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Violência na escola

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Universalidade e especificidade são perspectivas importantes e complexas. Dimensioná-las adequadamente é um pressuposto para que estudos e reflexões não se percam em generalizações superficiais ou se restrinjam a peculiaridades imponderáveis.

Anteriormente, tratamos da questão da relação entre violência e poder a partir de uma perspectiva geral, tomando e conceituando o fenômeno amplamente. Nesse

ponto, lançamos um olhar mais próximo com o intuito de reconhecer sua influência e manifestação no contexto escolar.

A escola é particularmente afetada pelas condições históricas, políticas, econômicas, culturais e sociais. Mais do que isso. A escola deve expressar e revelar os principais aspectos da vida social, uma vez que sua função é exatamente oferecer as condições necessárias para que o sujeito possa participar ativamente do grupo ao qual pertence, o que demanda tanto a formação de uma identidade singular quanto a criação de laços de solidariedade com os outros, como se, afirma Durkheim, existissem dois seres em cada sujeito.

Um é constituído de todos os estados mentais que não se relacionam senão conosco mesmo e com os acontecimentos de nossa vida pessoal: é o que se poderia chamar de ser individual. O outro é um sistema de ideias, sentimentos e de hábitos [...] (DURKHEIM, 1978, p. 82-83).

A violência escolar representa, portanto, uma manifestação que é tipicamente social não se constituindo em fenômeno isolado. O que a caracteriza e a potencializa no contexto educacional é justamente o fato de se expressar em um espaço no qual as ideias vigentes colidem com os desejos e ímpetos de individualidade dos sujeitos que ali estão, submetidos a um processo formativo que se dá no exato ponto de tensão entre indivíduo e sociedade.

Bourdieu compreende que o verdadeiro papel da escola deveria ser esse espaço de formação, embora, geralmente, reforce as desigualdades. Porém, enquanto Durkheim enfatiza a integração moral, Bourdieu cita a integração cultural como papel principal da instituição escolar. Apesar da diferença entre esses dois sociólogos franceses está clara a situação peculiar da escola: simultaneamente expressão de uma determinada sociedade – historicidade, conjuntura político- econômica... – e projeção de seus objetivos e ambições.

A violência no contexto escolar tem uma face inequívoca: a relação entre professor e aluno. E isso não se limita apenas ao docente em sala de aula, mas a todo o aparato institucional que cerca e atinge o aluno. Estamos falando de uma relação de poder que não raro se dá por meio da violência, reposta padrão aos conflitos que

nascem necessariamente nesse ambiente único. O mais importante e decisivo consiste na tensão entre os objetivos e políticas educacionais e os anseios e receios que os estudantes carregam dentro de si.

Em várias situações o próprio ato de educar é violento, pois impele o sujeito a se conformar, a se submeter, a esvaziar-se de si para ser preenchido com valores e sentidos que lhe são totalmente estranhos e arbitrários. “Os interesses dos compradores de força de trabalho levam-nos a reduzir ao mínimo a autonomia do SE [Sistema de ensino], colocando-o, assim como a família, sob a dependência direta da economia [...]”, expõem Bourdieu e Boltanski (2001, p. 131). A recusa, cuja alcunha é indisciplina, é punida física e simbolicamente, ou seja, tanto por meio da coerção direta – ocorrências, medidas disciplinares como reprimendas e suspensões – ou simbólica, por meio da introjeção de rótulos como de fracassado e de incapaz.

Se verificarmos os sentidos que a língua portuguesa reserva para os conceitos de indisciplina, disciplina e violência, encontraremos algumas definições, tais como: "todo ato ou dito contrário à disciplina que leva à desordem, à rebelião" constituir-se-ia em indisciplina. A disciplina enquanto "regime de ordem imposta ou livremente consentida que convém ao funcionamento regular de uma organização (militar, escolar, etc.)", implicaria na observância a preceitos ou normas estabelecidas. A violência, por sua vez, seria caracterizada por qualquer "ato violento que, no sentido jurídico, provocaria, pelo uso da força, um constrangimento físico ou moral" (GUIMARÃES, 1996, p. 73).

