gurvitch, symbolisme social et sociologie dynamique, Paris, Seghers, 1969; Anthologie des sociologues français contemporains, Paris, PUF, 1970; Spectacle et société, Paris, Denoël, 1970; Introduction à la sociologie, Paris, Gallimard, 1971; Sociologie de l'art, Paris, PUF, 1972; L'Anomie, hérésie et subversion, Paris, Anthropos, 1973; Le Langage perdu, essai sur la différence anthropologique, Paris, PUF, 1973; Fêtes et civilisations, Paris, Weber, 1974; Le Théâtre contemporain, culture et contre-culture, Paris, Larousse, 1974; Le Ça perché, Paris, Stock, 1976; Le Don du rien, essai d'anthropologie de la fête, Paris, Plon, 1977; Le Jeu du jeu, Paris, Balland, 1980; L' Or de la République, Paris, Gallimard, 1984; Le Propre de l'homme, histoires du comique et de la dérision, Paris, Hachette,

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1985; La Solidarité, liens de sang et liens de raison, Paris, Fayard, 1986; Chebika, étude sociologique, Paris, Gallimard, 1978. Rééd. Paris, Plon, 1990; La Genèse des passions dans la vie sociale, Paris, PUF, 1990; Dis l'Empereur, qu'as-tu fait de l'oiseau ? (récit), Arles, Actes Sud, 1991; Fêtes et civilisations ; suivi de La fête aujourd'hui, Arles, Actes Sud, 1991; Perec ou La cicatrice, Arles, Actes Sud, 1993; Le singe patriote. Talma, un portrait imaginaire (roman), Arles, Actes Sud, 1993; L'oubli ou La chute des corps, Arles, Actes Sud, 1995; Le pandémonium du présent, idées sages, idées folles, Paris, Plon, 1998; Le prix des choses sans prix, Arles, Actes Sud, 2001; Les octos, béant aux choses futures, Arles, Actes Sud, 2003; Le sous-texte, Arles, Actes Sud, 2005; La ruse de vivre, état des lieux, Arles, Actes Sud, 2006. Seu interesse pelo teatro, pela festa e pela anomia compõe um sistema coerente, tanto do ponto de vista conceitual quanto de sua produção literária. E é nesse interesse que todos os leirores desse Caderno do GIPE-CIT também poderão se encontrar e compreender a extensão da homeagem que aqui fazemos a Jean Duvignaud.

Rio de Janeiro, 26 de outubro de 2007

Armindo Bião

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FESTA:

Uma transgressão que revela e renova

Lúcia Lobato1

As festas, cada vez mais, vêem sendo reconhecidas no campo das Humanidades como um fenômeno necessário para a renovação e restauração do equilíbrio coletivo. Autores como Jean Duvignaud e Norberto Luiz Guarinelo, a partir de enfoques distintos, dedicaram atenção especial ao tema buscando compreender seu significado histórico e social na transformação das vidas em sociedade.

Ambos ressaltam o lúdico como um dos elementos constitutivos das festas. Nesse sentido Johan Huizinga (2004, p. 234) argumenta que:

Uma verdadeira civilização não pode existir sem um certo elemento lúdico, porque a civilização implica a limitação e o domínio de si próprio, a capacidade de não tomar suas próprias tendências pelo fim último da humanidade, compreendendo que esse está encerrado dentro de certos limites livremente aceitos.

Este elemento lúdico tem expansão garantida nas festas. Digamos que os homens, para conviver com suas limitações acordadas em sociedade, desenvolveram uma espécie de fair play, que seriam ações realizadas de boa fé e com um evidente sentido lúdico.

Para Duvignaud a festa estaria contemplada nesse savoir faire que destrói a aparente normalidade da vida coletiva, pois quebra com a seqüência do cotidiano instaurando o que sabiamente denominou “subversão exaltante” (1983, p. 31). Estaria na essência da festa a capacidade de despertar e animar os sentidos. Nela o participante perde o domínio da percepção e imerge no terreno das “dimensões ocultas” que o remetem, por sua vez, à dimensão do imaginário.

1 Professora Doutora da Escola de Dança e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola

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As “dimensões ocultas” (DUVIGNAUD, 1983, p. 55) são dimensões da existência que deixam de corresponder às conformações tradicionais ou às configurações estabelecidas do espaço cotidiano e em geral contestam e destroem tais formas.

As festas acontecem em extensões existenciais que são, para o autor, por exemplo, as ruas, as praças, os mercados, os bares, enfim, qualquer espaço onde pessoas possam se encontrar e comemorar um acontecimento ou até mesmo o simples encontro. É o lugar privilegiado do possível, da transgressão e do desafio. Nele a festa promove um recorte e constrói um cenário que pode ser social, religioso, militar entre outros, identificado pelos símbolos da tradição onde as pessoas vão interagir se vestindo, se movendo, cantando e dançando como personagens de uma cena.

Duvignaud sublinha na festa o elemento do transe que, segundo ele, instaura um estado onde tudo é possível. Para o autor a festa não está vinculada à normalidade, à funcionalidade, nem à rentabilidade, o que não a torna por essa razão uma irracionalidade. A festa tem uma lógica interna que a constitui e para compreendê-la é necessário o estado presencial. É preciso vivenciá-la, respirar o seu ambiente, mesmo como um espectador com o “corpo contraído”. O dinamismo da festa é repleto de performances e ações espetaculares, que consagram a razão da existência e promovem a renovação. Nesse sentido, para o autor o elemento orgiástico é o principal responsável das festas.

Norberto Luiz Guarinello, partindo de uma outra ótica, propõe pensar a festa a partir de quatro categorias de análise: 1º- Fazer uma fenomenologia da festa sem ignorar os sentimentos, os afetos e as emoções vivenciadas pelos participantes; 2º- Não pensar a festa como uma instituição passível de história; 3º- Abandonar a proposição de uma tipologia das festas; e finalmente, na 4ª categoria, propõe entendê-la como estrutura do cotidiano e não como uma realidade oposta. A partir dessas categorias elabora a seguinte definição para a festa:

A festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num mesmo tempo e lugar definidos e especiais, implicando a concentração de afetos e emoções em

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torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade. (GUARINELLO, 2001, p. 972)2 .

É importante destacar que o autor não compreende o cotidiano como a dimensão do particular, mas sim o espaço e o tempo concreto das realizações sociais. Para Guarinelo, a festa é parte integrante deste cotidiano e implica necessariamente uma estrutura de produção e de consumo que vai determinar uma estrutura de poder que, por sua vez, tentará impor sua identidade, seus gostos, sua ideologia. Mas por outro lado, reconhece que por mais controlada e manipulada que seja uma festa, sempre é um ato de explosão coletiva e produzirá identidades provisórias em diferentes graus. Produto da realidade social, a festa produz identidades, mas nunca alcança o consenso, muito pelo contrário ressalta e expressa os conflitos e as tensões dessa mesma sociedade. Segundo Guarinelo, a festa unifica a partir de suas próprias regras e códigos de conduta, mas também diferencia. É possível dizer que cria uma espécie de unidade diferenciada que aglutina extremos aparentemente contraditórios numa prática lúdica ao mesmo tempo de cooperação e competição.

