• Nenhum resultado encontrado

A Matriz Produtivista, o Tecnicismo em Educação e a Nova Função da Sociedade Civil

MOVIMENTOS E IDÉIAS SOBRE EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA NO BRASIL: MATRIZES POLÍTICAS E IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS

2.3. A Matriz Produtivista, o Tecnicismo em Educação e a Nova Função da Sociedade Civil

A década de 1960 pode ser considerada como um período de auge e, ao mesmo tempo, de declínio da pedagogia nova (SAVIANI, 2007). Já mencionamos em capítulo anterior sobre algumas tendências que colaboram para a crítica da concepção de escola vinculada ao pensamento escolanovista: de um lado, os movimentos de educação e cultura popular, apesar de seus vínculos com alguns pressupostos da pedagogia nova, entendem que a escola não era a única, nem a principal agência educativa, de outro, o argumento dos economistas de que os investimentos em educação eram parcos e mal empregados. Além disso, o surgimento, no final da década de 1960, das chamadas concepções crítico- reprodutivistas74 levanta o debate sobre a escola como correia de transmissão da ideologia dominante, seja pela análise da educação como Aparelho Ideológico do Estado e sua função na reprodução das relações de produção, como em Althusser (1986), seja pela interpretação da violência simbólica da ação pedagógica que, estabelecendo-se como imposição arbitrária da cultura dos grupos e classes dominantes, contribui para reproduzir a estruturas das relações de força sociais, como em Bourdieu e Passeron (1970).

Por fim, fatores externos ao campo e aos processos pedagógicos, como a expansão dos meios de comunicação de massas, o surgimento de novas tecnologias e as políticas de pleno emprego estimuladas pelo modelo keynesiano de desenvolvimento econômico e social, fazem diminuir as expectativas em relação ao papel da escola na formação cultural integral do

74

De acordo com Saviani (2005), a visão crítico-reprodutivista surgiu na França tendo em vista o fracasso das manifestações de maio de 1968, movimento esse que se espalhou por diversos países inclusive o Brasil, proclamando a realização da revolução social pela revolução cultural. Se a cultura (e a educação) é um fenômeno superestrutural determinado pela base material, o crítico-reprodutivismo põe em evidência justamente a impossibilidade de fazer a revolução social pela revolução cultural, já que as estruturas materiais prevaleceriam sobre as pretensões acionadas no âmbito da cultura. Seus maiores desdobramentos no campo educacional foram: a teoria dos aparelhos ideológicos do Estado de Althusser, a teoria da violência simbólica de Bourdieu e Passeron e a teoria da escola capitalista de Baudelot e Establet. Em nosso país, essas teorias cumprem um papel importante na crítica ao regime autoritário e à pedagogia tecnicista, pois fortalecem um movimento de oposição à pedagogia oficial e à política educacional dominante. Por certo que as teorias crítico-reprodutivistas revelam-se capazes de fazer a crítica dos mecanismos de dominação então existentes, demonstrando como a prática pedagógica funcionava como um elemento de inculcação ideológica, situando a escola no âmbito da reprodução das relações capitalistas de produção. Por outro lado, elas não apresentam proposta de intervenção, limitando-se a constatar a determinação do modo de produção capitalista e da ideologia burguesa veiculada pelo Estado sobre o fenômeno educacional e escolar. A escola seria unicamente um instrumento da burguesia na luta contra o proletariado e, por desconsiderar-se a presença da contradição, não poderia ser um instrumento do proletariado na luta contra a burguesia. Dessa forma, tais teorias acabam por reforçar o caráter ideológico e reprodutor da escola, o que alimentou uma tendência à sua negação como instituição capaz de provocar mudanças nas relações sociais.

sujeito, levando a um refluxo do movimento renovador. Tais condicionantes evidenciam o fim da predominância da pedagogia nova no âmbito da história das idéias pedagógicas no Brasil, ao passo que propiciam a elaboração da pedagogia tecnicista.

