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May Waddington Telles Ribeiro (CF Ciências Humanas e Sociais, UFSB)

O bem

Fui contratada pela Superintendência do IPHAN no Piauí para efetuar, entre 2007 e 2009, a pesquisa que balizaria a decisão de conceder o registro de patrimônio cultural à cajuína1. Trata-se de uma bebida não alcoó-

1 Entre os anos de 2007 e 2009, efetuamos a pesquisa para a elaboração do dossiê que subsidiou a decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, para o Registro do Modo- -de-fazer Cajuína como Patrimônio Imaterial. O trabalho foi contratado pela Superintendência Regional do IPHAN, a pe- dido da Fundação de Cultura do Estado, em conjunto com a Cooperativa de Produtores de Cajuína, conforme estabelece o Decreto 3551/2000, tal processo se propõe a salvaguardar o patrimônio imaterial como fator de produção de identida- de local, a partir de critérios como “a continuidade histórica do bem, relevância nacional para a memória e identidade e a formação da sociedade brasileira” (Artigo 1º, # 2º, Decreto nº 3551/2000). O processo se inseria no esforço das instituições envolvidas na política de salvaguarda cultural para criar as condições de preservação dos “bens processuais e dinâmi- cos, enraizados no cotidiano e representativos de diferentes

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lica da qual muito se orgulham os piauienses. Além de servida a visitantes, em bailes e em festas formais, a ca- juína é muitas vezes oferecida como presente, circulan- do como um emblema de pertencimento, em pequenas garrafinhas douradas, por redes familiares que se espa- lham pelo Brasil. Apesar de também existir no Ceará e, incipientemente, no Maranhão e Rio Grande do Norte, é no Piauí que a feitura artesanal da cajuína e os rituais de hospitalidade, que se desenvolveram em torno de sua degustação, adquirem grande valor cultural.

A bebida é produzida, tradicionalmente, nos fundos de quintal, a partir da seiva dos frutos que caem maduros sobre o tapete de folhas secas, em grandes e sombreadas quintas de cajueiros. As árvores frutificam no período de agosto a outubro, coincidindo com o auge da seca, época de menor serviço nas fazendas, em que a labuta com o gado e as roças cede a tempos de consertos de cercas e de pequenas construções. É comum que as famílias se reú- nam no feriado de 7 de Setembro para fazer a cajuína nos sítios e propriedades rurais.

A atividade se inicia com a colheita cuidadosa dos frutos caídos sobre a camada de folhas secas debaixo dos cajueiros, a cada dois dias. São depositados em bacias, nas quais escorre um sumo transparente através da fina pele das frutas, batizado pelo nome indígena de moco-

roró (a bebida fermentada de caju, dos Tremembé) ou

trar em contato com os pedúnculos2 para lavá-los, sendo

a água da torneira interditada, pois se acredita que qual- quer contato desta com os cajus turvaria o produto final. A partir daí, os pedúnculos são prensados ou moídos e sua massa é coada, resultando em um suco que contém o tanino peculiar a essa fruta. A este suco é adicionado um elemento químico3 que provoca o “corte”, ou a preci-

pitação dos taninos, que se separam do líquido, fazendo com que este volte a ser cristalino como a água do caju, ou mocororó. Este líquido cortado é, então, filtrado e refiltrado diversas vezes4 em grandes filtros de pano.

Trata-se de uma atividade demorada que exige paciência e gestos delicados, pois é a borra do tanino que, ao reco- brir os panos, forma uma poderosa camada filtrante, ga- rantindo a pureza e cristalinidade da bebida. A cada fil- tragem essa camada se adensa e não pode ser perturbada por movimentos bruscos quando o líquido é despejado de volta para a próxima refiltragem. Desta forma, para manter a integridade do filme de tanino que se forma e

2 A verdadeira fruta do caju é a castanha. A parte colorida que se pendura do mesmo se chama, tecnicamente, pelo feioso nome de “pedúnculo”.