Na visão de Guarinelo, resumindo, a festa implica numa produção social que subentende um trabalho com custos, planejamento, hierarquias e funções envolvendo uma participação coletiva que se legitima e conseqüentemente de-fine suas regras.

Em outra direção, para Duvignaud nenhum regulamento sobrevive nas festas, pois não será obedecido e nenhum ideal conseguirá se fixar. No momento em que a festa se instaura se apoderando de um determinado espaço, é estimulada à digressão e o homem se vê diante de um mundo sem “códigos” num reinado do desregramento. Segundo o autor é nesse momento que a festa se torna o instrumento para a comunidade alcançar a sua finalidade última: o mundo reconciliado a partir de um estado fraternal.

2 In JANCSÓ, Istven e KANTOR, Íris. Festa: Cultura e sociabilidade na América Portuguesa.V. II. São

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Se relacionarmos os dois posicionamentos conceituais sobre o fenômeno da festa e visitarmos o sentido da celebração na Antiguidade seria possível entender a festa de Guarinelo com um olhar apolíneo enquanto a festa de Duvignaud certamente só poderia ser apreendida sob as lentes de Dionísio. Enquanto Guarinelo privilegia a necessidade da obediência às regras e uma certa organização que implica acordos para o acontecimento, Duvignaud inverte essa razão apontando que é justamente o caráter da subversão ao estabelecido que promoverá a festa.

O Carnaval é considerado uma festa por excelência. Se tomarmos como exemplo para nossas conjecturas o carnaval baiano e suas transformações podemos melhor compreender as distinções propostas pelos dois autores. É inquestionável que o carnaval baiano deixou de ser o espaço da irreverência espontânea, da brincadeira inconseqüente e da farra coletiva. O que antes era a realização da vontade festiva descompromissada transformou-se em exibição no formato de uma espetacularidade produzida, permitida e controlada pelos órgãos oficiais do poder municipal e estadual. O atual carnaval baiano, profissionalizado e mercadológico, tornou-se um teatro vivo da sociedade, passarela da performance dos famosos e dos políticos. Tornou-se a vitrine de produtores, emissoras locais, nacionais e internacionais interessadas mais na exploração dos efeitos da “imagem lucrativa” que nos registros da festa em si.

Nessa nova realidade as entidades populares, para sobreviver, têm que se integrar e interagir com essa proposta de festa. Para tanto devem provar que têm um produto de valor, pois são portadoras legítimas das simbologias que dão a imagem e a digital local da festa. Tudo isso leva ao fenômeno contemporâneo de fortalecimento de uma cultura popular peculiar que, ao contrário das culturas de matrizes regionais tradicionais, supera os limites geográficos e se impõe como fenômeno planetário: a cultura midiática. Esta nova cultura veicula uma mentalidade e um conjunto de valores idênticos em qualquer parte do mundo, a serviço de uma indústria em expansão, a indústria cultural.

A festa passa a ser um novo e atrativo produto de mercado que impõe a todo momento a novidade e o inédito. Assim são introduzidas as técnicas que atingem a emoção e acionam uma lógica da diversão. Nesse sentido a festa é

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cooptada para o marketing que seduza e ative esse desejo criando uma necessidade não natural de consumir.

E é nesse momento que cabe refletir sobre as propostas dos autores de referência nesse artigo pensando o carnaval contemporâneo de Salvador. Estamos diante de um carnaval apolíneo ou dionisíaco? É um reflexo do cotidiano contemporâneo da mentalidade soteropolitana? É um evento que exclui ou inclui? Qual é a sua prática marcadamente lúdica? Quais são os elementos que determinam a cooperação e a competitividade? Onde é possível encontrar o espontâneo, a brincadeira, a descontração e a farra? Onde a diversidade está estimulada? Onde há digressão e a quais códigos e padrões?

Mas, seja lá como for, a festa é sempre presencial e é renovação. Citando Huizinga (2004, p. 222) em tempos contemporâneos, “o jogo se transforma em negócio” e, porque não os negócios se transformam em jogo. Essas são apenas conjecturas acadêmicas que estão ao largo da festa. E vale lembrar que muitas vezes o que é festa para uns pode não ser para outros, mas indubitavelmente todos sabemos o que é uma festa.

Bibliografia:

DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará; Rio de Janeiro Tempo Brasileiro: 1983.

GUARINELLO, Norberto Luiz. Festa Trabalho e Cotidiano. In: Jancsó, Istvan e Kkantor, Íris Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. V.II. São Paulo: Hucitec; Editora Universidade de São Paulo/ Fapesp: Imprensa Oficial, 2001.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Trad. João Paulo Monteiro. 5ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

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A TRADIÇÃO E A REINVENÇÃO EM UM OLHAR SOBRE A

FESTA DO CONGADO

Valeska Ribeiro Alvim3

Após a ocorrência da disciplina Etnocenologia que tem como linha mestra o estudo das práticas e dos comportamentos humanos espetaculares organizados, o Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA resolve nos agraciar, com mais uma disciplina voltada para as práticas espetaculares que se intitula Festas e Espetacularidade4 . Tal disciplina focaliza os fenômenos das práticas festivas, suas

formas de espetacularidade e suas funções sócio-culturais e civilizatórias.

Durante a disciplina, a partir das aulas expositivas, leituras dirigidas, seminários avançados e debates com convidados que têm vasto conhecimento no assunto, busquei abordar uma manifestação popular como exercício para compreender a espetacularidade5 ,como categoria filosófica, além de abordar

as questões da tradição e as reinvenções vivenciadas pelas manifestações populares na contemporaneidade..

O avanço desses estudos traz possibilidades alternativas para a investigação, fundamentação teórica e aperfeiçoamento dos processos criativos de alguns profissionais da área da dança. Muitos ainda têm como referencial o olhar eurocêntrico6 e, insistem em pensar e trabalhar as técnicas já codificadas

como, por exemplo, o Balé clássico, a Dança Moderna, como únicas representantes da linguagem da dança, o que muita das vezes acaba excluindo as outras formas cênicas.

3 Bacharel e Licenciada em Dança pela Universidade Federal de Viçosa (2006). Atualmente mestranda do

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.

4 Este texto foi produzido durante a Disciplina “Tópicos especiais em Artes cênicas -TEA 507” ministrada

pelos professores Lúcia Lobatto e Érico José.

5 De acordo com o professor Bião espetacularidade é “o que ultrapassa o universo rotineiro, que revela

rituais e os encontros inter-pessoais extraordinários ou extracotidiano”.

6 A tendência para julgar a realidade social, política, cultural ou antropológica de uma dada comunidade de

acordo com os critérios da cultura européia denota um ponto de vista eurocêntrico. A cultura da Europa torna-se o contexto de referência legitimadora e exclui qualquer realidade alternativa.

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Sob essa perspectiva de um corpo total7 , penso que a análise das formas

de produção e transformação das chamadas manifestações populares oferece uma alternativa para as práticas redutoras e tecnicistas sob as quais aqueles que se ocupam do oficio de dançar estão acostumados a pensar a dança e seu ensino. Tal abordagem, que se diferencia do etnocentrismo, requer a visão do corpo como algo simbólico dotado de pensamento, espírito e emoção, bem como do contexto histórico-social no qual está inserido.

