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Memória alimentar: prescrições e proscrições

Ellen Woortmann (UnB)

1 Este ensaio, em outra versão, foi apresentado como palestra de encerramento do III Colóquio Franco-Brasileiro, organi- zado por Julie Cavignac, em 2015, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O objetivo do presente ensaio é desnaturalizar, dis- cutir, dimensões da memória alimentar, muitas vezes lida como parte da tradição alimentar, de grupos sociais ou pessoas. Partindo da distinção entre memória “de” e memória “para”, a análise será centrada em alguns casos-chave, a partir dos quais práticas prescritivas ou proscritivas serão analisadas. Trata-se de um tipo de memória do passado que incide, na forma de práticas e comportamentos conscientes no presente, como proje- ção para o futuro.

Na percepção clássica de Halbwachs (1968), a noção de seletividade da memória e o processo de articulação entre a memória coletiva e a individual estão presen- tes. Nesta última, da negociação entre as memórias de indivíduos deve resultar suficientes pontos de contato positivos entre si, de forma a construir uma consistente

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base comum. O presente ensaio ainda que se insira na temática da memória, percebida como expressão de um pensar coletivo (VANSINA, 1985), como parte de uma

mentalité, discute dimensões que dizem respeito à me-

mória de indivíduos/famílias, ou melhor, na acepção dumontiana, pessoas como parte subsumida de um todo mais abrangente, no caso, a família ou o grupo social a que pertence.

Tal como discutido em outro trabalho (WOORT- MANN, 1998), quando se fala de memória, fala-se de coisas distintas sob um mesmo rótulo. O termo memó- ria, em seu sentido amplo, tem sido aplicado ao que se define como história oral, muitas vezes remetendo a mitos de origem de determinada família ou grupo so- cial ou sobre aspectos de eventos de seu passado. Mas vale observar que as “memórias” recuperadas no tra- balho de campo pelo pesquisador lhe são repassadas não como memórias de pessoas ou grupos, mas como narrativas, já devidamente enquadradas, nos ter- mos de Pollak (1988, p. 9). Como será detalhado, es- sas narrativas são estruturadas e expressas, manifestas em práticas alimentares específicas, no mais das vezes remetendo a práticas prescritivas ou proscritivas. Elas operam e são engendradas no âmbito de um habitus, ao mesmo tempo que atua na configuração desse mesmo

Nesse quadro é importante distinguir entre memória coletiva e memória social. Essa distinção foi trabalhada por vários autores, dentre os quais destacamos os clás- sicos de Halbwachs (2006), A memória coletiva, e Con- nerton (1999), com seu How the societies remember. Nos termos de Páez et al. (1993, p. 172),

[…] la memória colectiva se refiere a como los grupos sociales recuedan, olvidan o se reaproprian del cono- cimiento del pasado social, ao passo que a “memoria social se puede concebir como la influencia de ciertos factores sociales tienen en la memoria individual, o me- moria en la sociedad.

Tal como já mencionado anteriormente (WOORT- MANN, 2013) hábitos e padrões alimentares, assim como a memória alimentar, são parte do que o sociólogo Nor- bert Elias (1997) e o antropólogo Pierre Bourdieu (1983) definem como habitus. Ainda que ambos lancem mão da mesma expressão aquiniana, as suas concepções são bastante distintas, ainda que não excludentes.

Para Elias (1997), o habitus é forjado num saber so- cial incorporado, numa relação unidirecional, “de cima para baixo”, isto é, o saber é configurado pela socieda- de, família, escola, grupos sociais, introjetado, incul- cado no indivíduo, nele sedimentado e posteriormente por ele reproduzido. A partir dessa perspectiva, a me-

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mória alimentar socialmente incorporada seria intro- jetada no indivíduo e formaria, então, como que uma ponte entre a continuidade e a mudança, isto é, a in- trodução de algum novo detalhe no que é retido, ajuste em alguma prática, novo ingrediente, novo utensílio, por exemplo. Em sua abordagem há pouco espaço para transformações radicais ou rupturas.

