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Maturação e descontinuidade das políticas públicas educacionais e

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A tentativa de implantar uma nova cultura institucional em educação, especificamente no que tange ao trato e enfrentamento da violência e dos conflitos que nascem das práticas educativas e do contexto escolar por meio do paradigma da justiça restaurativa esbarra justamente na distância em relação ao modelo predominantemente punitivo.

Com o intuito de refletir de modo criterioso e embasado sobre essa questão, procedemos com a entrevista de três PMEC. O primeiro entrevistado é licenciado em História e pós-graduado em educação especial. Atua na rede pública há 15 anos e na função de PMEC há 1 ano e 1 mês com a jornada de 19h semanais. O segundo é licenciado em Matemática e Pedagogia com pós-graduação em psicopedagogia. Atua na rede pública há 20 anos e na função de PMEC há 4 anos com a jornada de 40h semanais. O terceiro e último entrevistado é licenciado em Pedagogia com pós- graduação em educação étnico-racial. Atua na rede pública há 24 anos e na função de PMEC há 5 anos com a jornada de 40h semanais.

Hábitos não mudam por decreto. As concepções que subjazem a cada sujeito possuem raízes profundas que dificilmente são atingidas pela promulgação de uma mera lei ou pelo estabelecimento de novos parâmetros organizacionais. Em outras palavras, nenhuma política pública se efetiva quando processada de modo absolutamente vertical, de cima de para baixo. Ao entrevistarmos os PMEC percebemos a extensão e importância dessa questão.

Eu entendo como política pública a distribuição da arrecadação de imposto onde vai ser aplicada. Já existe uma pré-designação de onde vão ser aplicados, eventualmente, remanejamentos acontecem, se a gente quiser fazer através da mídia. Mas eu acredito que, o que se promete em relação à Educação com relação a investimento público, não acontece, na verdade. Haja vista a escola do Estado estar assim extremamente, estar muito abandonada na questão de investimento (PMEC 2, 2016).

A questão da dimensão horizontal das políticas públicas, isto é, sua consolidação no cotidiano por meio da reflexão e do empoderamento dos sujeitos em relação aos seus princípios, também foi explorada nas entrevistas. Sem esse nível de adesão, a tendência natural consiste na formalização das práticas e princípios preconizados em lei, mantendo uma distância mortal das práticas diárias e se convertendo em mero discurso, termos e recursos estilísticos com os quais se preenche relatórios e se floreia falas coletivas. Os PMEC evidenciam esse distanciamento que impede a penetração das políticas públicas na esfera ordinária da escola e em suas práticas.

Entrevistador: Bem, 2ª pergunta: O Sistema de Proteção Escolar ele fez parte de uma política pública, ok? E aí, a 2ª pergunta é a seguinte: O que você entende por política pública?

PMEC 1: - Política pública? Entrevistador: Isso.

PMEC 1: - O pensamento, o conjunto de pensamentos para você tomar medidas a longo prazo. Para mim é isso.

Entrevistador: 3ª pergunta: O Sistema de Proteção Escolar desponta, efetivamente, como uma política pública no sentido amplo do termo? Por quê? Você acha que o Sistema de Proteção Escolar se tornou uma política pública do Estado?

PMEC 1: - Não sei. Acho que tem que pensar bem mais nisso daí, refletir mais para poder te responder isso (PMEC 1, 2016).

O sentido amplo de política pública, como uma ação coordenada, contínua e com objetivos a médio e longo prazo, cuja essência é uma transformação das condutas é essencial para a sua concretização. Os entrevistados analisam a implantação do SPEC oferecendo subsídios que possibilitam perceber se o modelo

de fato impactou as práticas escolares cotidianas, tanto em seu aspecto organizacional, quanto simbólico.

O processo de “maturação” virá através da implementação como execução de ações contínuas. E a “transformação” ocorrerá a partir de um movimento de avaliação das políticas públicas que por sua vez alimentará a maturação/implementação (MORAIS JÚNIOR, 2016, p. 36).

O caráter inequivocamente contínuo das políticas públicas precisa se manifestar sob a forma de maturação, um processo lento, composto de ações executadas sistematicamente e mediante as quais se gera um ambiente favorável à transformação das consciências e, consequentemente, das ações. A Resolução 225, de 2016, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reforça esse caráter.