Portanto, seja sob a forma de integração moral ou cultural, impõe-se o primado da submissão e sua legitimidade em si, um processo típico da imposição do poder, o que só ocorre mediante a violência. O sujeito que não se adequa é visto e compreendido como absolutamente equivocado e repreendê-lo é tão necessário quanto justo. A inadequação às propostas, às normas e pressupostos assumidos como oficiais pela instituição escola é em si inadmissível. Esse primado torna a educação uma imposição de ideias e de comportamento e não um processo de amadurecimento por meio da formação e do desenvolvimento das mais variadas potências humanas. Além disso, impõem uma relação de poder que beira a tirania e impede a necessária mobilidade entre os sujeitos envolvidos, o que é essencial para o aprendizado.

Poder é exercício regional de forças, sempre móveis e mutáveis, do interior das relações que se estabelecem, e não algo que acontece decima para baixo, por vigência da lei, de regimento ou de cargo. É tensão constante no dia-a-dia, e não emanações de “grupos de poder” como ouvimos dizer com frequência (GUIRADO, 1996, p. 57).

A noção de (in)disciplina e de violência no contexto escolar como manifestações objetivas, individuais ou coletivas, de desprezo ou de má índole dos alunos serve ao exercício de um poder unilateral por parte da instituição e de seus representante. Ocorre, nesse sentido, a supressão da autonomia e da liberdade dos sujeitos. Todavia, esses são dois pressupostos para a educação. É paradoxal: os discursos oficiais valorizam a formação do sujeito para a autonomia em relação ao próprio aprendizado como a principal meta das práticas pedagógicas. Na prática, o indivíduo é tolhido de sua liberdade.

E o valor máximo em jogo passa a ser a liberdade. É a ela que se visa a punição, ou seja, retira-se e devolve-se a liberdade à pessoa. O cárcere cumpre essa função de forma exemplar. Mas pode-se também, como a escola, eliminando aos poucos a palmatória, faz a substituição por um conjunto de práticas em que a punição é exatamente a restrição ao movimento e a comunicação com os demais. Há, portanto, efeitos físicos. Mas, o objeto imediato é a reeducação da alma do indivíduo, para que se livre de tendências delinquentes em vida. Para tanto é que se priva a pessoa de dominar seu próprio tempo, seu fazer, seu lazer (GUIRADO, 1996, p. 63).

O aluno refratário é anormal e perigoso, como se tudo aquilo que a escola realizasse estivesse acima do bem e do mal. Desse modo, a tentativa de impor aos sujeitos uma igualdade artificial sob o pretexto de fundar relações mais harmoniosas e verdadeiramente justas é também uma forma de violência.

[...] Somente o animal de rebanho recebe e dispensa honras, quando a “igualdade de direitos” pode facilmente se transformar em igualdade na injustiça: quero dizer, em uma guerra comum a tudo que é raro, estranho, privilegiado, ao homem superior, ao dever superior, à responsabilidade, à plenitude de poder criador (NIETZSCHE, 2005, p. 170).

A exigência de inserir ou de integrar o sujeito à sociedade é intrínseca à educação. Determinar parâmetros, erigir posturas, regular relações são atos necessários e em si não constituem um atentado à autonomia. Todavia, sob o álibi

dessa responsabilidade, a escola pode arquitetar e fabricar individualidade e legitimar coerções descabidas, nas quais a submissão e não a formação é a meta final. Desse modo, conforme descrevem Colombier, Mangel e Perdriault (1989, p. 101), as condições para se “passar desta violência selvagem para um comportamento socialmente aceitável, sem com isso sufocar a energia que esta violência subentende”, de modo verdadeiramente educativo são severamente prejudicadas.

Comumente, o aluno que não se submete à sujeição violenta de certas práticas escolares é apressadamente julgado como um possível futuro infrator, alguém fadado a constituir um perigo à sociedade e aos cidadãos de bem, cônsules esclarecidos da relação entre caráter e adequação à tábua de valores vigente. Acossado justamente no ambiente que deveria promover e garantir sua autonomia, o sujeito tende a se revelar pelas mais diferentes vias e formas.

[...] mesas riscadas com canivete, desmontadas, cadeiras quebradas, piso danificado, as paredes rabiscadas, privada entupida. [...] Na biblioteca, livros e apostilas são roubados. [...] Vidros quebrados, o marceneiro conserta, as faxineiras limpam. [...] Ponta pés, impedimento de passagem dos alunos. [...] professor vermelho de raiva, sujo de tinta, chaves roubadas (COLOMBIER; MANGEL; PERDRIAULT, 1989, p. 21-22).