Exemplo dessa memória alimentar inculcada, tradi- ção, pode ser encontrado na própria definição do que é comida. Para os brasileiros em geral, até começos do século XX, o bambu servia apenas como matéria-prima para a estrutura de construções e algum eventual arte- sanato; o seu broto não tinha utilidade. Para os imigran- tes japoneses das ilhas centrais e de Okinawa, chegados ao Brasil a partir de 1908, além de o bambu servir como matéria-prima para construções e ampla gama de arte- sanatos tradicionais japoneses, o seu broto era um ingre- diente reconhecido como fundamental na sua culinária tradicional, como fonte de nutrientes. O saber inculcado na sua memória alimentar ainda no Japão, fez do broto de bambu um de seus alimentos-âncora; por sua vez, a sua existência no Brasil representou a continuidade de seu consumo, fator positivo para a adaptação alimen- tar destes imigrantes. Hoje, com alguns ajustes culiná- rios, algumas mudanças introduzidas, o broto de bambu é parte das iguarias que compõem a apreciada cozinha nipo-brasileira e do consumo em geral.

Por outro lado, o saber inculcado pelo habitus di- fere conforme a região, grupo social ou religioso. No Sul do Brasil, por exemplo, tal como o broto de bam- bu, classifica-se o broto de samambaia como não “co- mestível” e mesmo não “comível”. Ele é pensado tão somente como “o vir a ser” da futura folha que será co- lhida e vendida para confecção de arranjos de flores. Já no Sudeste, especialmente em Minas Gerais, o hábito de consumir esses brotos remonta ao “tempo dos anti- gos, da mineração”: “Eles ensinaram a gente a comer o broto de samambaia como comida”. Hoje, como iguaria rara e cara, o broto de samambaia delicia e surpreende os turistas nos mais renomados restaurantes de comida típica da capital. Sobre a distinção entre restaurante tí- pico e tradicional, ver Woortmann (2007).

Vale ressaltar que o consumo de brotos de samam- baia e de outras plantas coletadas, tais como o ora-pro- -nobis, o agrião e outros, é parte de um conjunto de plantas nativas incorporadas ao consumo cotidiano local e retido na memória alimentar do grupo desde então. Esse consumo remete à continuidade alimentar iniciada no século XVIII, período em que essa região vivia crises de fome endêmicas. Devido à concentração do trabalho na atividade mineradora, o consumo de recursos ecoló- gicos locais disponíveis ao lado de produtos alimentares “importados” de outras regiões, tornou-se fonte estra- tégica de sustento da população local. Aponta para uma

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Contudo, essa memória e consumo alimentares es- tão hoje em risco de desaparecimento, face à amea- ça de extinção de algumas das variedades de plantas, dentre as quais a samambaia, devido à degradação ambiental na região.

Até esse ponto identifica-se uma proximidade teórica entre Norbert Elias e Bourdieu, na medida em que am- bos defendem, com algumas diferenças, a importância da sociedade, dos grupos sociais, na (con)formação do

habitus. Como já mencionado anteriormente (WOORT-

MANN, 2014), para Bourdieu (1983), habitus consiste num saber social incorporado, porém de “mão dupla”, ou seja, da sociedade para a pessoa e desta para a socie- dade. Em outros termos e como “estrutura estrutura- da”, a pessoa é socializada, internaliza aquilo que a fa- mília, escola, amigos, igreja, meios de comunicação etc. lhe incutem: o que é comida, quais ingredientes são va- lorizados, as práticas de seu preparo, hábitos à mesa, e assim por diante. Nesses termos, a memória alimentar, alicerçada no habitus, é parte do que Bourdieu definiu como “estruturas estruturadas” (2009, p. 356-357). Ela é percebida, vivida, paradoxalmente, desde um “viés sincronizado”, isto é, pela memória alimentar o passado é atualizado, ainda que não necessariamente da mesma forma e no mesmo contexto. Esse viés se encontra, por exemplo, em expressões tais como “aqui sempre se co- meu isto”, “se prepara (sempre) assim”, e que remete

ao tempo do “sempre foi assim”. No mais das vezes está alicerçado numa territorialidade atribuída e até certo ponto naturalizada.