Assim, nos anos de crise política e econômica que antecedem ao Golpe civil- militar de 1964, na medida em que se ampliava a mobilização popular, com as ligas camponesas, os sindicatos operários, as organizações estudantis e os movimentos de educação e cultura popular, mobilizava-se também a classe empresarial, cujas principais organizações, neste período, foram o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Tais organizações, juntamente com a Escola Superior de Guerra (ESG), representavam os interesses dos empresários e capitalistas da indústria nacional e internacional e visavam desagregar as organizações que assumiam a defesa dos interesses populares. No Brasil, foi justamente o complexo IBAD/IPES/ESG que deu origem aos estudos de economia da educação, considerando-a como alavanca para o aumento da produtividade e da renda.

Não por acaso, a orientação geral traduzida nos objetivos indicados e a referência a aspectos específicos da profissionalização do ensino médio, a integração dos cursos superiores ao desenvolvimento tecnológico e às demandas das empresas, bem como a precedência do Ministério do Planejamento sobre o da Educação na planificação educacional são elementos que, segundo Saviani (2007), compõem as reformas do ensino do governo militar.

Essa orientação geral coloca ênfase nos fundamentos da teoria do capital humano, que vê a educação como um instrumento para a formação de recursos humanos necessários ao desenvolvimento econômico da ordem capitalista. Esta teoria valoriza o planejamento e a racionalização dos investimentos objetivando o aumento da produtividade, e se fundamenta em princípios de eficiência e eficácia, inclusive, para a definição de aptidões a serem desenvolvidas tendo em vista o suprimento do mercado de trabalho. Eis aí, em linhas gerais, os aspectos que cercam a elaboração da pedagogia tecnicista, identificada também pela centralidade dos métodos e técnicas de ensino e pela utilização massiva de recursos áudio- visuais, sendo assim incorporada pelas políticas educacionais nos anos 70 e 80.

Dentro dessas políticas, à escola primária coube preparar os indivíduos para a realização de determinada atividade prática; o ensino médio foi encarregado da capacitação profissional necessária ao desenvolvimento econômico e social do país; já ao ensino superior

coube o posto de formar a mão-de-obra especializada requerida pelas empresas e preparar os quadros dirigentes do país. Este foi o espírito que mobilizou a reforma universitária de 1968, bem como a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1º e 2º Graus – Lei 5692 de 1971 (SAVIANI, 2007).

Ao lado da idéia de que a educação era uma solução mágica para a desigualdade entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos e entre os indivíduos e grupos, desperta a crença de que o Brasil teria encontrado o seu caminho para o desenvolvimento e a eliminação das desigualdades através da equalização do acesso à escola com um alto investimento em educação. Os acordos ―MEC-Usaid‖ e a criação do MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização foram os legados desse tempo de ilusões, em que à educação era creditada a função de produção de capacidade de trabalho.

Já nos anos 90 e 2000, configurada a crise estrutural do capital, a crise do modelo keynesiano de desenvolvimento, o esvaziamento ideológico do Estado (com a configuração de um Estado Mínimo), a desestruturação das políticas universalizantes e redistributivas em proveito das políticas de cunho neoliberal (focalistas, descontínuas e emergenciais), a educação deixa de ser um direito social e torna-se uma mercadoria a ser comprada e vendida no mercado. Com a restrição do Estado quanto à promoção de iniciativas públicas concernentes à educação, as ONGs – Organizações Não-Governamentais aparecem como os novos protagonistas das ações em matéria de políticas educacionais, na medida mesma em que os organismos da sociedade civil sofrem uma mudança na sua função política. Afastando-se dos movimentos sociais em luta pela conquista de direitos e retomando estratégias de organização comunitária, assistencialistas, despolitizadas e regulatórias, as ONGs tornam-se agências prestadoras de serviços culturais e educacionais. Atuando sobre as conseqüências das contradições que apanham as classes trabalhadoras e extratos subalternos da sociedade, esses novos agentes sociais concorrem para a elaboração e realização de ―projetos sociais‖, que na verdade se constituem como políticas de alívio à pobreza, no intuito de minimizar os efeitos das desigualdades sociais e culturais alarmantes e amenizar as condições de miséria e exclusão, sem, no entanto, confrontar-se com suas causas.

