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Mecanismos enunciativos

CAPÍTULO 1 – FUNDAMENTOS GERAIS DAS TEORIAS DE ANÁLISE

A. Heterogeneidade do discurso e do sujeito

A.1 Heterogeneidade constitutiva

1.1.2.2 Mecanismos enunciativos

Os mecanismos enunciativos, segundo Bronckart (2003, p. 319), “contribuem para o estabelecimento da coerência pragmática do texto, explicitando, de um lado, as diversas avaliações (julgamentos, opiniões, sentimentos) que podem ser formuladas a respeito de um ou outro aspecto do conteúdo temático e, de outro, as próprias fontes dessas avaliações [...]”.

Interessa-nos abordar aqui o papel desempenhado pelas instâncias formais de enunciação nos dois aspectos desses mecanismos: a distribuição das vozes e a marcação das modalizações.

“As vozes podem ser definidas como as entidades que assumem (ou às quais são atribuídas) a responsabilidade do que é enunciado”. (BRONCKART, 2003, p. 326). Há, segundo esse autor (idem), dois tipos de voz: a neutra e vozes infra-ordenadas em relação ao narrador ou ao expositor. A primeira “é a instância geral de enunciação que assume diretamente a responsabilidade do dizer” (idem) e ocorre na maioria dos casos, podendo ser, conforme o tipo de discurso, a voz do narrador ou a do expositor. O segundo tipo de voz (as vozes infra-ordenadas em relação ao narrador ou ao expositor) são vozes secundárias que se distinguem por três categorias gerais (vozes de personagens, vozes de instâncias sociais e voz do autor empírico do texto)” (idem).

Conforme Bronckart (idem, p. 327), “as vozes de personagens são as vozes procedentes de seres humanos, ou de entidades humanizadas [...] implicados, na qualidade de agentes, nos acontecimentos ou ações constitutivas do conteúdo temático de um texto”. Já as vozes sociais são aquelas “procedentes de personagens, grupos ou instituições sociais que não intervêm como agentes no percurso temático de um segmento de texto, mas que são mencionados como instâncias externas de avaliação de alguns aspectos desse conteúdo” (idem). E, finalmente a voz do autor é aquela “que procede diretamente da pessoa que está na origem da produção textual e que intervém, como tal, para comentar ou avaliar alguns aspectos do que é enunciado” (idem).

B) A expressão das modalizações

No dizer de Bronckart (2003, p. 330), “as modalizações têm como finalidade geral traduzir [...] os diversos comentários ou avaliações formulados a respeito de alguns elementos de conteúdo temático. [...] as avaliações que traduzem são, ao mesmo tempo, locais e discretas”.

O autor (idem, p. 330-332) diferencia quatro funções de modalização: lógica, deôntica, apreciativa e pragmática, as quais são recuperadas aqui:

As modalizações lógicas consistem em uma avaliação de alguns elementos do conteúdo temático, apoiada em critérios (ou conhecimentos) elaborados no quadro das coordenadas formais que definem o mundo objetivo, e apresentam os elementos de seu conteúdo do ponto de vista de suas condições de verdade, como fatos atestados (ou certos), possíveis, prováveis, necessários etc. [...]

As modalizações deônticas consistem em uma avaliação de alguns elementos do conteúdo temático, apoiada nos valores, nas opiniões e nas regras constitutivas do mundo social, apresentando os elementos do conteúdo como sendo do domínio do direito, da obrigação social e/ou da conformidade com as normas em uso. [...]

As modalizações apreciativas consistem em uma avaliação de alguns aspectos do conteúdo temático, procedente do mundo subjetivo da voz que é fonte desse julgamento, apresentando-os como benéficos, infelizes, estranhos, etc., do ponto de vista da entidade avaliadora. [...]

As modalizações pragmáticas contribuem para a explicitação de alguns aspectos da responsabilidade de uma entidade constitutiva do conteúdo temático (personagem, grupo, instituição, etc.) em relação às ações de que é o agente, e atribuem a esse agente intenções, razões (causas, restrições, etc.), ou ainda, capacidades de ação.

De acordo com Bronckart (2003, p. 333), a marcação da modalização é feita por diversas formas, reagrupadas em quatro subconjuntos:

1) Os tempos verbais do modo condicional;

2) Os auxiliares de modo: (querer, dever, ser necessário e poder).

A essas unidades, Bronckart acrescenta um conjunto de verbos que, por seu valor semântico, podem, às vezes, “funcionar como” auxiliares de modo: crer, pensar, gostar de, desejar, ser obrigado a, ser constrangido a etc.