Re/produz, ao mesmo tempo que é produzido pela

Weltanschauung do grupo. Desde outro lado, a memória

alimentar opera no sentido de destacar a sua relação com a prática alimentar em continuidade com ajustes desde o passado aos dias de hoje e, por sua vez, em perspectiva de continuidade no futuro, muitas vezes recorrendo a “tradições inventadas”, tais como concebem Hobsbawn e Ranger (1984). Via de regra, essas plantas são classifi- cadas com base numa matriz de conhecimentos locais. As etnoclassificações dos alimentos, contudo, não serão discutidas neste artigo (WOORTMANN, 1997; 2007). In- corporando um novo elemento e uma nova dinâmica à sua noção, Bourdieu (1983; 2007) propõe que a pessoa / indivíduo, por sua vez, também pode influenciar a so- ciedade. Ao abrir novas perspectivas pode-se projetar esta sua proposta ao universo alimentar. Há pessoas que criam novas alternativas e dimensões a consumos e de- mandas alimentares, divulgam novas estéticas e podem, destarte, tornar-se parte da memória alimentar do gru- po. Este é o caso de Frederico II da Prússia, que será dis- cutido mais adiante.

A memória alimentar constitui um discurso sobre o passado e mais do que isso, constitui um discurso sobre o presente que se manifesta na execução de compor-

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tamentos e práticas e aponta para sua continuidade no futuro. Contudo, apesar de possuir uma dimensão abs- trata, ela não pode ser abstraída da sua materialidade re- conhecida, ancorada que está na prática alimentar. Por sua vez, essa prática alimentar, na medida em que é re- produzida, ela como que remete a padrões alimentares do passado, mas paradoxalmente, ao ser constitutiva do passado de um grupo ou pessoa, configura sua trajetó- ria até o presente, ao mesmo tempo que pode incorporar elementos de atualização.

Além disso, as práticas alimentares de hoje podem remeter ao que Arendt (1961) denominou de “pluralida- de”, isto é, a interpretação diferenciada da memória nas estruturas de gênero, classes sociais, grupos étnicos etc. Em seus termos, a memória alimentar remete ao “lugar de fala” de seus antepassados e o projetam sobre o hoje. É o que se percebe entre os ítalo-brasileiros do Sul do Brasil, para os quais a polenta2 constituiu o que se pode-

ria definir como “alimento-âncora” dos imigrantes. De acordo com seus descendentes atuais, “pela (receita da) polenta se sabe de onde tu vieste”. Como parte do habi-

tus, a receita remete à origem e condição social dos imi-

grantes ao distinguir os “colonos fracos”, pobres, que utilizavam apenas água e sal no preparo da polenta, dos “ricos”, que a preparavam com caldo de carne e tem-

peros. Para esses ítalo-brasileiros, essa distinção é hoje muito importante, seja para valorizar a ascensão social de seus descendentes, seja para referendar a condição da elite local ou ainda justificar uma situação de pertenci- mento a camadas populares.

Nesse ponto deve-se assinalar que memória alimen- tar aqui é definida como aquela memória de pessoa(s) ou grupos que incide e leva a práticas recorrentes de consumo positivas ou negativas. Quer dizer, aquelas memórias que constroem prescrições ou proscrições alimentares, sejam elas no decorrer de parte ou de toda uma vida, face a um evento marcante – no plano pesso- al, por exemplo, ou no decorrer de gerações de um gru- po. Ela pode incidir ainda sobre práticas alimentares do cotidiano ou rituais. Vale lembrar que as prescrições e especialmente as proscrições alimentares a rigor nada tem a ver com os elementos biológicos que incluem, por exemplo, os vários tipos de intolerâncias a elemen- tos físico-químicos componentes de alimentos (glúten, lactose, pepsina e outros) ou a algum desconforto em relação à textura do alimento. Essas proscrições ali- mentares podem estar associadas a condições de traba- lho específicas, como é o caso de operários que traba- lham em abatedouros, frigoríficos ou outras atividades insalubres. Esses profissionais com frequência desen- volvem resistência ao consumo de carne, por exemplo, devido ao excesso de manuseio, ao tipo exposição ao

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produto, a sons, odores fortes ou imagens chocantes vivenciadas ou divulgadas pela mídia.