É sob esse enfoque que me proponho a pensar o congado como uma das manifestações de cultura popular que possibilitam um olhar acerca da espetacularidade.

Antes de adentrar na manifestação em questão, teço inicialmente algumas considerações sobre o uso do termo festa. Empreendo, em seguida, a festa do Congado tal como é experienciada pelos congadeiros de São José do Triunfo, município de Viçosa, Minas Gerais.

Mas afinal o que é uma festa? Para Norberto Luiz Guarinello (2001, p. 969), o caráter vago desse termo pode reunir uma série de entendimentos que se chocam: Os sentidos que o próprio senso comum atribui à festa são desta forma, bastante fluidos, negociáveis e contestáveis. Segundo o autor, a festa é parte do cotidiano de todas as sociedades humanas, necessária a esse cotidiano sendo, portanto, algo integrado e não adverso a ele.

Na tentativa de entender esse termo, geralmente tratado de forma imprecisa, Guarinello aponta algumas características sob as quais a festa costuma ser circunscrita. Entre elas, está o fato de que implica uma determinada estrutura social de produção; envolve a participação concreta de um coletivo, distribuindo-se dentro de uma determinada estrutura de produção e de consumo da festa, na qual ocupam lugares distintos e específicos; aparece como uma interrupção do tempo social, uma suspensão temporária das atividades diárias que pode ser cíclica, ou episódica; articula-se em torno de um objeto focal, que pode ser um ente real ou imaginário; por fim, segundo o autor, a festa é uma

8 Não dualista, ou seja, que não vê o corpo como algo separado da mente, não eurocentrica, um corpo

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produção social que pode gerar vários produtos, tanto materiais como comunicativos ou, simplesmente, significativos.

A conclusão de Guarinello é que a festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, coletiva e que se dá num tempo e espaço definido e especial. Tal definição assemelha-se, como admite o próprio autor, ao caráter do jogo. Johan Huizinga (1996, p. 25) também atribui uma estreita relação entre jogo e festa:

Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois também a festa pode ser séria. Ambos são limitados no tempo e espaço. Em ambos encontramos uma combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o jogo têm em comum suas características principais. O modo mais íntimo de união de ambos parece poder encontrar-se na dança.

O caráter espetacular da festa está presente em suas características principais, tais como sua organização coletiva e o rompimento do cotidiano num tempo/espaço. Para Pradier (1997, p. 02), por exemplo,

O adjetivo espetacular designa uma variável intermediária que se refere a um modo especifico de tratamento de informação sen-sorial, quando a intensidade de um objeto percebido contrasta em relação ao ambiente. (...) a palavra “espetacular” só existe para nós sob a forma adjetival, enquanto que “espetáculo” designa um objeto finito.

Mendes (2000, p. 80) chama atenção para o fato de que uma abordagem etnocenológica sobre manifestações populares abre a possibilidade para numa nova visão do corpo humano que pode contribuir para as práticas cênicas: O corpo como atividade simbólica, cujas dimensões físicas, somáticas, cognitivas, emocionais e espirituais interagem entre si e com o contexto cultural no qual ele se insere.

A festa do congado

O congado tem uma origem luso-afro-brasileira, uma vez que a devoção dos negros a Nossa Senhora do Rosário foi introduzida ainda na África pelos

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dominicanos8 no final do século XV, ao fornecer elementos europeus como

estratégia de dominação religiosa. A Igreja no Brasil, por sua vez, desde o início da colonização reforçou essa crença, enquanto os negros juntaram esses elementos aos rituais que sempre permearam a cultura africana para dar formato e brilho à festa. Logo, o que conhecemos hoje como Congado é resultado do sincretismo entre a religiosidade africana, portuguesa e, mais tarde, brasileira. Como confirma Souza (2002, p. 179):

(...) foi na América portuguesa que a eleição de reis negros e suas comemorações festivas esteve mais difundida, existindo comprovadamente desde o início do séc. XVII, ganhando força no XVIII e ocorrendo ainda hoje em várias localidades brasileiras.

Câmara Cascudo (1993, p. 44) ratifica o pensamento de Souza ao explicar essa questão: de formação afro-brasileira, em que se destacam as tradições

históricas, os usos e costumes tribais de Angola e de Congo, com influências ibéricas no que diz respeito à religiosidade.

Os processos históricos de sua formação e a religiosidade vivenciada no Congado evidenciam a devoção a Nossa Senhora do Rosário.

O início de toda essa devoção dos negros africanos a Nossa Senhora do Rosário se atribuiu à lenda, em suas muitas variantes transmitidas de geração a geração, nas mais diversas versões regionais, tendo como a mais recorrente das histórias a que conta o aparecimento inesperado da imagem de uma Santa no mar que, imediatamente, foi levada pelos brancos para uma capela, construída pelos escravos na qual, ironicamente, não podiam entrar.

A Santa, que logo recebeu preces por parte dos brancos, não ficava na capela e por várias vezes voltou ao mar.

As várias tentativas de mantê-la na capela e a decepção com sua volta sucessiva para as águas, fazem com que os brancos rendam-se à insistência dos negros e permitam que eles rezem para imagem. A reza se dá quando um moçambiqueiro9, segundo narra a tradição oral, acompanhado de seu tambor de

8 Frades da Ordem São Domingos.

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ritmo vibrante, vai até a Santa e, então, dança com seus pés descalços enquanto reza em forma de canto, num tom que revela fé e humildade. A imagem, conforme reza a lenda, então se movimenta nas águas e os acompanha para nunca mais voltar. É a partir dessa crença em Nossa Senhora do Rosário que, tradicionalmente, no mês de outubro, os devotos realizam a cerimônia do Congado. As manifestações possuem particularidades, de acordo com cada região que acontece, que podem envolver as cores da farda, do capacete, a organização espacial, os ritos, os instrumentos, o modo como desenvolvem suas seqüências coreográficas. Deste modo, é de extrema necessidade que sejam aqui colocadas as particularidades relativas ao Congado de Nossa Senhora do Rosário de São José do Triunfo, localizado na Zona da Mata mineira.

O Congado apresenta um caráter religioso e ritualístico, realizado na comunidade, nos meses de maio e outubro, sendo organizado espacialmente em forma de préstitos, cortejos. No dia da festa, os congadeiros reúnem-se em duas filas, o Rei Congo, a Rainha Conga, o Rei e a Rainha de compromisso, os Anjos, o Reinado, o Rei do Meio, o Príncipe e a Princesa, estes últimos permanecem durante a organização da fila, ocupando o corredor interno.

A indumentária desta festa está correlacionada à imagem da santa padroeira, ou seja, a fila do lado direito usa o saiote e o capacete rosa que correspondem à cor da veste da santa; a fila do lado esquerdo usa o saiote e capacete azul correspondentes à cor da manta. Por baixo da roupa, os congadeiros usam blusa de manga comprida, calça e sapatos brancos.

