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As origens da tragédia grega entroncam-se nas origens do teatro15, se o considerarmos como manifestação artística da humanidade que acompanha o ser humano desde os períodos mais remotos de vida em comunidade. Como instituição, o teatro terá surgido, durante a tirania16 de Pisístrato, na Grécia Antiga no final do século VI a. C. associado a festas, a rituais sagrados, a procissões e recitais, ligados ao culto do deus Dioniso, que podiam durar dias seguidos.

Segundo Aristóteles, o teatro desenvolveu-se a partir da tendência congénita do ser humano para a mimesis (representação) e a tragédia é a arte mimética por excelência. Explorando essa capacidade mimética, o homem exprimia emoções e medos, revivia, através do mythos e do logos momentos fulcrais da sua existência individual e comunitária. Podemos encontrar nos rituais sagrados primitivos, as raízes do teatro grego, pela repetição de gestos convencionais, recriação e execução de ações, instauração de um tempo e de um espaço demarcado fora da existência quotidiana e pelo valor simbólico de que toda esta pluralidade de signos se revestia. Mas não podemos considerar essas manifestações pré-teatrais, necessariamente, como os alicerces da tragédia grega, um dos “produtos mais nobres da cultura grega, e mesmo da cultura humana” (Lesky, 1971, p. 48).A tragédia grega não pode ser considerada como o mero resultado da reprodução desses cerimoniais, mas sim como o fruto da “cultura helénica e do génio de seus grandes poetas” (1971, p. 48).

A memória dos rituais sagrados permaneceu viva na História da Grécia Antiga e perpetuou-se na tragédia depois do ditirambo, hino em honra de Dioniso cujo culto se materializava pela “máscara, pendente de um mastro, (…) objeto de culto, de tal modo que é possível mesmo falar de um deus-máscara; seus adoradores usavam máscaras (…) e máscaras desse tipo eram levadas a seus santuários como oferendas” (1971, p. 49). Símbolo do teatro, e o mais representativo elemento de toda a sua história, a máscara séria e a máscara sorridente aludem aos dois principais géneros do drama ático: a tragédia e a comédia. Ela é o objeto que esconde e que revela, que protege e que transforma, que liberta e permite ao ator representar. Diferente da “máscara” quotidiana

15 A palavra teatro deriva do termo grego theatron, que significa “o lugar de onde se vê”, isto é, o

espaço do anfiteatro ocupado pelo espetador. Para uma contextualização político, religiosa e social do teatro grego, ver Castiajo, 2012, pp.13-30.

16 “O nascimento da tragédia está associado, em quase todo o lado, à existência da tirania”

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que busca ocultar e proteger, a máscara teatral revela a essência da persona representada, imprimindo-lhe uma identidade simbólica e mimética. Ela transforma o corpo que conserva a sua individualidade, servindo-se dele como suporte vivo, corporizando um outro ser, momentaneamente figurado; liberta todo o tipo de proibições sociais, marca a teatralização, dá relevo à expressão corporal e estiliza a gestualidade.

Na tragédia grega, o uso da máscara tinha também a função de não revelar ao auditório as características individuais dos atores masculinos (as mulheres não podiam ser atrizes) que desempenhavam alternadamente todos os papéis das figuras que acediam ao proskenion, utilizando, por isso, as máscaras femininas e até as infantis.

As representações dramáticas na Grécia Antiga realizavam-se perante um auditório incrivelmente extenso, com lugares dispostos em semicírculo num anfiteatro inserido na própria natureza, o que permitia que milhares de pessoas assistissem sentadas a um acontecimento17, cujo significado era ao mesmo tempo educativo, religioso e político.

Em Atenas, inicialmente o teatro era financiado pelos arcontes, os magistrados que organizavam o concurso durante as festas em homenagem ao deus Dioniso ou pelos coregas (cidadãos importantes, que financiavam o coro, nomeados pelos arcontes) que o ofereciam à comunidade. Mais tarde, os dispendiosos custos, com o pagamento do coro e com todas as despesas de produção, passaram a ser assegurados pela cidade-estado. O povo era convidado a assistir aos espetáculos e os cidadãos pobres poderiam receber um pequeno abono para comportar as despesas inerentes à sua participação no evento, estando deste modo associada a tragédia à atividade cívica e ao desenvolvimento político.