Nesse ponto destaca-se uma distinção já inicialmen- te trabalhada antes (WOORTMANN, 1992, p. 114). Refe- rimo-nos à distinção entre “memória de” e “memória para”. A primeira situa o que foi seletivamente retido pela “memória alimentar do passado no passado”, no mais das vezes se aproxima da noção de nostalgia, de Lowenthal (1990). Essas memórias alimentares “de” se situam numa perspectiva de tempo/espaço irreversível, supõe como que uma linha de tempo na qual o grupo ou pessoa seletivamente mantém, ou melhor ainda retém, memórias de algo, como que passivo, “estático”. Reme- te, no mais das vezes, a alguma colheita excepcional, al- guma festa particularmente farta ou sofisticada, algum evento, local ou ritual marcante pela comida etc. Com frequência são associadas a lembranças e retidas com alguma ênfase saudosista e idealizadora do passado. São parte do passado e parte de um quadro alimentar que já pode estar fora do universo atual; não implica em práti- cas atuais. Não serão aqui aprofundadas.

Em contrapartida, a memória alimentar “para” pro- jeta o passado no presente. Ela, numa perspectiva de tempo, é constantemente acionada e atualizada. O tem- po e espaço são acionados, emergem recorrentemente, atualizados. Essa memória alimentar no mais das vezes implica na realização de práticas alimentares eviden-

tes. O primeiro caso a ser aqui analisado, diz respeito à formação e manutenção de uma memória alimentar “para”, prescritiva, que pode ser identificada no fato de que, ainda em 2015, no túmulo de Frederico II da Prússia (1712-1786), em Sans Souci, ao lado de algumas flores, encontrarem-se 6 batatas depositadas. Nessas batatas estava cuidadosamente inscrito Vielen Dank, isto é, muito obrigado(a).

“No túmulo dele aqui e na igreja (de Garrison, onde ele esteve enterrado) as pessoas sempre colocam bata- tas. E sempre tem batatas novas”, afirmou um atleta frequentador do parque. A prática tradicional da colo- cação das batatas como expressão da memória alimen- tar dessa região atribui a este rei da Prússia, um dos “déspotas esclarecidos”, a decisão de mandar distri- buir em seus domínios o que hoje seria rotulado como “o kit de introdução, divulgação” da batata. O kit era composto por um manual concebido e impresso nas oficinas reais, no qual o valor nutricional da batata era destacado e suas técnicas de cultivo detalhadas, e pelas sementes que muitas vezes eram pessoalmente distri- buídas pelo monarca. Até então pouco prestigiada de- vido ao seu aspecto e por não ter o referendum religioso – não é mencionada na Bíblia –, a batata era concebida como um alimento inferior, consumida tão somente pelas pessoas mais miseráveis ou pelos porcos.

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Esse quadro se transforma quando, oficialmente pres- tigiada pelo aval real, a batata passa a ter sua produção obrigatória em todo reino. Paralelamente, seu consumo foi estimulado na corte e tornou-se a base alimentar de suas tropas. A produção foi induzida entre os campone- ses para alimento e recuperação de solos degradados.

A memória alimentar da região atribui ao êxito desta iniciativa de Frederico II o fim das grandes fomes endê- micas que grassavam na região e a redução da incidência de doenças a elas relacionadas. O êxito desta iniciativa, por sua vez, contribuiu para a sua posterior configura- ção como um alimento-âncora da tradição alimentar, iniciativa esta que se estendeu ao Norte e Leste euro- peus. O túmulo, destarte, incorpora de certa forma uma sobreposição de significados da memória. Desde a ótica da historiografia oficial, o túmulo do também chamado Frederico, o Grande, pode ser considerado o que Pierre Nora (1988) e Yates (1975) definem como “lugar da me- mória”. Por outro lado, esse túmulo espartano constitui igualmente um espaço “oficioso” da memória alimentar popular. Renovado pela discreta prática da colocação anônima, essa memória alimentar para agradecer “ao pai das batatas”, se mantém há mais de 300 anos, numa modalidade de mémoire longue, tal como percebida por Zonnabend (1980). Além disso, vale ressaltar que, no caso específico de Frederico II, a prática do depósito das batatas o acompanhou nos outros lugares onde esteve localizado seu túmulo.