3 Seivas de árvores, cola de sapateiro no início do século, ou gelatina, a partir da década de noventa.

4 Algumas produtoras insistem na conta de “sete vezes” em- bora isso não se confirme por nossa observação.

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para não “poldar” [sic] a cajuína5, é necessário equilíbrio

e calma por parte da mulher que coa. Não é permitida a presença de pessoas zangadas ou menstruadas no am- biente, onde diversos membros da família e empregados desempenham laboriosamente as diversas funções da produção da bebida (WADDINTON, 2011).

O processo faz com que o sumo volte a ficar transpa- rente e cristalino como a água do caju que havia escorri- do inicialmente das frutas nas bacias. A pureza cristalina que ocorria no estado natural do mocororó é recuperada pelo processo laborioso e delicado. O sumo recuperado em sua cristalinidade é envazado em pequenas garra- finhas que, depois de algumas horas em banho-maria, tornam-se douradas e luminosas, podendo ser conser- vadas por até dois anos.

Apesar de homens participarem das atividades de processamento, as senhoras tendem a gerenciá-la e, na maioria das vezes, as produções recebem como marca o nome das donas da casa, precedidos de títulos de distin- ção como “Dona Dia” ou “Vovó Lia”. A bebida é arma- zenada em pilhas de garrafinhas douradas, em pequenos cômodos sombreados, como um tesouro particular. São consumidas pelas famílias, distribuídas entre amigos e parentes ou vendidas.

5 O insucesso da operação ocorre quando a cajuína fica turva, ou apresenta fungos semelhantes a ciscos ou poeira, em sus- pensão (daí a expressão “poldada” [sic]).

A sobriedade e a sala de visitas

A arte de fazer cajuína está inscrita no universo da produção de mulheres prendadas, assim como os doces de caju e de outras frutas, licores, bordados, cerzidos e costuras. Na década de quarenta era servida com bis- coitos de polvilho tradicionais chamados de “fé”, “pie- dade” e “caridade”. Estes nomes remetem a qualidades que compunham a figura feminina com atributos ma- rianos baseados no ideário católico da Sagrada Família, que passaram a ser divulgados pela Igreja no século XIX quando, segundo Branco, “a imagem negativa de Eva é substituída pela de Virgem Maria” (BRANCO, 2005, p.130):

O lar um lugar privilegiado, de felicidade, que se com- pletaria com a procriação e o consequente exercício da maternidade, vista como a atividade mais doce e inve- jável que a mulher poderia exercer... onde ela reina- va soberana, fazendo-o um lugar elegante, festivo, no entanto sem tumulto, sem banalidades [...] (BRANCO, 2005, p.126).

Eivada de símbolos de cristalinidade e pureza asso- ciados à vida familiar e doméstica6, a cajuína era, ini-

6 Entre tais valores, sobressaíram-se a cristalinidade, pureza e a sobriedade atribuídas à bebida, em contraposição à etilici-

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cialmente, servida em casamentos e festas “da alta so- ciedade” 7. Filhos que retornavam à terra após períodos

de estudo eram recebidos com a bebida gelada e, ao par- tir, transportavam com cuidado garrafinhas para dar de presente a amigos e figuras de prestígio, através das redes de contatos que estendiam zelosamente pelo ter- ritório nacional.

Nestes rituais, senhoras ofereciam a bebida gelada às visitas, em um ato sempre acompanhado de comentá- rios sobre as características de cor, doçura, cristalinida- de, leveza ou corporeidade de cada garrafinha, em com- parações com aquelas de outras famílias. De forma geral, cada garrafa aberta é acompanhada pelo olhar sequioso de quem a oferece, seguido por elogios que são respon- didos por manifestações de discreto orgulho: “até hoje ninguém reclamou, não”. Trata-se de um rito que agre- ga, através do sistema de favor e contrafavor, ao mes- mo tempo em que marca a posição assimétrica de dívida

dade de outras bebidas feitas a partir do caju por índios, na antiguidade, e por algumas camadas da população piauien- ses. Os ideais de cristalinidade, asseio e pureza são trans- feridos à figura feminina e desta à família produtora e por vezes ao local de produção. Atributos de inteligência e enge- nhosidade foram repetidamente atribuídos aos homens, que constantemente inventam novos apetrechos para o proces- samento do sumo do caju.