Dentro desta nova concepção da política social e educacional, a educação comunitária é convocada como estratégia de formação humana para o trabalho voluntário, parcial, informal, enfim, precário, com a participação de agentes comunitários que são

capacitados in loco de forma insuficiente, reproduzindo o modelo da inclusão excludente, reforçando ainda mais a lógica da precariedade e mistificando a dimensão da participação social. Profundamente atrelada à formação de recursos humanos para o desenvolvimento econômico, social e cultural local, dentro dos parâmetros da acumulação flexível, a educação comunitária contribui para retro-alimentar o sistema de metabolismo social do capital.

Entretanto, longe de superar a pedagogia tecnicista e a teoria do capital humano, os programas de ação comunitária, animação, ação social, coladas às organizações civis, criam novas roupagens e promovem uma metamorfose conceitual que resgata os princípios de racionalidade, eficiência e produtividade sob a forma de auto-gestão, empreendedorismo e participação comunitária. Nesse movimento, configuram-se, para além da instituição escolar, coladas às iniciativas das organizações civis, as concepções neotecnicistas e neoprodutivistas da educação.

Assim, da pedagogia tecnicista aos atuais projetos sociais das ONGs, tem-se a constituição de uma matriz produtivista da educação comunitária que se caracteriza pela ênfase na criação de valores econômicos, na formação flexível e polivalente capaz de garantir a inserção dos indivíduos num mercado de trabalho cada vez mais excludente e da instituição da educação como um serviço, uma mercadoria que avaliza as condições de empregabilidade requeridas pelo capital.

Diante desta constatação, neste capítulo, buscaremos caracterizar e evidenciar a constituição de uma nova matriz política da educação comunitária a partir da concepção produtivista dominante no campo da educação e seus marcos regulatórios recentes. De acordo com Saviani (2007), a concepção produtivista da educação, que atravessa todo o período de 1969 a 2001, fundamenta-se na teoria do capital humano, ou seja, na idéia de que a educação é fator de desenvolvimento tanto pessoal como social suscetível de agregar valor, contribuindo assim, para o incremento da produtividade do sistema capitalista.

Ainda que este período comporte movimentos e idéias contra-hegemônicos, como as concepções crítico-reprodutivistas, as pedagogias da ―educação popular‖, a pedagogia crítico-social dos conteúdos e a pedagogia histórico-crítica, o projeto hegemônico que vai do tecnicismo ao neotecnicismo na educação, incluindo-se aí a pedagogia de projetos e os programas sociais desenvolvidos pelas organizações civis, é o que confere à educação, de um modo geral, e à educação comunitária, especificamente, um caráter produtivista atrelado aos

interesses das classes dominantes em sua tentativa de responder à crise estrutural vivenciada, subordinando a educação ao processo de regulação, ajustamento e soerguimento do sistema capitalista.

Ao investigarmos as origens dos discursos hegemônicos e seus suportes conceituais presentes na atual conformação teórica da educação, pretendemos explicar de que forma ela passou a assumir uma nova função e representação política na economia e cultura neoliberal, em vista de ser possível encontrar igual influência de seus pressupostos na reconfiguração do que se entende por educação comunitária hoje.