A programação dura três dias, começando na sexta-feira e indo até o domingo, com cantos, dança coroação de seus reis e rainhas, príncipes e princesas, banquetes, missas e fogos de artifício. Um ritual coletivo que reúne em sua prática tradicional todos os elementos que marcam o caráter da festa como um ato espetacular de ressignificação do cotidiano.

Da Matta (1990, p. 24), acredita ser de grande importância uma investigação dos rituais coletivos por proporcionarem a reprodução de valores culturais e, ao mesmo tempo, reapresenta e discute distinções hierárquicas presentes no cotidiano da sociedade:

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É como se o domínio do ritual fosse uma região privilegiada para se penetrar no coração cultural de uma sociedade, na sua ideologia dominante e no seu sistema de valores. Porque é o ritual que permite tomar consciência de certas cristalizações sociais mais profundas que a própria sociedade deseja situar como parte dos seus ideais–eternos.

Em Minas Gerais, onde acontece a maioria dos festejos do Congado, a dominação colonial esteve intimamente vinculada às ações missionárias católicas no empreendimento colonial português. A significativa quantidade de irmandades leigas de "homens pretos", formadas por escravos, negros e alforriados que se estruturaram em torno de alguns santos, foram utilizadas pelo sistema escravista como mecanismo de controle, ao mesmo tempo, as irmandades foram um meio pelo qual os negros puderam vivenciar aspectos de sua cultura, demonstrando elementos de sua concepção de mundo e proliferando certos rituais africanos, como alguns dos elementos que compõem as celebrações dramatizadas em Minas Gerais, revestindo a vivência do sagrado em um importante identificador de resistência cultural.

A convivência dos elementos sagrados e profanos foi uma das características mais marcantes das irmandades. A justificativa para a existência das mesmas, muitas vezes se pauta na afirmação de que elas eram as únicas responsáveis por proporcionar um enterro cristão a negros, que na grande maioria das vezes eram abandonados pelos seus senhores na hora da morte. Portanto, desde a chegada em nossas terras, essas irmandades foram reconhecidas como uma forma de afirmação cultural.

Desta forma, pode-se concluir que desde a colonização, a manifestação cultural popular tradicional vem sofrendo inúmeras adaptações e descontinuidades no que diz respeito à estrutura ritual, por se tratar de uma prática dinâmica, não estática e imutável, que está em constante interação com outros tipos de eventos, sejam eles sociais ou culturais: Não existem culturas inteiramente isoladas e paradigmaticamente fixadas, numa relação de determinismo histórico, a classes inteiras – embora existam formações culturais de classe bem distintas e variáveis. (HALL, 2003, p. 262).

O Congado é considerado uma tradição porque, através da transmissão oral de lendas ou narrativas, repassa valores e crenças de geração em geração.

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O termo tradição constantemente relacionado com o antigo, o resistente, o herdado vem do latim tradere, e quer dizer “trazer”. Buscar de uma época passada e trazer para a contextualização atual, ou seja, o campo das tradições abarca práticas que possuem seus significados primeiros em lugares do passado, mas que se relacionam de forma intercambiável com o presente, adaptando a prática tradicional a um contexto histórico atual.

Hobsbawm (1997) afirma que as tradições vão sendo inventadas e reinventadas, na intenção de preservarem certa conservação em relação ao passado diante das constantes transformações do presente. Sendo assim, muitas alterações no conteúdo das práticas culturais tradicionais se fazem necessárias como forma de reorganizar os sentidos, o que, de certa forma, explica a dinamicidade e reinvenção cotidiana de manifestações da cultura popular. Por exemplo, no Congado, também é possível perceber o diálogo dessas práticas com a atualidade sem deixar de ser vista como referência de memória, embora abra mão de determinados aspectos por muito tempo conservados e agrupem outros contemporâneos.

Na mesma esteira de pensamento de Hobsbawm, a autora Vicente (2005, p. 78) coloca que sobreviver e resgatar são palavras cotidianas quando

se fala em cultura popular e, que o uso delas demonstra um desejo que a manifestação permaneça e, ao mesmo tempo uma descrença de que aquela cultura resistiu até os dias de hoje.

A atualidade, com seu ritmo acelerado, permitiu algumas mutações nas tradições, mas não extinguiu o desenvolvimento das culturas tradicionais, apenas as deixou mais sincréticas, menos cerradas, mais provocativas em seus significados e significantes.

Nesse sentido, interessa salientar a questão da temporalidade evocada nessas práticas culturais. Elas adquirem um caráter não linear, onde passado, presente e futuro se interconectam a todo o momento. A manifestação do congado rememora, no presente, práticas culturais e realidades sociais passadas que, possivelmente no futuro, estarão em constante modificação.

As manifestações culturais populares tradicionais trazem uma recorrente ponte transformadora entre passado e presente. Pensamento que remete à

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perspectiva apontada por Simson (2004) que afirma que ao compartilhar a memória os indivíduos constroem uma sólida ligação, baseada em uma bagagem cultural comum, usando os “óculos do presente” e experiências passadas, para então construir um gancho bem alicerçado para ações futuras.

E é nesse ato de compartilhar memória, que o aprendizado vai se dando nas manifestações culturais, como tão bem coloca Falcão (2002, p. 52):

Todas as formas de arte (canto, dança, música) na tradição africana possuem o mesmo processo de aprendizagem, ou seja, um processo iniciático que ocorre desde a infância, imitando-se os mais velhos. A aprendizagem está fundamentalmente ligada ao aspecto religioso, o religare, em que os conteúdos culturais são transmitidos de geração a geração.

O que se apresenta no trânsito entre gerações fica nítido nos corpos dos manifestantes, os brincantes congueiros vivem a memória do que há muito tempo foi vivido por seus antepassados. O Congado representa uma maneira única dos integrantes se relacionarem com o seu corpo, memória viva de uma manifestação de resistência cultural e fé.

Comumente as pesquisas acerca dessas manifestações populares, não levam em consideração esse corpo simbólico, que de acordo com Ektin (2000) é aquele marcado pelo significante, isto é, um corpo conhecido pelo outro, que está presente em seu discurso, que o nomeia e o caracteriza, fica limitado a um relato de vestimentas, ritmos, cores do momento festivo, deixando, muitas das vezes, de retratar a valorização do passado coletivo, as formas orais de transmissão dos saberes, a vivência da tradição no cotidiano, e o vínculo constante com o sagrado.

O olhar sobre o Congado, levando em consideração esses elementos, possibilita uma nova abordagem sobre a manifestação e principalmente sobre sua transmissão. O ensino dos vários elementos que compõem tal manifestação difere da prática acadêmica que, sob a perspectiva eurocêntrica, desfacela o corpo através das técnicas montadas a partir de uma visão unicamente anatômica e física.

Muitas vezes um brincante, integrante de um folguedo como o Congado, que cresceu fazendo parte daquela manifestação, ao levar as questões da festa

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para o universo acadêmico, preocupado em desenvolver uma pesquisa reconhecidamente científica, acaba por desenvolver um trabalho que é estranho tanto para o seu universo de origem como para a própria academia. O resultado é a descaracterização do próprio objeto de estudo e a conseqüente questão sobre as razões e objetivos para tal abordagem.