7 Entrevista, em vídeo, de Ronaldo Amarante, maio de 2009, concedida à May Waddington e Maria do Carmo Veloso.

de quem recebe e fica, assim, obrigado ao anfitrião por aquela cortesia (MAUSS, 1974). Tanto em casas de famí- lias abastadas como em sítios pelo interior, o momento da degustação com visitantes torna o ambiente cheio de cerimônia, levando a uma postura autocontida e gentil.

Embora a mesma possa ser acompanhada de vinho de caju ou de licores, o momento hospitaleiro do ofereci- mento da cajuína pode ser seguido do afastamento dos homens a outro cômodo, onde é oferecida a cachaça, ou mesmo a saídas pela cidade em noitadas regadas a bebi- das alcoólicas em áreas demarcadas para tal: bares, zo- nas liminares às beiras do rio, casas de jovens e estudan- tes (DAMATTA, 1997). Os hábitos etílicos dos piauienses no início do século XX foram descritos em um romance,

Um manicaca, de Abdias Neves, em 1901 (NEVES, 1909).

Havia, por exemplo, ritos chamados de “surpresas”, que consistiam na invasão de jovens rapazes às festas de ani- versário em casas das famílias, raptando-se alguns de seus componentes, arrastando-os para farras externas à casa.

Durkheim descreve o processo de soltura das amar- ras egoicas que ocorre no apogeu da efervescência das festas, diminuindo a distância entre indivíduos que são “tomados” pelo coletivo, facilitado pela mistura do ál- cool com a energia social advinda do contato grupal (DURKHEIM, 2003). Considerava os ritos festivos como uma reintegração do homem à natureza, do qual se afas-

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tou ao fundar a sociedade, representando experiências necessárias para que o homem aguentasse as agruras do trabalho cotidiano e sério, reenergizando-o ocasional- mente, aliviando as tensões que poderiam se transfor- mar em violência e ameaçar a coesão social. A partir des- sas reflexões, a Antropologia tem investigado os hábitos de consumo e da sociabilidade em torno das bebidas etílicas. O significado dos espaços proscritos (como o lar santificado) e prescritos para o consumo do álcool como as zonas liminares da cidade, nas beiras de rio ou seus limites físicos (DAMATTA, 1997), é revelador.

A cajuína pertencia, definitivamente, à sala de visitas do lar santificado, onde não há espaço para esta dilui- ção da individualidade no ambiente cerimonioso. Pelo contrário, uma reverente austeridade provocada pela assimetria do dom e contradom mantém o hóspede em seu lugar, ao mesmo tempo em que o mima e encanta (MAUSS, 1974). Nela, a dona da casa – altamente valo- rizada nos tempos em que apenas o casamento católico garantia a legitimidade da transferência das terras aos herdeiros – exerce seu papel central ao demonstrar seu desvelo, sua capacidade criativa, suas prendas, sempre temperadas pela fé, caridade e piedade cristãs represen- tadas nos biscoitinhos que acompanhavam as cajuínas.

Porém, em se tratando de uma pesquisa etnográfica na qual houve a oportunidade de se efetuar entrevis- tas profundas e de se observar as práticas envolvidas

no modo-de-fazer em estudo, tivemos a oportunidade de examinar os valores manifestados pelos participan- tes – tanto pelas produtoras quanto por seus familiares. Algumas destas entrevistas corroboraram as qualidades atribuídas à mulher santificada pelo culto mariano, com sua atitude de respeito e recato para com o esposo, de submissão às suas opiniões, sua fidelidade acompanhada da tolerância para com suas aventuras extraconjugais, sua boa formação moral favorecendo a criação dos filhos e uma vida restrita ao ambiente doméstico:

M. C.: Não gostava de festa, não, não fazia festa, não. Tinha muito filho, cuidava só dos meus filhos... Nunca fui mulher de andar fazendo as coisas fora, não8.

