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Medicina Transfusional e Rede de Transfusão em Portugal

I. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1. Segurança do Doente e a Medicina Transfusional

1.2. Medicina Transfusional e Rede de Transfusão em Portugal

A Medicina Transfusional é uma parte integrante da moderna assistência à saúde. Esta consiste na utilização terapêutica do sangue e dos componentes sanguíneos, ou seja, da transfusão sanguínea. A transfusão de sangue consiste na perfusão de um determinado volume de sangue ou componente sanguíneo, proveniente de um dador saudável, a um doente. Esta serve de suporte a inúmeros procedimentos médicos e é usada também no tratamento de algumas patologias, como por exemplo da anemia. Se usada correctamente pode salvar vidas e melhorar a saúde dos doentes. No entanto, esta como há semelhança das demais práticas

34 médicas não é isenta de riscos. E embora seja uma prática que é conhecida desde tempos remotos, sempre foi acompanhada por barreiras à sua aplicação devido às questões essenciais de segurança que se iam colocando. (OMS, 2003)

A história da transfusão é marcada por vitórias e derrotas, em que a “imparável sucessão de crises incentivou o desbravamento do desconhecido e a superação de infinitas metas que iam aparecendo”. E assim se constrói o conhecimento. (Pacheco, 2003)

Desde tempos imemoriais se identificou o sangue com a vida ou com algo de mais imaterial e indefinível que constituía a sua misteriosa essência. Pacheco (2003) refere que “o sangue era identificado como o próprio pulsar da vida, condição indispensável de saúde e veículo das qualidades que adornavam o perfil dos triunfadores, dos heróis ou dos santos mártires mas também, fluido misterioso que transportava os influxos da maldade, da corrupção, do crime ou do vício”.

Cedo, a inteligência e a intuição humanas começaram a antever a possibilidade de utilizar o sangue como remédio para restituir a saúde, as forças perdidas ou mesmo o vigor da juventude aos velhos debilitados ou aos doentes enfraquecidos. (Pacheco, 2003)

Durante a idade média a transfusão de sangue adquiriu particular interesse nas comunidades científicas e variadas experiências foram realizadas. No século XVII surge a chamada cirurgia transfusória, que consistia em injectar sangue nas veias com finalidades terapêuticas. (Pacheco, 2003)

Segundo Pacheco (2003), pode ser apontado como pioneiro da transfusão o monge beneditino D. Robert Des Gabets, que em 1658 referiu a efectiva introdução de sangue de um homem são ou qualquer outro animal nas veias de um homem enfraquecido ou doente. (Pacheco, 2003)

As experiências persistem um pouco por todo o mundo, no entanto esta prática não obtinha consenso entre a comunidade científica da época, devido aos elevados riscos que acarretava para os doentes, pois na maioria dos casos “apressava-lhes a morte”. Assim, no final do século XVII o Parlamento Francês decidiu proibir definitivamente a transfusão, atitude apoiada pelo próprio papa. Pacheco (2003) considera que “esta proibição provocou a primeira grande crise da história da medicina transfusional, o que fez com que durante os séculos XVII e XVIII se verificasse um hiato de silêncio científico nesta área”.

35 No entanto, no século XIX, a transfusão volta a ganhar interesse e importantes descobertas foram feitas. Novas experiências foram realizadas com base nas novas descobertas e os resultados da transfusão eram cada vez mais animadores. Mas este crescente interesse levou a que a transfusão se generalizasse no tratamento de todas as doenças, no fundo era como se servisse para solucionar todos os males. Tudo isto fez com que se multiplicassem o número de insucessos por acidente transfusional e nova crise se instalasse. (Pacheco, 2003)

Durante umas décadas a transfusão foi novamente esquecida, até que no início do século XX ganhou novo impulso pelas descobertas essenciais entretanto realizadas, que à medida que ocorriam tornavam a transfusão mais eficaz e segura. Para estas importantes descobertas contribuíram as duas Grandes Guerras Mundiais, bem como outras de menores dimensões, que ocorreram durante esse século. Citando Pacheco (2003): “É em períodos de crise que se fazem grandes descobertas.” (Pacheco, 2003)

Das várias descobertas realizadas há a destacar os trabalhos desenvolvidos por Karl

Landsteiner (1900) e por Ottemberg (1911), que provocaram uma mudança de paradigma. Landsteiner, classificou os grupos sanguíneos em A, B e C e uns anos mais tarde Ottemberg

fez a sua aplicação prática compatibilizando dador e receptor da transfusão pela grupagem do sangue de ambos. Importante procedimento para a segurança da transfusão. Se até então, a transfusão era uma intervenção de elevado risco e alta imprevisibilidade de efeitos e de elevada mortalidade, agora o sangue poderia mesmo ser fonte de vida. (Sousa G. , 2000)

