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3 O APORTE DO CONCEITO DE FRUSTRAÇÃO SOBRE A LIDERANÇA

4 AS IMPLICAÇÕES DA FRUSTRAÇÃO SOBRE A VIDA MENTAL

4.3 Melanie Klein e a Frustração

O conceito de frustração é central na obra de Melanie Klein e seu estudo deste conceito parte da observação e análise do funcionamento mental das pessoas em interação. À maneira pela qual as pessoas se relacionam, Klein deu o nome de

Posição71 Esquizo-Paranóide e Posição Depressiva. Estas duas posições, intercambiáveis entre si, igualmente fornecem material para que se possa compreender as diferentes maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a frustração e, por extensão, com a realidade. A estas duas posições correspondem modalidades de angústia (ansiedade) que podem ser caracterizadas ou pelo temor de ser lesado pelo objeto (angústia Esquizo-paranóide) ou pelo temor de lesar ao objeto (angústia depressiva).

Melanie Klein emprega, para se referir à ansiedade, termos de angústia psicótica, mas a ansiedade tratada por ela em sua teoria, refere-se àquele tipo de sentimento do qual somos acometidos sob a influência de circunstâncias internas ou externas. A qualidade da angústia na relação de objeto permite a diferenciação entre a Posição Esquizo-paranóide e a Posição Depressiva. O elemento comum entre estes dois tipos de angústia é o caráter de ameaça existente em ambas e que se traduz na ameaça sobre si mesmo ou sobre o objeto. É no contato humano que estas posições tornam-se mais evidentes. O outro, aqui, é sinônimo de realidade externa.

Se aceita-se a idéia de que o ser humano é um ser pulsional, aceita-se que todo encontro humano é também um encontro pulsional no qual há vivências de prazer (coincidência de pulsões ou desejos) e vivências de desprazer, motivadas por conflitos de interesses (pulsões não coincidentes). Todo encontro humano é, pois, uma experiência emocional e, como tal, remete-se à existência de um mundo interno. Quando a realidade não se opõe à satisfação, não há conflito, não há frustração, não há ódio. O problema reside, pois, naquilo que frustra e é, ao mesmo tempo, chance para inovar ou ampliar horizontes mentais.

Para Klein, a administração do conflito de interesses encontra-se relacionada com o interjogo dinâmico das relações objetais estabelecidas na Posição Esquizo- paranóide e Depressiva, segundo a pauta em que se encontra o indivíduo. Klein concebe, no interjogo de ambas, a atuação das forças integradoras (Pulsão de Vida) e desintegradoras (Pulsão de Morte) mobilizadas pela angústia.

Na Posição Esquizo-Paranóide, o objeto é percebido de forma parcial. Este conceito guarda uma dificuldade semântica pois refere-se ao fato de que, nesta Posição, o objeto é percebido como uma totalidade a partir da experiência

71 O conceito de posição é dado por SEGAL (1975, p 11) como “(...) uma configuração específica de relações de objeto, ansiedades e

emocional. Ou seja: quando gratifica é bom; quando frustra, é mau. A angústia típica desta posição refere-se à preservação do próprio indivíduo (angústia paranóide), pelo temor de ser lesado pelo objeto. Isto equivale a dizer que a realidade, representada por pessoas, objetos, conceitos ou teorias somente são percebidos como “bons” quando não contrariam o desejo, quando o satisfazem, quando ratificam determinada postura e, portanto, quando não frustram. O critério de veracidade não é depreendido da verificabilidade de um fenômeno, mas do prazer que ele propicia. Inclusive, o prazer resultante da manutenção das próprias concepções. Por isso, trata-se de angústia relativa à preservação do próprio indivíduo, que sente o que o contraria como ameaça a si próprio. Vê-se, nesta

posição, a atuação daquilo que Freud denominou de Pulsão de Morte72 como o

retorno ao reino do inanimado, na qual o que se deseja é o quietismo mental, a ausência de distúrbio provocada pelas diferenças. Frustração, na Posição Esquizo- Paranóide, é igual a retirada do amor ao objeto.