§ 1º Para efeitos desta Resolução, considera-se: I – Prática Restaurativa: forma diferenciada de tratar as situações citadas no caput e incisos deste artigo; II – Procedimento Restaurativo: conjunto de atividades e etapas a serem promovidas objetivando a composição das situações a que se refere o caput deste artigo; III – Caso: quaisquer das situações elencadas no caput deste artigo, apresentadas para solução por intermédio de práticas restaurativas; IV – Sessão Restaurativa: todo e qualquer encontro, inclusive os preparatórios ou de acompanhamento, entre as pessoas diretamente envolvidas nos fatos a que se refere o caput deste artigo; V – Enfoque Restaurativo: abordagem diferenciada das situações descritas no caput deste artigo, ou dos contextos a elas relacionados, compreendendo os seguintes elementos: a) participação dos envolvidos, das famílias e das comunidades; b) atenção às necessidades legítimas da vítima e do ofensor; c) reparação dos danos sofridos; d) compartilhamento de responsabilidades e obrigações entre ofensor, vítima, famílias e comunidade para superação das causas e consequências do ocorrido (BRASIL, 2016).

A Resolução apresenta matiz interinstitucional citando explicitamente a importância do envolvimento de diversos segmentos para a implementação e maturação da justiça restaurativa e vai ao encontro da ideia de justiça restaurativa enquanto paradigma e não apenas método. Desse modo, o trabalho do PMEC ganha relevância, pois deve atua enquanto promotor da formação de uma nova consciência e não de executor de metodologias e expedientes circunstanciais face aos conflitos escolares e comunitários. Paulatinamente, esse profissional vem conquistando seu

espaço e sendo reconhecido, fortalecendo a interdependência defendida pela resolução 225.

Hoje a comunidade quando ela chega até o guichê da escola, que é a secretaria, eles procuram, na verdade... Antes eles falavam assim: “Quero falar com o diretor, com a vice-diretora ou coordenador”. Hoje, os agentes já estão tão bem informados, que eles já perguntam: “Qual é o assunto, por favor, mãe?” daí o responsável vai falar assim: “Ah, é porque a mediadora ligou para a minha casa sobre excesso de faltas”, “Ah, não porque houve uma briga na sala de aula” e tal, isso aquilo, então eles já sabem que é o mediador (PMEC 3, 2016).

A valorização da função do PMEC por parte da comunidade aponta para a gradual abertura para a justiça restaurativa em si. Na medida com que sua presença e especificidade são aceitas os pressupostos que balizam suas práticas também o são, mesmo que ainda de modo indireto e não totalmente consciente.

Em contrapartida, as Resoluções estaduais 73 e 74, de 27 de dezembro de 2016, demonstram a descontinuidade da justiça restaurativa enquanto política pública, não apenas diminuindo o número de PMEC como descaracterizando a função ao atribuir suas prerrogativas a outros membros da equipe gestora, especificamente o vice-diretor do programa Escola da Família.

“Parágrafo único - As unidades escolares participantes do Programa Escola da Família - PEF não comportam a atuação do Professor Mediador Escolar e Comunitário, cujas atribuições, a seguir relacionadas, serão exercidas pelo Vice-Diretor do PEF: 1. mediar conflitos no ambiente escolar; 2. orientar, quando necessário, o aluno, a família, ou os responsáveis, quanto à procura de serviços de proteção social.” [Resolução 73, 27 de dezembro de 2016] (SÃO PAULO, 2016a).

Artigo 7º - Na implementação das ações específicas do Sistema de Proteção Escolar, a escola poderá contar com 1 (um) docente para atuar como Professor Mediador Escolar e Comunitário [...] [Resolução 74, 27 de dezembro de 2016] (SÃO PAULO, 2016b).

O descompasso entre as resoluções federal e estadual revelam a fragilidade da implementação da justiça restaurativa na esfera das políticas públicas que exigem continuidade e ações sistemáticas para se consolidarem e promoverem mudanças. Essa situação desestabiliza os PMEC e gera expectativas nefastas quanto à

manutenção da função, fortalecendo a percepção de que as políticas públicas estaduais são ambíguas.

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