Estas entrevistas, no entanto, revelaram que além da mulher frágil e feminina, dedicada às atividades al- truístas da criação dos filhos, refinada por uma criação esmerada em um ambiente distante das preocupações do mundo, a produtividade está fortemente associada à valoração de seu papel social na família. Percebemos que, em nossa situação de pesquisa, o ideal de mulher prendada, embora associada à criatividade, está menos associada com o refinamento (tocar piano, fazer bor- dados) do que com a capacidade de trabalho duro e de

8 Entrevista de Dona Maria do Carmo, 103 anos, Teresina, maio de 2009.

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comando dos empregados para contribuir com o abas- tecimento das famílias:

Dona Ilma: Eu era muito ocupada, eu era muito ativa. Eu digo o ditado: eu bordava e pintava! Eu sei costurar, eu sei pintar tecidos, pode não ser, mas eu pintava. Usa- va uns terreninhos meus para fazer casa, esse negócio de construção. O que aparecia assim eu fazia, nunca fi- quei de braços cruzados, nem sentada esperando pelas coisas. Fazia de tudo na minha casa. Cozinhava tudo. Hoje em dia, as pessoas dizem que não tem tempo pra isso. Parece mesmo que o tempo encurtou, não é? Mas naquele tempo eu tinha tempo pra tudo, graças a Deus. Fazia o doce de caju. Fazia mesmo o (doce) seco. Fazia do cajuá, era aquele caju pequeno, né? Fazia, não deixa- va perder não, estragar nada9.

Embora não excluísse o afeto e a doçura em relação a filhos e familiares, nem a submissão ao marido, o po- der de mando, a autoridade e o “expediente” (no sen- tido da iniciativa) eram recorrentemente valorados por nossas entrevistadas. Também eram enaltecidos os casos em que mulheres tomaram o controle das propriedades rurais após a morte do marido ou demonstraram valen- tia ao empunharem armas, por exemplo, para defender

9 Entrevista de Dona Ilma, nascida em 1921, professora, soltei- ra, adotou filhos. Teresina, nov. de 2008.

suas famílias de ataques de cangaceiros de Lampião10.

É possível que o alto valor atribuído à produtividade derive do ambiente rústico e da pobreza que a dura vida no sertão piauiense impunha, nos tempos em que as fa- mílias viviam dispersas e isoladas, longe dos centros de consumo, como veremos neste ensaio:

Dona M. C.: Trabalhava e não parava, não. Não sabia parar, não. Tinha que estar sempre trabalhando. Traba- lhava porque gostava também. A Arabella dizia: Se fosse eu, do jeito que eu faço bolo, vendia. Eu dizia: Arabella, eu nunca vendi as coisas que faço, não. Toda vida eu faço pra casa, né?

Filha: Até sabão fazia, não é, mamãe? Ela fazia cinco coisas de uma vez só: botava a goiaba para fazer doce, o sabão, ela fazia cinco coisas num só dia. Naquele dia ela ficava fazendo tudo isso de uma vez. Ela era muito forte!11.

10 Existem diversos registros de casos nos quais a transmis- são do patrimônio se dava através da mulher, o que pode- ria conferir-lhe grande poder e maior autoridade do que o ideal mariano de submissão estabelecia (RIBEIRO, 2005). No extremo, colhemos relatos que demonstram qualidades bastante distantes deste ideal, como a coragem de empunhar uma arma e lutar ao lado do marido ou em defesa da famí- lia, como no caso de Maria Bonita e Lampião e outras figuras do cangaço, ou de senhoras que empunharam armas contra Lampião, como em “Uma certa família Parente”, filme de Olavo Cronemberguer (2001).

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Tais características foram louvadas e tidas como enal- tecedoras, em praticamente todos os depoimentos que colhemos, inclusive entre as senhoras da alta sociedade, que afirmavam não precisar trabalhar para sobreviver:

Dona Rita: Faço porque gosto de trabalhar pesado as- sim! Gosto de limpar a casa, eu gosto. É meu mesmo! Eu já nasci assim e não adianta, não vou mudar. Trabalho muito, faço tudo: doce, molho de tomate e pomarola. Não quero é ficar parada12.