3) Um subconjunto importante de advérbios ou de locuções adverbiais: certamente, provavelmente, evidentemente, talvez, verdadeiramente, sem dúvida, felizmente, infelizmente, obrigatoriamente, deliberadamente, etc.

4) Um subconjunto de orações impessoais que regem uma oração subordinada completiva: é provável que..., é lamentável que..., admite-se geralmente que..., etc.

Bronckart (idem) também coloca nessa categoria as orações adverbiais que regem uma oração completiva: sem dúvida que..., etc.

CAPÍTULO II – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA DEFINIÇÃO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS

“Falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo. Dispomos de um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos). [...] Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível”.

Mikhail Bakhtin

Considerações iniciais

Para a definição do gênero texto dissertativo escolar prototípico não-padrão nós nos apoiaremos nos três elementos já consagrados por Bakhtin (conteúdo temático, estilo e construção composicional), incorporando também outros postulados por Maingueneau (status respectivos dos enunciadores e co-enunciadores; circunstâncias temporais e locais de enunciação) e Marcuschi (funcionalidade, ações práticas e circulação sócio-histórica).

Mesmo com todos os elementos expostos acima, é consenso entre os estudiosos do gênero textual a dificuldade de o definir:

[...] os gêneros de textos continuam sendo entidades profundamente vagas; as múltiplas classificações existentes são divergentes e parciais e nenhuma delas pode ser considerada como um modelo de referência estabilizado e coerente. [...] Essa dificuldade de classificação deve-se primeiramente à diversidade de critérios que podem ser legitimamente utilizados para definir um gênero. [...] Essa dificuldade de classificação também decorre do caráter fundamentalmente histórico e (adaptativo) das produções textuais (BRONCKART, 2003, p. 73).

No entanto, Bronckart (2003) adverte que analisar as unidades lingüísticas e suas regras específicas poderia ser um meio mais objetivo na classificação do gênero, ressalvando que uma caracterização do gênero que leve em conta somente aspectos lingüísticos não dá conta de fazê-lo, pois o texto não é algo atomizado em regras lingüísticas; antes, cada texto constitui, de fato, uma “unidade comunicativa”. Assim, sob o estatuto de unidade comunicativa, a observação da interioridade do texto só tem sentido se articulada à uma exterioridade sócio-histórica. Essas unidades comunicativas estão estritamente vinculadas a um campo da atividade humana, pois, qualquer que seja esse campo, o homem, em suas relações, gera uma diversidade de “enunciados concretos e únicos [...] (que) refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo” (BAKHTIN, 2003, p. 261).

De acordo com Marcuschi (2005, p. 19), “[...] os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”. Assim, nas atividades comunicativas diárias, a sociedade realiza suas práticas de linguagens nas esferas de comunicação humana: esfera jornalística; burocrática; religiosa; cotidiana; literária; científica; escolar; artístico-cultural; publicitária etc. Alguns exemplos de gêneros discursivos em cada uma dessas esferas:

Esfera jornalística: jornal, revista, entrevista, reportagem, charge, carta de leitor, artigo jornalístico, tiras etc.;

Esfera burocrática: carta comercial, ofício, memorando, editais de concursos, documentos pessoais como passaporte, carteira de identidade, título de eleitor etc.;

Esfera religiosa: salmos, hinos, provérbios, parábolas, epístolas, ladainha, jaculatória etc.; Esfera cotidiana: receita de alimentos, talões de água, energia elétrica, telefone, bilhetes, cartas pessoais, piadas etc.;

Esfera literária: conto de amor, conto de enigma e de aventura, contos de fadas/infantil, romance, poema, letra de canção etc.;

Esfera científica: teses, dissertações, artigos científicos, ensaio, resenhas, resumos, livros; Esfera escolar: livro didático, aula, seminário, debate, exposições orais, questões instrucionais, atividades, exercícios etc.;

Esfera artístico-cultural: escultura, pinturas, fotografias, literatura oral (cordel, por exemplo), adivinhas, provérbios, piadas, músicas etc.

Esfera publicitária: folder, vinheta, outdoor, propaganda, anúncios de compra e venda etc. Dessa forma, devemos delimitar o campo de atividade que nossa pesquisa abrange, bem como as condições específicas e finalidades que esse campo impõe. Como nosso trabalho, então, focaliza as produções dissertativas escritas na escola, o nosso domínio discursivo, isto é, nossa esfera de atividade humana é a esfera escolar, na qual emergem práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas que, quando realizadas, caracterizam a instituição Escola.

2.1. O problema da definição dos gêneros discursivos