Eurípides, juntamente, com Ésquilo e Sófocles são os tragediógrafos mais representativos do período ático ou clássico, do século V a. C.. Ésquilo foi o mais antigo ao passo que Sófocles e Eurípides terão sido contemporâneos18 no teatro de Dioniso. Sófocles, mais preso à tradição, é, por influência de Aristóteles, considerado um poeta trágico por excelência, enquanto Eurípides é visto como um poeta mais moderno, podendo ser mesmo considerado um visionário, porque inovou nos domínios formais da

17 Nas Grandes Dionísias realizavam-se competições dramáticas de tragédias e comédias. “A

ordem das competições dramáticas bem como os dias a elas dedicados continuam a ser questões controversas. (…) Durante a guerra do Peloponeso (…) acredita-se que, durante três dias, eram apresentadas de manhã três tragédias e um drama satírico e à tarde uma comédia.” (Castiajo, 2012, p. 26).

música e do verso e introduziu temas, até então pouco explorados ou desconhecidos da cena teatral e arrojados para a sua época, como por exemplo, o destaque a figuras femininas e a abordagem da dicotomia mulher/homem.

Mesmo não tendo Eurípides merecido, como Sófocles, a veneração de Aristóteles, nem Medeia ter sido considerada a melhor tragédia - a peça modelo - como o foi O Rei Édipo, é uma das mais antigas tragédias, incluída na segunda fase do período áureo da Tragédia Grega, e o seu autor apelidado, pelo Estagirita, de “o mais trágico de todos os poetas”.

A Medeia de Eurípides foi apresentada a concurso, integrada numa tetralogia, composta por mais duas tragédias (Filoctetes e Díctis) e um drama satírico (Segadores) que se perderam. Obteve o terceiro prémio, nas Grandes Dionísias, em Atenas, aquando da sua representação na primavera de 431 a. C.. Deve salientar-se que os prémios eram atribuídos por um júri que tomava em atenção a reação do público, e esta tragédia terá afetado, profundamente, o auditório coevo, chocando-o com uma protagonista tão desmedida e provocando-lhe a “piedade” e o “horror” que, segundo Aristóteles, definiriam a finalidade da tragédia.

No entanto, Medeia “não se trata de uma heroína trágica Aristotélica”, como bem observa Kitto (1972, p. 20).

Enquanto mimesis, a tragédia era uma representação que se ocupava de seres superiores ao homem comum, figuras inconfundíveis dadas a conhecer aos atenienses desde tenra idade também pelas epopeias19, heróis cuja essência era o infortúnio, originado pelo conflito. Uma felicidade iminentemente possível escapava-se, nem que fosse no último momento. O “dilema trágico” também tem como pano de fundo o problema do destino. O protagonista de uma tragédia enreda-se sempre num conflito irresolúvel e que, independentemente da decisão que escolha, estará sempre destinado ao infortúnio.

Podemos dizer que, em Medeia, o trágico tem origem na decisão totalmente livre, solitária e responsável da protagonista que acaba por conduzi-la a uma situação irremediável, impulsionada pela força da paixão e de estados de alma. O pathos, que nasce do conflito, encaminha Medeia para uma hybris (aquele sentimento que conduz os heróis trágicos à violação da ordem estabelecida através de uma ação ou comportamento que desafia os poderes instituídos pelas leis dos deuses, leis da cidade, leis da família,

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leis da natureza) desmedida que irá provocar um infortúnio inexorável. Mas se a catarse é uma das finalidades da tragédia grega, como preconiza Aristóteles, tanto para o autor como para o espetador/leitor, o infanticídio em Medeia cumpre essa função, porque “reveste a modalidade de acto sacrificial, de expiação ou de imolação do sangue de inocentes, susceptível de redimir faltas passadas (…) e do começo de uma vida nova libertada das desgraças do passado e do presente.” (Abreu, 1991, p. 68). O espetador/leitor é levado a refletir sobre as fragilidades e as forças de Medeia e a chegar à conclusão de que deverá usar a razão para evitar erros movidos pelo acerbo da paixão desmesurada. Esta purificação de sentimentos escolhida por Eurípides está intimamente ligada à “presentación de la psicología y los comportamientos de los grandes personajes, que los trágicos extrajeron del material mítico heredado” (Salamanca, 2006, p. 84) que nos permite uma imprescindível e profunda reflexão ética20, ao obrigar-nos a perceber que “la sabiduría de Medea, meramente instrumental, se asienta sobre una profunda ignorância que le impide realizar las elecciones adecuadas entre le bien y el mal porque (…) (‘el arte de saber medir’), expressión utilizada por Platón en el

Protágoras, (…) es absolutamente desconocida para ella” (2006, p. 110).