Esse olhar crítico, sobre os fenômenos cênicos, vê as manifestações além da mera descrição, portanto, é a tentativa de contribuir para o ensino dessas manifestações cênicas no universo acadêmico, levando em conta esse corpo simbólico. Uma abordagem assim, num universo ainda tão marcadamente europeu, pode realizar com maior propriedade pesquisas sobre as manifestações populares, pois, exige que conceitos eurocêntricos sejam revistos e redimensionados.

A disciplina apresentou-se como um convite, uma possibilidade de discutir e buscar caminhos para a compreensão das inquietações a respeito da

espetacularidade, provocando questões a respeito da tradição, da conservação

e do novo, bem como da existência múltipla de entrelaçamentos que relacionam o acadêmico com a cultura popular.

Em consonância com este pensamento enfatiza Vicente (205, p. 22) acerca dos estudos das manifestações: (...) mais do que um objeto de estudo, ele se

apresenta principalmente como uma posição a partir do qual é possível enxergar as relações simbólicas contemporâneas por vários ângulos.

Pensando assim, e ciente que o caminho não está concluído, pelo contrário, está sendo construído e que o ato de construí-lo modifica tanto quem o exerce quanto o produto final que se apresenta, espero que esse GIPE-CIT produzido a partir da disciplina Festas e Espetacularidade seja o primeiro, de muitos diálogos que emergem desse olhar que se engendrou enquanto discurso cientifico e acadêmico para os fenômenos cênicos.

Bibliografia:

BIÃO, A. theatrelité et spectacularité.Une aventure tribale comtemporaine à Bahia. Tomo I,tese de doutorado, Michel Maffesoli, Universidade Paris V, 1990,p.127.

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CASCUDO L. C. Dicionário do folclore brasileiro. 10ª ed. edição ilustrada. São Paulo: Global, 2001.

DA MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1990.

ETKIN, G.E. O Corpo da Psicanálise. In. Cabeda, S.T. L(org) O corpo ainda é pouco. II Seminário sobre contemporaneidade. Feira de Santana: NUC/ UEFS.2000

FALCÃO, E. F. Metolodogia da mobilização coletiva e individual. João Pessoa: Editora da UFPB, 2002. P.28-97.

GUARINELLO, N. L. Festa, Trabalho e Cotidiano. In: Istvan Jancso; Iris Kantor. (Org.). Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: EDUSP/HUCITEC, 2001, v. 2, p. 969-975.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 9ª. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (orgs). Introdução: a invenção das tradições. In: A invenção das tradições. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

HUIZINGA, J. Homo Ludes: o jogo como elemento da cultura.Trad.João Paulo Monteiro.

MENDES, E. B. B. Um abraço da etnocenologia no popular brasileiro. In: I Reunião científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2000, Salvador. Memória ABRACE II - Anais da I Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Salvador: ABRACE,2000. p. 79-84.

PRADIER, J. M.. “Etnocenologia: a carne do espírito”. Trad. Armindo Bião. Paris, 1997.

SOUZA, M. de M. Reis Negros do Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

VON SIMSON, O. R. de M.. Memória, cultura e poder na sociedade do esquecimento. In: Revista da Faculdade de Educação e Centro de Memória da Unicamp. São Paulo, 2004.

VICENTE, A. V. Maracatu Rural: o espetáculo como espaço social. Recife: Ed. Associação Reviva, 2005 •.

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REZAR, CANTAR E FESTAR — HOMENAGEM À SENHORA

DO ROSÁRIO:

pontuações sobre a Congada em Uberlândia/MG

Ana Maria Pacheco Carneiro10

De março, quando em geral os rosários são abertos, até meados de novembro, quando então os reinos se recolhem e se fecham, os tambores cantam em Minas e guiam pelas ruelas e pelos asfaltos, pelas capelas e Igrejas do Rosário, pelos quintais, as nações do congo que, com seus reis e rainhas, seus capitães e marinheiros, rematizam a África em terras das Américas. (MARTINS, 1997)

Ao som do tambor, Tá caindo fulô

Conheci o Congado11 em 2002, quando fui trabalhar no Curso de Teatro

da UFU, Uberlândia/MG. Apesar das diversas informações recebidas sobre a festa, fui surpreendida uma tarde pelo som de tambores que soavam ainda longe e, depois, cada vez mais perto. Um som forte, com uma cadência marcada — o som de um Terno de Congo que iniciava o período de rezas do terço e leilões, preparando-se para mais uma Festa em homenagem a Senhora do Rosário.

Durante quarenta dias, o mesmo deslumbramento aconteceu. Em alguns deles, cheguei a ver o Terno: roupas cotidianas, simples, cerca de 30 pessoas —

10 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da UFBA; Professora

efetiva do curso de teatro FAFCS/UFU.

11 De origem africana, principalmente das áreas do Congo, Angola e Moçambique, onde vivia o povo bantu,

o Congado é uma manifestação cultural católica e africana, que surge a partir da devoção à Senhora do Rosário, disseminada pelos portugueses em suas conquistas. Devoção reforçada no Brasil, a partir do século 18, quando os negros, utilizando-se das formas rituais cristãs — única forma de conviver com seus mitos ancestrais —, reforçaram o culto e a festa. Origens lendárias também explicam o surgimento do congado: a lenda de Chico Rei e a história da aparição de Nª Sª na linha do mar. www.uberlandia.gov.br; visitado em 21/11/2006.

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homens, mulheres, crianças e adolescentes que se dirigiam a alguma das casas do bairro, cumprindo os rituais que todo ano se repetem.

Depois, chegou a Festa: o desfile dos Ternos, as danças e a música, símbolo marcante da Festa do Congo

Olha São Benedito é o santo! (bis) Viva Nossa Senhora do Rosário! (bis) Senhor capitão, onde me mandá eu vou (bis) No palácio da Rainha nasceu um gai de fulô (bis)

Tá caindo fulô, eh, eh Tá caindo fulô, eh, a! Lá no céu, cá na terra

Eh, tá caindo fulô Lá no céu, cá na terra

Eh, tá caindo fulô

Lá na rua de baixo, lá no fundo da horta (bis) A polícia me prende, olêlê, a Rainha me solta (bis)

Tá caindo fulô, eh, eh Tá caindo fulô, eh, a! Lá no céu, cá na terra

Eh, tá caindo fulô12

Junto a tudo isso, a transformação da própria Uberlândia com a festa — o surgimento de uma cidade alegre, colorida e negra13 . Uma cidade não adivinhada,

ainda, por entre o burburinho cotidiano das movimentadas ruas de seu Centro ou das vazias e solitárias ruas do bairro de classe média em que moro.

Para mim, vinda do Rio de Janeiro, foi um reencontro com a energia das festas de rua, seus barulhos e sons; os cheiros das barracas de comida, os risos,

12 Congo cantado nas festas de São Benedito e Nª Sª do Rosário. Gravações: Dércio Marques e Doroty

Marques (Álbum “Monjolear”); Luis Dillah e Pena Branca, com vocal de Vagamundo e Luiz Salgado (Álbum “ Cantigas do Cerrado”).