Observa-se, pois, o que denominamos de “espaço- -âncora” (WOORTMANN, 1998) da memória alimentar “para”. Nesse quadro identifica-se nos grupos alguns “alimentos-âncora”. Isto é, do elenco de alimentos dis- poníveis e disponibilizados, o grupo selecionou e elegeu de seu passado e manteve pela atualização da memória, alguns alimentos considerados chave e frequentemente emblemáticos. Nesse sentido, os alemães, por exemplo, durante a II Guerra Mundial, na literatura popular e nos filmes sobre essa época, eram pejorativamente chama- dos de chucruts (repolho em conserva) ou “alemão-ba- tata”, ao passo que os ingleses e americanos acusavam os franceses de serem “comedores de sapos”, assim como os coreanos eram chamados de “comedores de cachor- ros”. Configuram parte da memória alimentar “para”, na medida em que levam a comportamentos e práticas, inclusive de booling e discriminação. Nas palavras de Klaas Woortmann, constata-se que “hábitos alimentares [através da memória] alimentam identidades atribuídas, assumidas e etnocentrismos” (2006, p. 34).

Se, desde a ótica governamental no século XVIII, o consumo da batata foi alvo de uma política pública bem- -sucedida, para a maioria da população ele pode ser considerado como a incorporação de práticas de consu- mo de um alimento novo ou pelo menos ressignificado. Esses alimentos “novos”, introduzidos numa geração como parte da modernidade, de “estruturas estruturan-

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tes”, passam a ser reconfigurados e incorporados na e pela geração seguinte como parte de sua tradição, suas “estruturas estruturadas”. É o consumo da inovação na modernidade tornada tradição. Assim é que, mutatis

mutandis, no Brasil de meados do século XX, ao lado

da iniciativa privada, é implementada uma macropolí- tica pública, que no jargão da economia foi denomina- do “substituição das importações”. Estimulada desde o governo de Getúlio Vargas, na sua dimensão agrícola, a proposta era estimular a produção de alimentos agrí- colas até então importados do exterior. Esse esforço do governo, se desde a ótica da economia gerou a diversi- ficação da produção de alimentos e impostos, desde a perspectiva da população, gerou uma série de memórias alimentares associadas ao seu consumo.

É quando, após consideráveis esforços das institui- ções de pesquisa brasileiras, vários alimentos passaram a ser adaptados e produzidos em grande escala, tornando seu consumo acessível à população. Só para citar alguns, é o caso de vários tipos de grãos na década de 1950, da maçã e da pera nos anos 1970/80, depois o kiwi, seguido pelo physalis etc. Essa dinâmica da produção compõe como que uma “linha do tempo da memória alimentar” paralela, na qual o consumo de um produto pela “pri- meira vez” ou em maior quantidade o torna marcante, inesquecível, tal como observa uma hoje sexagenária:

No meu tempo não tinha maçãs como hoje. Nós crian- ças só ganhávamos maçãs quando estávamos doentes ou um dos grandes (adultos) ia a Porto Alegre. Também ganhei uma quando tirei primeiro lugar (na escola). Maçã era rara e muito cara, ela era muito especial... Na- quele tempo a maçã era toda importada da Argentina, vermelha, linda, cheirosa, mas também meio farelenta às vezes... É, minha avó tinha algumas macieiras, sim, mas eram ácidas, só dava mesmo para fazer Schmier, doce, vinagre, essas coisas... Só depois quando os meus guris eram pequenos, quando o pessoal (produtores) da serra começou a fazer aquelas plantações grandonas, é que ela ficou mais barata. Nunca me esqueço como foi bom quando a gente começou a comprar maçã de sa- cola nos caminhões... aí a gente começou a comer elas a qualquer hora. Até hoje, sempre que dá eu gosto de comprar nos caminhões porque me lembro...

O depoimento desta idosa apresenta alguns aspec- tos interessantes. Merece atenção, em primeiro lugar, a expressão da memória do “meu tempo”, que remete ao pensamento de Mannheim (apud CONWAY, 1998) sobre o “processo de absorção” como parte da visão natural