A escola, portanto, não é apenas vítima de um ambiente e de uma cultura que acomoda a violência como a estratégia racionalmente evidente para domar o caos. É também reprodutora dessa cultura, pois exerce o poder majoritariamente pela senda do excesso e não do consenso. Assim, todos os atos que são classificados como violência escolar – agressão, depredação do ambiente, marginalizações, discriminações... – podem não ser apenas reflexos da inserção da escola na dinâmica da sociedade atual, também é um sintoma de suas práticas.

Assim como é possível constatar uma crise no processo civilizatório a partir do enfraquecimento das condições que o definiram, e considerando que a escola,

durante muito tempo, funcionou como um microestado, pode-se identificar, nos

últimos anos, uma crise no que se refere ao poder desta instituição, aos

modelos de comportamento que aí se constroem e à adesão à chamada

Perceber o modo como os sujeitos que estão se relacionando e construindo o espaço escolar percebem sua inserção nessa dinâmica é vital. São essas estruturas arraigadas na consciência da comunidade escolar, sobretudo dos gestores e docentes que são responsáveis por guiar intencionalmente o processo de ensino- aprendizagem, que determinam se as relações de poder, essenciais para qualquer propósito social, serão legítimas ou impostas violentamente.

Na busca da construção de relações de poder mais justas e legítimas e que fortaleçam as relações de ensino-aprendizagem vem se constituindo um conjunto de novas políticas públicas de valorização da distribuição do poder, dentre elas poderíamos destacar por exemplo a adoção de modelos de gestão democrática da escola.

A implantação dessas medidas, se dão a partir de decisões da esfera estatal e se constituem em políticas públicas que permeiam e direcionam esse movimento. Conforme Rua,

[...] conjunto de decisões e ações destinadas à resolução de problemas políticos. Essas decisões de ações envolvem atendimento político, compreendida esta com conjunto de procedimento formais e informais que expressam relações de poder e se destinam à resolução pacifica de conflitos quanto a bens públicos (RUA, 1998, p. 731).

Portanto, dependendo da natureza e dos propósitos dessas políticas poder- se-á reforçar ou não o paradigma do exercício unilateral do poder e da justiça como base de mediação das relações no contexto escolar. Assim, considera-se que o conjunto de ações estabelecidas pela implantação do modelo de justiça restaurativa nas escolas públicas do estado de São Paulo – compreendendo procedimentos formais e informais de diálogo, círculos restaurativos, etc. - são essenciais para o enfrentamento da problemática da violência escolar e passa, de acordo com nossa percepção, pelo fortalecimento desse modelo de justiça. Dentre as medidas de implantação do novo modelo, a mais notória é a instituição do Sistema de Proteção Escolar nas Escolas Públicas Estaduais de São Paulo, com destaque para a figura do Professor Mediador Escolar e Comunitário (PMEC) o qual será abordado com mais profundidade posteriormente.

Definir metas oficiais claras e que orientem as práticas cotidianas na escola e conduzam à superação do ciclo de reprodução e recrudescimento da violência é fundamental. Mas não basta implantar, ou seja, criar e aprovar uma lei ou diretriz. O mais decisivo é o processo de implementação dessas políticas públicas, que consiste na criação de condições para que as mesmas se efetivem, como formação constante e monitoramento das ações.

Comportamentos não mudam por decreto ou como diria Carlos Drummond de Andrade, “os lírios não nascem das leis” (apud TALARICO, 2011, p. 89). Hábitos são estruturas cristalizadas que não se sujeitam à reflexão pacificamente. Quando políticas públicas são apenas implantadas logo aderem aos jargões e conceitos miméticos que ocuparão textos oficiais e discursos. Os profissionais adequam-se aos dispositivos oficiais e realizam suas liturgias em reuniões e momentos específicos. Porém, as práticas e as convicções permanecem inalteradas, revelando as distâncias nefastas que certos projetos e diretrizes mantém, talvez intencionalmente, da realidade diária.

3.3 Sistema de Proteção Escolar e o Professor Mediador Escolar e Comunitário

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