13 Os festejos são realizados por afrodescendentes, que constituem 42% da população da cidade. Entretanto,

esse enorme contingente passa despercebido no cotidiano de Uberlândia, só se revelando por ocasião da Festa.

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as falas e os olhos vivos, brilhantes de um povo cuja presença não se faz tão determinante no cotidiano da vida na cidade. Um povo que, nesse dia, como verdadeiro Rei Congo, domina aquele espaço.

Durante esses anos, tenho ouvido os tambores, visto a festa e apreendido algumas poucas informações que me trazem a compreensão do quanto me encontro realmente “no começo do princípio do início de algum conhecimento sobre o congado. (...) que devo estar sabendo quase nada, principalmente do essencial que é a vivência da fé em N. S. do Rosário pelos congadeiros...”14

O Santo e A Senhora: o Juizado de São Benedito e o Reinado de

Nossa Senhora

“Isso vem do começo do mundo” — assim se referem os devotos às “festas de santo de preto” que, identificadas com o tempo das origens de rituais de negros, são sempre associadas ao que pode haver de mais antigo, legado imaterial ao mesmo tão presente e tão distante relacionado “à crença no santo, à fé na festa e à tradição dos festejos.” (BRANDÃO, 1978, p.65)

Considerados como os grandes protetores do povo negro, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário recebem anualmente as devidas homenagens dos congadeiros. O Juizado de São Benedito15 acontece em abril ou maio, próximo

à Festa do Divino, — realizada no Domingo de Pentecostes, que geralmente “cai” em maio ou junho — e, juntamente com ele, abre o grande ciclo de “festas de santo”: Santo Antonio, São João, São Pedro, que se encerra em outubro, com o Reinado de Nossa Senhora do Rosário.

Segundo a tradição, São Benedito era escravo na África; bom cozinheiro, nunca atrasava o almoço. Os senhores, só para vê-lo atrasar, mandavam-no buscar as rezes no mato; mas ele ia, voltava e o almoço saía na hora certa e

14 Frei Chico, Congados: origens e identidade. http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/

congadorigem.htm ; visitado em 21 nov. 2006.

15 Os congadeiros explicam o Juizado de São Benedito pelo fato de as cabeças de seu cortejo não serem

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sempre saboroso. Dizem ainda, que era um homem negro muito inteligente, o que os senhores não aceitavam e, por isso, terminaram por queimá-lo vivo. Por suas qualidades, o santo está sempre presente na Festa de Nossa Senhora, pois enquanto a Senhora comanda a festa, ele comanda a cozinha.

Em Uberlândia, realizado num bairro da periferia da cidade, o Juizado se constitui ainda como uma festa “pequena”, apesar do incentivo que vem recebendo, principalmente por parte dos congadeiros e do pároco atual. Assim, a Festa de Nossa Senhora do Rosário, considerada como de responsabilidade da Irmandade16 que leva o seu nome, é realmente a grande “festa de santo” da

cidade.

É ela ainda, a propiciadora da grande transformação do espaço urbano quando, pelo breve período de sua duração, coloca em primeiro plano a população afrodescendente, ainda hoje rejeitada pela elite local.

Em entrevista a Brasileiro (11/03/2006), João Rodrigues (vulgo Bolinho), 65 anos, morador do Bairro do Patrimônio, local reconhecido como o mais antigo ponto de concentração de negros na cidade de Uberlândia, aponta barreiras sociais explícitas existentes na cidade, ainda na década de 60, quando a subida da Av. Afonso Pena (uma das principais avenidas da cidade) era dividida: do lado direito, os bares e confeitarias freqüentados pelos brancos; do lado esquerdo, a calçada destinada aos negros, que não podiam entrar naqueles locais. “Mesmo no Uberlândia Clube eles não aceitavam negros, nem para lavar banheiro”, acrescenta ele. (BRASILEIRO, 2006, p.11)

Se hoje as barreiras não são tão explícitas, reclamações e grosserias praticadas contra os congadeiros atestam, ainda hoje, um grau bastante elevado de rejeição às atividades culturais e religiosas praticadas pelos negros.

16 A Irmandade de Nª Sª do Rosário de Uberlândia data, conforme seu livro de Atas, de 01 de Novembro de

1916, quando foi oficialmente instituída, com a presença de 25 irmãos fundadores (Brasileiro, 2006). As primeiras Irmandades de Nª Sª do Rosário dos Pretos, assim como as Irmandades de São Benedito no Brasil datam possivelmente de anos não muito posteriores à chegada dos primeiros escravos para as lavras de ouro. Seus livros de Atas, guardados na Igreja, possuem referências importantes sobre seus participantes, quantias arrecadadas e gastos feitos. (Brandão, 1978:147, nota 69)

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O movimento do Congado na região começou por volta de 1876, quando os negros reuniam-se nas beiras do Rio das Velhas (Olhos D'água) — região do distrito de Santa Maria (atual Miraporanga) e do arraial de São Pedro do Uberabinha (atual Uberlândia) —, e saíam "batendo caixa", numa festividade ainda sem ordenação sistemática.

Com o passar dos anos, a Festa do Congado passou a ser comemorada na própria cidade17, sempre no último domingo do mês de outubro, quando

aconteciam, simultaneamente, a Festa da Irmandade dos Homens Pretos na Igreja do Rosário, e a festa dos brancos na Igreja Matriz. A partir de 1917, entretanto, os padres acharam por bem mudar o dia da festa dos negros, que passou a se realizar no segundo domingo de novembro18 . Apenas em 2003, quando um novo

pároco entendeu que a festa devia retornar para o seu tempo “certo”, ela voltou a ser comemorada a partir do segundo domingo de outubro19.

Disseminada pelo interior dos estados de Minas Gerais20 , Espírito Santo,

São Paulo, Goiás, a Congada apresenta-se sob diferentes formatos. Em alguns lugares, está relacionada à escolha e coroação do Rei Congo e de sua Rainha; em outros, acrescentam-se ainda aspectos de luta entre o Bem, representado pelos cristãos e o Mal, representado pelo grupo de mouros. Trajados respectivamente de azul e vermelho, nas movimentações simbólicas de

17 Conta-se que os negros chegavam das fazendas em carros de bois e se agrupavam debaixo de uma

grande árvore, no campo onde hoje se encontra a principal praça da cidade, a Praça Tubal Vilela. Depois, seguiam por uma trilha até a Capela de Nª Sª do Rosário, e ali realizavam a Festa. Em princípios de 1891, foi proposta a construção, na atual Praça Rui Barbosa, da segunda Capela. Ampliada em 1931, foi tombada e restaurada (1987-1988) e hoje, como Igreja de Nª Sª do Rosário, pertence ao Patrimônio Cultural da cidade. www.uberlândia.gov.br; visitado em 21/11/2006.