Assim se realidade é, em termos mentais, igual à frustração, na Posição Esquizo-Paranóide o conhecimento da realidade torna-se inviável. De um lado porque, ao se produzir, já, de início, imputa a frustração representada pela incerteza, pela dúvida e mesmo pela constatação de que nossas crenças nem sempre se traduzem na melhor interpretação de um dada realidade – o que representa um ferimento narcísico. Por outro, se o critério de veracidade é aquele do prazer, nada há a questionar em uma dada percepção da realidade: ela se torna, na fantasia, indefensável a qualquer crítica que se possa lhe opor. “Na Posição Esquizo- Paranóide, a frustração e a angústia de um lado e a gratificação e a satisfação de outro instalam um mundo bem definido (bom/mau), um mundo de certezas, no qual campeia a onipotência dos pensamentos” (Gondim, 1992, p. 168). Na Posição Esquizo-Paranóide incluem-se as atividades psicóticas de pensamento, tratadas por Bion, nas quais encontram-se presentes o exercício de controle do objeto mediante a conversão das diferenças em igualdade visando à abolição de estímulos.

Esta tendência na Posição Esquizo-paranóide verifica-se, segundo Klein (1982,

p.328), devido a uma relação narcísica73 de objeto que comporta idealizações, pois o

Paranóide, (...) de modo que o indivíduo pode estar sempre oscilando entre as duas posições”

72 Laplanche e Pontalis (1983, p. 528) dizem que “no quadro da última teoria freudiana das pulsões”, a pulsão de morte, “designa uma

cateoria fundamental de pulsões que se contrapõem às pulsões de vida e que tendem para a redução completa de tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo ao estado anorgânico. Voltadas inicialmente para o interior e tendentes à autodestruição, as pulsões de morte seriam secundáriamente dirigidas para o exterior, manifestando-se então sobre forma da pulsão agressiva ou destrutiva”.

73 Relação na qual o objeto não é considerado senão em função dos interesses e necessidades daquele que com ele se relaciona, de forma

objeto não é senão percebido como uma extensão da própria pessoa. Nesta posição, surge o desejo de controlar o outro como expressão do desejo de controlar a si próprio. O controle é exercido no sentido de evitar a frustração. “A projeção das partes destacadas do eu em outra pessoa”, diz Klein (1982, p.329), “influi, essencialmente, nas relações objetais, na vida emocional e na personalidade como todo”. Dando prosseguimento a seu raciocínio, Klein diz que o sentimento de solidão e o medo de separação são frutos do medo da destruição do objeto pelos impulsos agressivos dirigidos contra ele em decorrência dos processos de divisão e projeção subjacentes a este medo. Ou seja: tememos a separação porque sentimos que o objeto bom internalizado (objeto interno) tenderá a desaparecer também de nosso mundo interior, da mesma forma com que se afasta no exterior.

Desta forma, perda de objeto na Posição Esquizo-paranóide é vivido como desalento, desamparo e exposição aos perseguidores internos. A própria pessoa não assume a responsabilidade pela perda. Na Posição Depressiva, o indivíduo sofre a perda e assume sua responsabilidade por ela – por isso Klein considera que somente nesta Posição torna-se possível a reparação genuína do objeto lesado.

Embora a frustração seja sentimento desprazeroso e, portanto, aparentemente incompatível com o funcionamento mental que estará sempre visando a consecussão do prazer, na Posição Depressiva ela pode ser mais tolerada, pois a

relação de objeto é total . Isto é, nela torna-se possível aceitar as frustrações

impostas pelo objeto mantendo-o como um bom objeto, pois torna-se possível, vivencialmente, sua percepção de forma total com limites e possibilidades.