A teoria do capital humano e a articulação da pedagogia tecnicista

Em 1985, a Fundação Emílio Odebrecht publicava as três monografias selecionadas ao prêmio em dinheiro referentes ao estudo do tema ―educação e produtividade‖. Em terceiro lugar foi premiada a monografia de Élio Vieira, cujas reflexões sobre a relação entre educação, trabalho e produtividade parecem sintonizadas com as idéias de desenvolvimento nacional, de desenvolvimento do meio rural, com a concepção existencialista do trabalho e com alguns pressupostos pedagógicos oriundos do pensamento católico. Os problemas eleitos pelo autor indagavam sobre a possibilidade de se formular uma educação que enfatizasse o valor trabalho, de modo a contribuir para o desenvolvimento do meio rural, considerando que a educação deveria atingir o homem em seu próprio meio ambiente; contribuir para promover esse homem, melhorando suas condições de vida; trabalhar com os elementos de carência material da realidade; concorrer, a despeito das deficiências de recursos humanos disponíveis, para fazer acontecer a educação no meio rural e nas periferias urbanas. Aliado a isto, o autor indagava se o aumento da escolaridade das populações do meio rural poderia melhorar a vida dessas populações, se a educação para o trabalho poderia contribuir para o desenvolvimento do meio rural e, finalmente, se a educação para o trabalho produtivo contribuiria para a melhoria da qualidade de vida do brasileiro.

Partindo do pressuposto da dimensão existencialista e sócio-econômica do trabalho, Vieira (REIS, RODRIGUES, VIEIRA, 1985) elabora uma proposta de educação para o trabalhador rural levando em conta que: o trabalho tem que ser encarado como humanização do homem; não se pode ignorar o caráter de degradação que o trabalho pode assumir no contexto sócio-econômico; a educação para o trabalho deve ser essencialmente crítica do

trabalho, pois a premissa fundamental a ser considerada é a de que ―o trabalho é para homem e não o homem para o trabalho‖, de acordo com o pensamento social da Igreja Católica. Assim, a educação para o trabalho, na perspectiva do autor, deve ser entendida como:

(...) um componente da formação do Ser em desenvolvimento, tendo em vista possibilitar-lhe tornar-se um adulto integrado ao meio em que vive e equipar-se para propor mudanças que resultem em melhores condições de vida para si e para os seus semelhantes. Esta visão de educação para o trabalho está diretamente relacionada à concepção de educar para uma vida comunitária, onde a cooperação e a produtividade se constituem em atributos primordiais do Ser adulto, sociologicamente definido como cidadão (REIS, RODRIGUES, VIEIRA, 1985, p.149).

A idéia centrada na preparação do indivíduo para interferir na realidade que o cerca, diz o autor, encontra apoio em Piaget, para quem a formação do ser em desenvolvimento é um processo permanente de ―assimilação‖ do meio em que se vive e ―acomodação‖ do organismo mediante uma deliberada intervenção nesse meio, o que resulta num equilíbrio temporário entre as intervenções sobre o meio e as ações inversas. Assim, antes de se encerrar numa reduzida preparação profissional, a educação para o trabalho deveria ―objetivar uma formação básica de cunho científico-tecnológico, instrumentalizando os educandos a tornarem-se produtivos ao ponto de promoverem sua própria mudança, tendo em vista acompanhar ou promover a mudança do meio em que vivem‖ (idem, p.150). E finalmente, uma educação para o desenvolvimento do meio rural, baseada na idéia de educação para o trabalho, deveria incluir o componente trabalho e todas as forças vivas da comunidade, tendo em vista o aumento da produtividade e, conseqüentemente, e equilíbrio econômico e a redução da pobreza do meio rural.

A monografia acima apresentada revela que, embora o contexto social, econômico e político tenha se alterado ao longo das décadas de 1970 e 1980, alguns elementos de continuidade se mostram ainda evidentes, concorrendo e confrontando com as novas condições criadas. Queremos dizer com isso que o declínio da pedagogia nova e das idéias libertadoras da educação popular verificado a partir da década de 1970 (com a articulação da pedagogia tecnicista, que se tornou predominante neste período) não anulou a influência que tais movimentos e idéias exerceram sobre o campo da educação brasileira, os quais encontravam ainda algum eco nas formulações sobre a educação voltada ao meio rural. Porém, destituídas agora de sua premissa transformadora e acrescidas dos pressupostos do desenvolvimento de comunidades, então retomados pelos discursos hegemônicos sobre a educação durante o governo militar, as concepções a práticas da pedagogia nova e dos movimentos de educação popular aparecem, portanto, alteradas pela confluência de novas e

Documentos relacionados