Até à década de 80, muitas outras experiências foram realizadas e muitas descobertas foram feitas, que em muito contribuíram para o desenvolvimento da medicina transfusional. Foi nesta década que se concluiu que a transfusão podia ser veículo de transmissão de doenças virais de elevada morbilidade e mortalidade. No entanto vinte anos depois, o risco de transmissão dos vírus das hepatites B e C e do vírus da imunodeficiência adquirida era mínimo e sob controlo no mundo ocidental. (Sousa G. , 2000)

Os riscos inerentes à transfusão foram ao longo dos tempos diminuindo, no entanto esta continua a ser uma terapêutica de risco, responsável por alguns acidentes, embora muitas vezes salvadora. (Pacheco, 2003)

36 No início do século XXI, surge nova preocupação, os efeitos adversos associados à transfusão, maioritariamente resultantes do erro laboratorial em imuno-hematologia e do erro humano. E portanto novos desafios se instalaram. (Sousa G. , 2000)

Em Portugal, à semelhança do resto mundo, a transfusão só começou a ganhar visibilidade a partir do século XX. Nesse sentido é de destacar o trabalho realizado pelo médico António Fânzeres, do Hospital Geral de Santo António no Porto, que em muito contribuiu para o desenvolvimento da ciência da transfusão em Portugal. (Pacheco, 2003)

Mas foi em 1958, que foi dado o grande passo no reconhecimento da medicina transfusional com ciência. Pelo Decreto-Lei nº41 498 de 2 de Janeiro de 1958, foi criado o Instituto Nacional do Sangue (INS) em Portugal. O INS foi criado com base na premissa de que o sangue era escasso, dispendioso e pouco estudado para ser aplicado com segurança. Segundo o artigo 2º algumas das atribuições do INS passavam por, “coordenar, orientar e fiscalizar (…) as actividades relacionadas com a colheita, preparação e fornecimentos de sangue e seus derivados, para serem empregues como agentes terapêuticos”, bem como “estudar os problemas relativos à aplicação do sangue em medicina, procedendo (…) a trabalhos de investigação”. (Diário do Governo, 1958)

No entanto apenas 1976, por despacho da Secretaria de Estado da Saúde, são definidas as linhas gerais de um Serviço Nacional de Sangue e os princípios orientadores fundamentais relativamente ao acesso universal à terapêutica de sangue. Nesse mesmo ano, é elaborado um esboço da futura Rede Nacional de Transfusão Sanguínea. (IPST, 2011).

Nos anos 80, problemas como a falta de sangue e o aparecimento de doenças emergentes como a SIDA, vieram acentuar as ineficiências existentes e a ausência de organização nacional clara e eficiente. Por outro lado, a maior generalização e aperfeiçoamento da terapêutica transfusional, o desenvolvimento da estrutura de prestação de cuidados de saúde e a diferenciação e sofisticação das técnicas médicas e cirúrgicas, levaram a necessidades crescentes em componentes sanguíneos e consequentemente à disseminação de múltiplos serviços de sangue. Devido à complexidade do processo e às exigências científicas, técnicas e de segurança, tornou-se ainda mais clara a necessidade de uma definição precisa das regras a aplicar desde a colheita à administração terapêutica. (IPST, 2011)

Em 1985, o Conselho da Europa, na Recomendação nº R(85)5, propôs um modelo de programa para a formação de futuros especialistas em transfusão de sangue. Para se responder

37 à crescente necessidade de componentes sanguíneos, aos desenvolvimentos biotecnológicos associados à medicina transfusional e também, pelo facto de a transfusão ser considerada um actividade de alto risco para a saúde pública. Portugal aderiu a esta recomendação com a criação da especialidade de Imuno-Hemoterapia e dos respectivos internatos em 1981. (Espírito Santo, 2009)

O reconhecimento destas necessidades culminou com a criação do Instituto Português do Sangue (IPS) em 1990, pela Lei nº25/89 de 2 de Agosto e pelo Decreto-Lei nº294/90 de 21 de Setembro. O IPS era então um organismo público com personalidade jurídica e autonomia técnica, administrativa e financeira. No mesmo ano foi criada a Rede Integrada de Serviços. O Serviço Nacional de Sangue era agora constituído pelo IPS, pelos Centros Regionais de Sangue (CRS) e pelos Serviços de Imuno-Hemoterapia (SIH) dos hospitais. O IPS tinha competências normativas e de coordenação do sector. Os CRS tinham competências operacionais de colheita, processamento, distribuição e supervisão técnica regional. Os SIH tinham como missão a colheita e processamento e também encerrar o elo da cadeia transfusional através de uma prática global de qualidade da transfusão. (Nascimento, 2008)

