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TRAGÉDIA DE EURÍPIDES MEDEIA DE SOPHIA DE MELLO BREYNER

1. Análise comparativa da estrutura de Medeia de Eurípides e de Medeia de Sophia

1.8. Terceiro Estásimo

Na ode coral do terceiro estásimo, composto por dois pares de estrofes/antístrofes, o Coro tece um encómio a Atenas e à linhagem dos “Erectidas” (v. 824), os atenienses. Um elogio que Pucci (1980) identifica como corpóreo e afetuoso, na medida em que abrange não só os atenienses, “de há muito” (v. 824) - figuras impessoais de tão vastas que são - como os atenienses presentes nas Grandes Dionísias

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e que assistem à representação teatral, enaltecida também ela, assim como o seu autor: “a praise that the poet addresses to his audience and indirectly to his own artistic production.” (p. 116).

Uma terra excelsa e uma gente virtuosa, talvez idealmente52 engrandecida pelo espírito patriótico, pois a realidade a que assistimos há pouco, mostrou-nos Egeu, que na sua generosidade e piedade prometeu abrigo a Medeia no seu desterro, mas sabemos, tendo garantido uma valiosa recompensa – a garantia de descendência –, pelo que “Aigeus respects her for it because it can be useful to him.” (Luschnig, 2007, p. 152).

No entanto, é na “urbe hospitaleira, (…) um paraíso de serenidade lendária, onde não cabem as tempestades de sentimentos que perturbam Medeia” (Silva, 1985, pp. 42- 3) que esta se refugiará depois de desonrada pelo crime que planeia cometer. E é perante esta contradição entre o local paradisíaco onde a mulher-demónio encontrará refúgio, que reside a reflexão dos críticos e estudiosos, como Pucci, que encontram neste louvor uma mensagem muito mais lata e reveladora da essência da obra sobre a qual nos debruçamos até porque não ignoram a história de Erecteu que curiosamente é tecida por factos que se assemelham à ação que estamos a acompanhar53.

O Coro, indignado, repudia a ideia de que para Medeia “seja lícito deleitar-se no mundo belo e puro de Atenas” (Silva, 1985, p. 43). Assim, na segunda metade da ode, implora a Medeia para não matar os filhos. Contudo, alerta-nos Pucci, esta súplica não é de todo consistente, porque o “chorus does not evoke any divinity endowed with ethical power” (1980, p. 116). Ao invocar as Musas, Eros e Harmonia torna a ode fraca no seu aspeto rogatório, mas “powerful in its literary effects” (Pucci, 1980, p. 117) que vão dar à peça um significado de realização plena54.

52 Para Luschnig (2007, pp. 152-4), “(…) the ideal is, as often, removed from the reality of life.

(…) the ideal requires a delicate balance. (…) to inspire the citizens to live up to their ideals and to shed patriotic tears over the inanition of those ideals. (…) All members of the audience will admire his ideal, but will also know that excesses are inevitable and that gentle breezes do not last forever. Even in Athens it is not always spring.”

53 Como refere Grimal (1992, p. 143), “Uma lenda aberrante afirma que Erecteu veio do Egipto,

numa altura em que a fome dizimava a Ática. Teria importado trigo e introduzido na região a cultura deste cereal, merecendo assim o reconhecimento dos habitantes, que o elegeram como rei. (…) Numa guerra travada contra os Atenienses (…) Erecteu perguntou ao oráculo de Delfos como poderia vencer o inimigo. O oráculo respondeu que para tal deveria sacrificar uma das suas filhas. De regresso a Atenas, ele imolou, segundo uns, Ctónia, segundo outros Protogenia.”.

54 Pucci (1980, pp. 120-1) escreve: “The play Medea is an artistic achievement of sophia and as

such it belongs to the spiritual enclave of Aphrodite, Sophia, and the Erotes. (…) Euripides’ play obviously belongs to the garden of Aphrodite, Sophia, and the Erotes, but these holy patrons intimate violence, injustice, and cunning together with grace, beauty, and wisdom.”