18 As trocas de datas da comemoração feita pelos negros envolvem questões conflituosas, relacionadas

a preconceitos sociais que remontam às origens da cidade, quando a comunidade branca realizava sua comemoração de forma mais discreta, com novenas e missa na catedral, quermesses, leilões e barraquinhas. A festa dos negros, ruidosa, com desfiles, som de tambores e danças não era bem recebida pela elite da cidade. Ainda hoje essas questões perduram e muitas vezes causam conflitos entre os quartéis de Congo e as comunidades onde estão inseridos.

19 Em depoimento registrado em 05/10/2003, o pároco Olimar Rodrigues justificou a mudança como uma

“tentativa de trazer novamente a união da liturgia com a manifestação popular”, afirmando ainda que a decisão fora tomada em conjunto, em assembléia que contava com a presença de todos os capitães dos Ternos e do Presidente da Irmandade. (cf Brasileiro, 2006:39)

21 De acordo com o Atlas de festas populares de Minas Gerais, atualmente existem no estado 326 Festas

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embaixadas e cantos, os cristãos sempre vencem os mouros, que são, por fim, batizados.

Em Uberlândia, a Congada consta principalmente do cortejo dos Ternos de Congo — apesar de ter inseridos, em seu interior, outros momentos rituais — , momento em que a

voz dos tambores dos moçambiques (...) remont[a] aos tempos de vida dos escravos africanos na colônia brasileira, quando negros então cristianizados introduzem disfarçadamente, na formação desses grupos, todas as suas vivências do antes e do após as travessias no Atlântico.21

Participante e pesquisador das Congadas, Jeremias Brasileiro, morador de Uberlândia, assim expressa sua compreensão sobre elas:

As Congadas são muitas coisas, principalmente um costume cultural que propicia aos praticantes continuar mantendo um elo de ancestralidade com uma África Memorial. Vinculados a um grupo étnico e social de feições catolicistas, os congadeiros procuram em seus festejos cíclicos reafirmar sua identidade com esse costume cultural tão presente em expressiva parte da população afrodescendente, em especial, nas cidades de Minas Gerais.22

Contando com um número variado de componentes — os Congos e Ternos são geralmente compostos por cem pessoas, enquanto os Moçambiques possuem aproximadamente quarenta pessoas —, os Congos têm uma estrutura rígida e clara: o general ou comandante, o dono do Terno, é quem possui a patente, a permissão para o grupo existir; os 1°, 2° e 3° capitães são responsáveis pela organização do terno; o guarda ou fiscal é o zelador dos instrumentos e das crianças nas ruas; alferes são os soldados que puxam as filas; são caixeiros de frente os tocadores de caixa que fazem evolução na porta da Igreja; e os soldados completam o terno.

Alguns Ternos possuem, ainda, o grupo das "Virgens do Rosário" que, comandado pela madrinha do Terno, carrega um ou dois estandartes na frente do

21 Brasileiro, Jeremias. Um reinado que persiste com seu jeito congadeiro de festejar. Artigo. 2005.. http://

www.uberlandia.gov.br, visitado em 21/11/2006.

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cortejo. Formado por onze meninas, de acordo com a tradição todas elas devem ser virgens, como símbolo de pureza e devoção a Nossa Senhora do Rosário.

O estandarte, com a imagem votiva, é geralmente ornamentado com fitas, seguras pelas virgens. Faz parte, juntamente com o mastro votivo, dos elementos simbólicos do ritual da Congada.

Levantado no início das festividades da manhã de Festa, o mastro votivo simboliza a união entre Terra e Céu, vivos e mortos, corpo e alma. A força dessa simbologia faz com que ele caracterize o centro energético da Festa, em torno do qual os Ternos dançam e recriam laços ancestrais. Aquele que toca e beija o mastro terá muita sorte e receberá muitas graças.

Em Uberlândia, são levantados mastros em homenagem a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, durante ritual em que as guardas entoam cantos, pontuando os movimentos dos congadeiros.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário: Um Reinado que Persiste

No segundo domingo de outubro, desde cedo, a movimentação na cidade já é grande: o som dos tambores se junta a cantos no interior de algumas casas; homens de chapéus com fitas, bordados ou com coroas na cabeça, trajes coloridos; mulheres com suas mais lindas roupas, elegantes, o largo sorriso estampado no rosto; crianças e adolescentes paramentados com óculos escuros, os jovens com suas cabeças raspadas, as moças com tranças e contas ou flores nos cabelos — são capitães do Congo, integrantes da Congada, devotos que se preparam para a festa.

A cada um deles, independentemente de qualquer ação mais direta que nela possam exercer, caberá como tarefa nesse dia: rezar e cantar; praticar atos de fé em momentos rituais; comer e beber do que simbolicamente se oferece; deixar-se envolver pelo “espírito da festa”, com disposição para “festar”.

É principalmente essa disponibilidade que dá o tom da festa, abrindo espaço para o riso e para a alegria. O ambiente é, portanto, mais festivo-religioso do que contrito-religioso. É de maneira lúdica, em que não falta o riso e a descontração, que todos distribuem, ao mesmo tempo, suas obrigações para com a festa e as alegrias a retirar dela.

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Abarcando um período maior que o de sua realização propriamente dita, pode-se dizer que a festa, em seu todo, consta de um antes, um durante e um depois.

O Antes:

Quarenta dias antes da data, têm início as campanhas, destinadas a arrecadação de recursos. São visitas a residências, onde se reza o terço e faz-se o leilão de prendas. Diariamente elas acontecem; a imagem da Santa é levada a uma casa previamente contatada, em longas caminhadas pelas ruas da cidade, muitas vezes atravessando de um bairro a outro, sempre ao som dos tambores de Congo.

O dinheiro arrecadado servirá para os preparativos da festa: conserto de instrumentos, renovação do estandarte e das vestimentas. Algumas famílias costumam também, em lugar do leilão, fazer doações de cestas básicas, que podem ser vendidas pelo grupo ou ainda contribuírem para a comida da festa.

Nove dias antes desta, é realizada a Novena a Nossa Senhora, na Igreja do Rosário; após a novena, diariamente, na porta da Igreja, são realizados os últimos leilões, cuja arrecadação é dividida, a cada dia, entre grupos previamente designados23.

No sábado à noite e no domingo, as guardas convidadas, vindas de outras cidades e estados, começam a chegar.

23 São em número de 24 os ternos de congo em Uberlândia: 1 Congo Camisa Verde, B. Aparecida; 2

-Catupé Nª Sª do Rosário, B. Dona Zulmira; 3 - Marinheiro de Nª Sª do Rosário, B. Sta Mônica; 4 - Congo Sainha, B. Sto Inácio; 5 - Marinheiro de São Benedito, B. Tibery; 6 - Moçambique de Belém, B. Sta Mônica.; 7 - Moçambique Pena Branca de Nª Sª do Rosário, B. Canaã; 8 - Moçambique Princesa Isabel, B. Patrimônio; 9 Terno de Congado Sta Efigênia, B. Brasil; 10 Azul de Maio, B. Roosevelt; 11 -Moçambique do Oriente, B. Roosevelt; 12 - Congado Congo Branco, B. Tibery; 13 - Terno de Catupé Azul e Rosa, B. Sta Mônica; 14 - Amarelo Ouro, B. Saraiva; 15 - Verde e Branco, B. Pampulha; 16 - Rosário Santo, B. Aparecida; 17 - Moçambique Estrela Guia, B. São Jorge; 18 - Moçambique de Angola Nª Sª do Rosário e São Benedito, B. Daniel Fonseca; 19 - Congo São Benedito, B. Tibery; 20 - Congo Prata, B. Martins; 21 - Moçambique Guardiões de São Benedito, B. Sta Rosa; 22 - Congo São Domingo, B. Planalto; 23 - Beiramar de São Benedito, B. Morumbi; 24 - Moçambique Raízes, B. Patrimônio.