As diferenças entre desejo e realidade, capazes de originar a frustração, são aceitas segundo a capacidade amorosa do sujeito frustrado. Isto é o mesmo que afirmar que as coisas não são boas ou más porque gratificam ou frustram, mas que assim podemos significá-las, dependendo de nossos próprios limites de aceitação (ou de amor). Esta percepção revela maior contato com a realidade e sua relatividade: bondade ou maldade tornam-se qualidades com as quais nomeamos as experiências que ultrapassaram ou não nossa própria capacidade de tolerância à frustração. Há, pois, discriminação entre realidade interna e externa, ambas limitadoras e possibilitadoras.

Outra característica assinalada por Klein, no tocante à Posição Depressiva, é a angústia relacionada com a preservação do objeto (angústia depressiva). A percepção da realidade interna e externa permite a introdução da dúvida,

beneficiando o objeto e gerando maior tolerância à frustração imposta por ele, ante ao temor de perdê-lo. Isto ocorre porque, junto à vivência da frustração, os aspectos gratificadores do objeto permanecem ou podem ser retomados em momento posterior a frustração.

“A Posição Depressiva e a instauração do Princípio de Realidade introduzem o reino da possibilidade, da hipótese, da dúvida, da convivência com o conflito entre o ego e a realidade e o ego e seus desejos e ideais”. (GONDIM, 1992, p. 168). Encontra-se, na Posição Depressiva, a possibilidade de adquirir conhecimento e inovar, pois nela se torna possível a convivência mais amigável com as angústias decorrentes das frustrações porque se sabe, vivencialmente, e se aceita que não há absolutos, que todos somos falíveis e incompletos. Que teorias – como as pessoas – nunca se encontram prontas e acabadas mas, enquanto vivas, abertas a questões e a acréscimos que as reparam. Como diz Eliade (1999 p. 210): “O homem faz-se a si próprio e não consegue fazer-se completamente senão quando se dessacraliza e dessacraliza o mundo”.

A capacidade de pensar, na Posição Depressiva, pode instalar-se porque se torna possível a convivência com a dúvida até que o tempo e a experiência permitam esclarecê-la. Isto representa, em últimos termos, o que Bion denominou de capacidade negativa: adiamento da satisfação e contato com a frustração sem irritação.

A meu ver, o que determina a qualidade de relação que o indivíduo estabelece com objetos – sejam eles outros indivíduos, coisas e situações – é representado por seu maior ou menor desenvolvimento mental. Na Posição Esquizo-Paranóide, o indivíduo utiliza de qualquer objeto, humano ou não humano, para satisfazer-lhe os próprios desejos sem atentar para as conseqüências de seu gesto sobre o objeto. O objeto é tratado como se fosse parte da pessoa. Na Posição Depressiva, percebe-se o indivíduo preocupado não apenas com seus próprios desejos e necessidades, mas também com as resultantes de seus atos sobre o outro, qualquer que seja ele, porque o valoriza e os percebe de forma separada de si próprio.

Sintetizando, Melanie Klein postula que o trato com a frustração depende da posição mental na qual se encontra o indivíduo. Na Posição Esquizo-paranóide, os objetos serão percebidos como maus na medida em que frustram. Na Posição Depressiva, há a percepção do objeto total, com suas possibilidades e limites, e a frustração pode ser tolerada. Exatamente por isto, é – na opinião de Klein – nesta

posição que o indivíduo consegue inovar, pois o pensamento e a aquisição de conhecimento torna-se possível. Sua teoria – embora parta de conceitos freudianos

– difere do pensamento freudiano, que trata a frustração em termos quantitativos, ao

interpretar a relação com a frustração como fenômeno qualitativo, expresso na

modalidade de percepção do objeto.

O conceito da Posição Esquizo-paranóide como manifestação da vida mental de forma dividida, desorganizada e desintegrada em contraposição ao de Posição Depressiva, como uma forma integrada e organizada da vida mental revelar-se, assumiu ponto central no pensamento psicanalítico de Bion. É a partir da dinâmica entre estas duas Posições, que integra e desintegra, que Bion entenderá a problemática do pensamento como “tolerância à dúvida e tolerância a um sentido de infinito” . Ou seja, como capacidade negativa: termo que retirou de John Keats e que descreve a possibilidade de “ser em incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer irritação.”74