Em 24 de Julho de 2007, foi publicado o Decreto-Lei nº267/2007, que veio alterar parte do normativo nacional no que respeita à transfusão e criar regras que deverão ser cumpridas. São identificados dois tipos de serviços: os que colhem, analisam, processam, armazenam e distribuem o sangue e componentes, denominados Serviços de Sangue (SS); e os que aplicam o sangue e componentes, denominados Serviços de Medicina Transfusional (SMT). (Nascimento, 2008)

O artigo 10º do Decreto-Lei nº267/2007 de 24 de Julho, define SMT como unidades

hospitalares que armazenam, distribuem e disponibilizam sangue e seus componentes, efectuam testes de compatibilidade para utilização exclusiva do hospital e podem incluir outras actividades de transfusão com suporte hospitalar. O mesmo Decreto-Lei, define no artigo 7º SS como estruturas ou organismos responsáveis pela colheita e análise do sangue humano ou de componentes sanguíneos, qualquer que seja a sua finalidade, bem como pelo seu processamento, armazenamento e distribuição quando se destinam à transfusão. (Diário da República, 2007)

38 Em 2011, de acordo com o resumo da actividade dos serviços nacionais de sangue e de medicina transfusional, existiam em Portugal, 30 Serviços de Sangue (SS) e 40 Serviços de Medicina Transfusional (SMT). (ASST, 2011)

Em 2007, é atribuído ao IPS a designação de Instituto Público, passando a designar- se de IPS, IP, conforme descrito no Decreto-Lei nº270/2007 de 26 de Julho e publicado na Portaria nº811/2007 de 27 de Julho. Também foi redefinida a sua missão. Agora o IPS, IP tinha a missão de regular a nível nacional, a actividade da medicina transfusional e garantir a disponibilidade e a acessibilidade de componentes sanguíneos de qualidade, seguros e eficazes. (Nascimento, 2008)

É também criada pelo Decreto Regulamentar nº67/2007 de 29 de Maio, a Autoridade para os Serviços de Sangue e da Transplantação (ASST), com competência para fiscalizar o cumprimento da legislação por parte dos Serviços de Sangue e com capacidade para autorizar ou propor o encerramento de serviços ou parte destes. O seu funcionamento foi definido através da Portaria nº645/2007 de 30 de Maio. (Nascimento, 2008)

Finalmente em 2012 e de acordo com o plano de medidas a implementar pelo governo para fazer face à actual conjuntura económica nacional, foi criado o IPST, IP pelo Decreto-Lei nº39/2012 de 16 de Fevereiro e publicado pela Portaria nº165/2012 de 22 de Maio. Esta estratégia foi uma estratégia de fusão, que permitiu englobar o IPS, os Centros de Histocompatibilidade e a ASST, numa só entidade, o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). A missão do IPST, IP é a de “garantir e regular, a nível nacional, a actividade da medicina transfusional e da transplantação e garantir a dádiva, colheita, análise, processamento, preservação, armazenamento e distribuição de sangue humano, de componentes sanguíneos, de órgãos, tecidos e células de origem humana”. (IPST, 2012)

A Portaria nº165/2012 de 22 de Maio determinou também a criação da Coordenação Nacional do Sangue e da Medicina Transfusional à qual compete entre outras funções, garantir a harmonização nacional da rede de medicina transfusional, desde a colheita à administração de componentes sanguíneos e promover a articulação com os serviços hospitalares. (Diário da República, 2012)

A Rede Nacional de Transfusão de sangue foi criada em 1990 através do Decreto-Lei nº294/90 de 21 de Setembro e foi definida como o “conjunto de órgãos e serviços responsáveis pelas actividades relacionadas com a colheita, preparação, embalagem,

39 conservação e fiscalização da qualidade e distribuição de sangue humano e derivados”. O mesmo decreto define como órgãos constituintes o Instituto Português do Sangue e os serviços de transfusão de sangue dos hospitais, o Instituto Português de Oncologia e as unidades de âmbito militar. Sendo que ao Instituto Português do Sangue compete a orientação e a coordenação da acção dos restantes serviços integrantes da rede nacional de transfusão de sangue e a emissão de instruções técnicas convenientes. Estas considerações prevalecem actualmente. (Diário da República, 1990)

Em 2001, a OMS emitiu recomendações no sentido de se implementarem nos hospitais comissões de transfusão. Segundo a OMS, a Comissão de Transfusão Hospitalar (CTH) deve ter autoridade sobre a estrutura política do hospital em relação à transfusão e resolver qualquer problema a ela associado. Deve também fazer valer dentro do hospital onde opera, as políticas e directrizes nacionais e monitorizar o uso clínico do sangue e componentes sanguíneos (OMS, 2001).