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O durante:

A festa propriamente dita realiza uma confraternização dos ternos, com desfile pela cidade, coroação dos novos festeiros e de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, procissão com as imagens dos Santos festejados e missa solene. É o momento em que a cidade realmente se transforma, com a presença maciça da comunidade negra em seu Centro vital.

A primeira atividade desse dia é realizada nos quartéis — sede de cada terno, localizados em diferentes (e muitas vezes longínquos) bairros da cidade, para onde se dirigem todos os componentes de cada grupo. É a cerimônia da Alvorada, realizada com a queima de fogos de artifício — a rouqueira — pelo comandante do terno e que marca o início dos festejos.

Em seguida, em cortejo, os Ternos de Congo, com banda de músicos formada por pífanos, violão, zabumba, caixa ou outro instrumento percussivo, encaminham-se para o ponto de concentração, no Centro da cidade24, a partir

do qual desfilam até a Igreja do Rosário, onde as imagens de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito abençoam seus fiéis, enfeitadas com flores e tendo a seu lado caixas ou cestos para recolhimento de oferendas.

Nesse momento, a Praça Rui Barbosa, onde se encontra a Igreja, já está tomada: são devotos que vieram pagar dívidas e promessas com os “santos pretos” ou simplesmente celebrar; moradores da cidade e de cidades vizinhas, que muitas vezes participam anualmente dos festejos; homens, mulheres — velhos, jovens, crianças — que em meio a barracas, ambulantes, mesas, sentados nos bancos e muretas da praça, vivem a alegria de encontros e reencontros, comem, bebem, conversam, namoram e brincam, enquanto assistem a passagem dos Congos.

Como um rio de fluxo contínuo, um a um eles penetram no espaço da praça — coloridos, vibrantes, com os tambores batendo ainda mais fortes — e, na frente da Igreja, se apresentam, entoando seus cantos e danças, que

24 A concentração é feita na Praça do Forum, junto ao Terminal Rodoviário Central; os desfiles ocorrem na

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obedecem a ritmos lentos ou mais apressados, homenageando seus protetores. Depois, seguem pela rua lateral, onde prestam homenagens aos representantes da municipalidade — Prefeito, Secretários, dentre os quais o de Cultura, representantes de entidades afro e demais autoridades locais e convidados, acomodados em palanque especial.

Como um rio de fluxo contínuo, um a um eles deságuam depois, na praça, os seus componentes, contribuindo assim para o crescimento da multidão que, por todo o dia, até o final da noite, ocupa esse espaço.

Já no meio do dia, o cortejo retorna, sempre ao som de toques de tambor, caixas e outros instrumentos, a seu quartel, onde não deve faltar uma “mesada de comida e bebida”. É um tempo de congraçamento, descanso e recuperação de forças dos integrantes de cada grupo, que entre comentários sobre o desfile, conversas cotidianas, músicas, risos, brincadeiras das crianças, alimentam corpo e espírito para a segunda parte de sua jornada festiva.

Às quatro horas, alguns grupos se dirigem às casas dos novos festeiros para levá-los à Igreja, onde serão coroados. Os cortejos retornam, marchando em direção à Igreja do Rosário. Mais uma vez os tambores soam pelas ruas da cidade. Depois de todos marcarem com cantos e danças sua presença, têm início as últimas atividades desse dia de festa: a coroação dos novos festeiros e a celebração dos rituais católicos: a procissão, com as imagens de São Benedito e Nossa Senhora e, no retorno desta, a celebração da missa, rezada pelo pároco.

O depois:

Na segunda-feira, no final da tarde, acontece a “entrega da festa”: os ternos se reúnem nos quartéis e novamente percorrem as ruas em direção à Igreja do Rosário, onde realizam a cerimônia de retirada dos mastros votivos, que são guardados no interior da Igreja, agradecem a todos que colaboraram com a realização da festa e, em sua porta, se despedem25.

25 Até o ano 2000, no encerramento da festa, era oferecido um lanche pela Secretaria Municipal de Cultura,

no espaço da Oficina Cultural, onde os capitães faziam cantorias em agradecimento ao apoio recebido pela Municipalidade. A interrupção desse lanche pela Secretaria, levou os Ternos a procurarem outros locais para reunirem-se após a festa, momento em que receberam apoio da Família Chatão, “a maior família de negros de Uberlândia”. (Fábio Vladimir Chatão, em entrevista a Brasileiro - 10/04/2004)

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O “jeito congadeiro de festejar”

É assim de maneira festiva e espetacular, que expressa uma forma de ser,

de se comportar, de se movimentar, de agir no espaço, de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar (...) distinta das ações banais do cotidiano (PRADIER in:

GREINER; BIÃO, 1998, p. 24), que os devotos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito celebram seus protetores.

É, portanto, a partir de uma resignificação de seu corpo — eixo de relação

com o mundo (...) e elemento mais importante do evento espetacular (...) porque é através dele e de sua energia vital que os demais elementos adquirem sua razão de existir (OLIVEIRA, 2006, p. 580) — que a disposição para “festar” se assenhora

de cada um dos participantes da Festa.

O corpo festivo é assim o elemento detonador do “espírito de festa” que, associado ao riso, permite o estabelecimento de um território a parte, onde não permanecem as questões cotidianas — mas que também não as elimina ou subverte — e onde cada um é parte integrante de um mundo em evolução.

BRANDÃO (1978, p. 65), ao analisar a Festa do Divino de Pirenópolis/GO, detecta o que define como os três componentes do discurso que traduz os

significados da festa: a crença no Divino, a fé na festa e a tradição dos festejos. Reunidos, oferecem uma interpretação completa da ideologia com que os participantes explicam sua festa e seu envolvimento pessoal nela.

Esses mesmos componentes são também perceptíveis na relação que se estabelece entre os congadeiros e a Festa de Nossa Senhora do Rosário: ela acontece para que o povo comemore sua crença na Santa, e isso se cumpre em qualquer um dos acontecimentos tradicionais que a compõe. Mas ela se faz também porque existe a fé na festa, no acreditar que a sua boa realização agrade e traga bons frutos, na forma de bênçãos e proteção da Senhora.

Em tal contexto, como acentua BRANDÃO (1978, p. 38-39), a aparência pessoal é investida, na festa, de alto valor simbólico: se, por um lado, estabelece distinções de classe e riqueza em um plano de competição igualmente simbólica, por outro, ela se constitui também como forma de homenagear a Santa.

A vestimenta de cada grupo, sempre nas cores que o simbolizam, é cuidada para que o grupo se apresente em sua melhor forma. Constando basicamente

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