Com perguntas retóricas, o Coro lembra a Medeia que esta não terá coragem para investir tal golpe, pois o ânimo enfraquecerá face ao sofrimento e à presença dos filhos. Uma coisa são os planos mentais; outra é a sua execução.

A estrutura regular da ode coral de Eurípides é substituía, em Sophia, por uma ode composta por três estrofes com um número irregular de versos. A primeira estrofe é formada por doze versos. A segunda estrofe diminui o número de versos para dez e a terceira apresenta mais versos do que a soma das duas estrofes anteriores: vinte e três. No entanto, a fidelidade temática é exímia sendo Atenas e os atenienses igualmente enaltecidos pela voz deste Coroandreseniano que considera a cidade

(…) chão intacto e sagrado, (…) onde se funda

A perfeição do homem. (p. 53)

E partindo das virtudes dos futuros anfitriões de Medeia, o Coro tenta persuadir a princesa bárbara a desistir dos seus intentos, através de uma interpelação em tom acusatório, que antecipa para o presente a morte dos filhos por parte da mãe.

A ti que matas os teus filhos. (p. 54)

As mulheres de Corinto, experientes e sensatas, passam da implacável incriminação ao apelo à medida (metron)certa, à “moderação” que deveria regular toda a ação humana, como anteriormente já referimos, e que correspondia a um princípio fundamental da filosofia de Protágoras:

Mede a morte que lhes vais levar E o sangue que tu vais atrair Sobre ti mesma. (p. 54)

A persuasão do Coro, para que Medeia desista dos seus propósitos é, em Sophia, reforçada, uma vez que é feita não só através do discurso verbal, mas também através de gestos que não estando descritos em didascálias são perfeitamente percetíveis pela escolha vocabular que retrata o modo de implorar condizente com a atitude tradicional de suplicante.

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Com todo o nosso ser, Medeia,

Pelos teus joelhos te imploramos. (p. 54)

Podemos facilmente imaginar o imponente impacto de quinze mulheres que cantam de pé, dirigindo-se a Medeia e que, de repente, com todo o seu ser, tomam para si as palavras que proferem e encenam-nas no próprio corpo. Inclinam-se colocando as suas mãos esquerdas à altura dos joelhos de Medeia, mesmo sem lhe tocarem55, e com as mãos direitas levantadas à altura do queixo daquela a quem se dirigem, vivificam as referências deíticas à figura para a qual todas as atenções se concentram: “os filhos que são teus (…) os teus pensamentos (…) o teu braço (…) a carne dos teus filhos/ o horror da tua audácia” (p. 54).

Pressentimos ainda a eficácia visual extraordinária deste grupo de mulheres a instigar Medeia através das suas palavras acompanhadas por gestos, criando uma imagética, poeticamente dramática, ao colocar diante da audiência a impossibilidade desta mãe

Ver de frente os (…) filhos suplicantes E mergulhar no sangue as (…) mãos. Com pensamento firme e resoluto. (p. 54)

O Coro coloca assim a audiência perante uma coreografia poética que permite ver metaforicamente a desmesura de tão hediondo crime56. Adivinhamos como acenam negativamente a cabeça quando entoam: “Não, Medeia, tu não poderás” (p. 54); como desviam o olhar de Medeia, olhando de frente a audiência, ao proferirem: “Ver de frente” (p. 54); como as mãos deixam a posição eternizada por Ingres57 e se unem, simbolizando o “mergulhar” (p. 54) ao mesmo tempo que regressam à posição ereta, cantando os versos finais “pensamento firme e resoluto” (p. 54).

55 De notar, como observa Romilly (1972, p. 26) que, “Os actores, sobre a cena, não se

misturavam com os coreutas da orquestra; e os coreutas, esses nunca subiam para a cena”.

56 Seguindo a interpretação de Pulquério (1991) sobre este “grande monólogo de Medeia”,

Ferreira, 1997, p. 71, n. 30, entende que o Coro até este momento ainda não se convencera verdadeiramente das “intenções filicidas de Medeia”.

57, Referimo-nos à célebre composição intitulada “Júpiter e Tétis” (1811), um óleo sobre tela