De acordo com a OMS, as funções da CTH devem ser:

i) Monitorizar a segurança, adequação e confiabilidade do fornecimento de sangue, produtos sanguíneos e alternativas à transfusão;

ii) Desenvolver sistemas e procedimentos para a implementação das directrizes nacionais para o uso clínico do sangue dentro do hospital;

iii) Promover a efectiva implementação das directrizes nacionais através da educação e formação dos profissionais envolvidos no processo de transfusão;

iv) Monitorizar o uso de sangue e componentes sanguíneos no hospital;

v) Monitorizar a implementação das directrizes nacionais no hospital e tomar medidas adequadas para superar qualquer factor que dificulte a sua implementação;

vi) Analisar os casos de eventos adversos graves ou erros associados à transfusão, identificar quaisquer acções correctivas necessárias e encaminhá-los para a autoridade nacional responsável.

A OMS considera que a comissão de transfusão hospitalar deve ser multidisciplinar, abrangendo todos os departamentos do hospital que estão envolvidos no fornecimento e prescrição de componentes sanguíneos. Aconselha a inclusão de:

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 Responsável do serviço de medicina transfusional do hospital;

 Quando aplicável um representante do serviço de sangue, que fornece os componentes sanguíneos ao hospital;

 Representante da equipa responsável no hospital pelo fornecimento de fluidos de reposição intravenosos, produtos farmacêuticos, dispositivos médicos e equipamentos estéreis descartáveis;

 A enfermeira directora.

Embora deva ser constituída essencialmente pela componente clínica do hospital, pode e deve também envolver outros colaboradores do hospital, nomeadamente o administrador, o director financeiro e o responsável pelos registos médicos.

Em 2010 a OMS reforça novamente a relevância da criação de CTH nos hospitais. Em recomendação sobre segurança dos doentes em transfusão, sugere que é necessário estabelecer CTH e designar responsáveis pela segurança das transfusões nos hospitais. Considera que devem ser funções fundamentais das CTH:

“(…)

i) Estabelecer um sistema de hemovigilância para a monitorização, notificação e investigação de casos de transfusão adversos ocorridos no hospital; se possível, isto deve estar ligado a sistemas de hemovigilância regionais e nacionais;

ii) Elaborar e monitorizar indicadores, tais como número de reacções a transfusão e proporção de sangue com data expirada e avaliar tendências em qualidade e segurança do processo de transfusão médica;

iii) Analisar dados de hemovigilância para, quando necessário, tomada de medidas de correcção e prevenção;

iv) Analisar as práticas de utilização de sangue e transfusão, incluindo controlos clínicos.

(…)”

Em Portugal, a existência de CTH nos hospitais não é um requisito legal, daí que fica ao critério de cada instituição a adesão ou não a esta recomendação. No entanto, apesar da não

41 obrigatoriedade existem em Portugal várias instituições de saúde que dispõem deste tipo de comissão.

Segundo Romeiras (2000), devido ao carácter multidisciplinar da transfusão sanguínea, deve existir ao nível hospitalar uma comissão de transfusão, por forma a reunir os principais intervenientes nesta actividade terapêutica. Considera também que a CTH deve assegurar a aplicação das regras de segurança da actividade transfusional e divulgar a declaração de eventos adversos em transfusão. (Romeiras, 2000)

Também Araújo (2006) considera que, a CTH criada no Hospital de Santa Cruz em 2003, foi decisiva na implementação das bases de um futuro programa de hemovigilância, na medida em que criou e desenvolveu canais de comunicação efectivos entre clínicos e outros profissionais de saúde envolvidos na transfusão sanguínea. (Araújo & et al., 2006)

Noutros países europeus, como o Reino Unido e a Itália, a criação de CTH é um requisito legal. No entanto, segundo Liumbruno e Rafanelli (2012), não basta assegurar que as CTH são criadas, é também necessário que elas funcionem com eficácia e eficiência. Estes autores consideram também, que o principal desafio das CTH é a educação profissional dos prestadores de cuidados de saúde envolvidos na transfusão. (Liumbruno & Rafanelli, 2012)

No entanto, deve estar-se ciente que existe o perigo, que sem o apoio adequado, recursos e autoridade real, as CTH nem são verdadeiramente funcionais, nem vão ter um impacto verdadeiramente robusto na prática transfusional. (Liumbruno & Rafanelli, 2012)

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