Era visível o envolvimento da sociedade local com o projeto de registro da cajuína enquanto bem cultural. Como um refresco não etílico gerava tanta energia no imaginário coletivo a ponto de se tornar um símbolo e emblema de identidade nas proporções que a cajuína as- sumia? Nomeava avenidas, bares, restaurantes, oficinas eletrônicas, borracharias, projetos de extensão univer- sitária, fundações de utilidade pública, chegando a vi- rar um apelido para mulheres piauienses que moravam foram do estado! Por que eram estes os elementos que se constelavam na representação social da bebida e qual o ambiente propício para o surgimento deste marcador,

12 Entrevista de Dona Rita de Cássia, Teresina, outubro de 2008, senhora proprietária de muitos imóveis, que se apre- senta como sendo herdeira de uma família de políticos proe- minentes.

imbuído de referências à figura materna das senhoras “prendadas”, com qualidades marianas?

Por que tão “não etílica” visto que, como verificamos em pelo menos uma instância, a cajuína fora destilada e transformada em “cachaça de caju” nas décadas de cin- quenta e sessenta13? Além disso, havia cachaças locais

que poderiam cumprir destinos semelhantes no imagi- nário social, conforme comprovado tanto pelo projeto de lei14 como pelo decreto do governo do estado, que

conferiam o estatuto de bebida oficial tanto à cajuína quanto à cachaça, ambos igualmente servidos nas re- cepções oficiais.

A ancestralidade indígena questionada

Com uma equipe de trabalho local, viajamos por oito municípios piauienses em busca dos mistérios contidos nas cristalinas garrafinhas douradas que tanta afetivi- dade despertavam em todos os envolvidos no processo, inclusive nos colegas de equipe. O trabalho foi marcado por uma série de questões que desafiavam os termos de referência da pesquisa, assim como o senso comum. En-

13 Pela família Almendra, em armazém à beira do Parnaíba, em Floriano.

14 Apresentado na década de noventa e abortado pela morte prematura do deputado que o propunha, coisa que foi resol- vida por um decreto do governador no ano de 2005.

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tre estas, a primeira e central a este ensaio, era a insis- tência com que se supunha que a bebida fosse “coisa de índio”, praticada “desde sempre”, “debaixo dos pés de árvores” em que “se rasgava com a mão a pele dos cajus” para extrair o sumo da fruta15.

Por que a sociedade local insistia em atribuir à tra- dição uma ancestralidade indígena, sendo os ritos e práticas no entorno da cajuína tão diametralmente opostos às representações sobre as práticas de bebe- ragem indígenas que, desde os primeiros contatos, foram eivadas de estranheza e medo, diante do com- portamento que “aos olhos dos europeus, parecia (possuído) por uma força demoníaca, que aparente- mente fruía das jarras e cuias nas quais suas estra- nhas bebidas espumavam” (FERNANDES, 2004)? As danças, brincadeiras em rituais coletivos festivos ou mesmo naqueles religiosos nas quais cantigas milena- res reforçavam a memória coletiva ou preparavam os espíritos para a batalha, estavam muito distantes dos ritos de hospitalidade no entorno da cajuína.

Além disso, embora eu tivesse presenciado processos elaborados e trabalhosos de preparação de beberagens etílicas ou enteógenas (despertando estados alterados de consciência) em aldeias indígenas, nada me parecia

15 Expressões recorrentemente encontradas em diversas entrevistas.

menos indígena do que um trabalhoso processo de pas- teurização de uma bebida para que esta não fermentasse e se mantivesse não alcoólica, de forma a ser consumida em rituais de sociabilidade tão sóbrios como aqueles que presenciávamos nas salas de visita piauienses.

Desde o primeiro contato de Cristóvão Colombo com os índios da América do Sul, durante sua terceira viagem entre 1498 e 1500, há referências a vinhos feitos a partir de frutas (FERNANDES, 2004, p. 65). Existem registros de fermentações insalivadas a partir do milho e da ma- caxeira, especialmente entre os índios que praticavam a agricultura, enquanto os coletores-caçadores, como os tapuias do sertão e de boa parte do Brasil Central, conhe- ciam tamanha variedade de fermentados a partir do mel que Jacques Vellard os chamou de “civilização do mel” (apud FERNANDES, 2004, p. 64). A maior parte dos re- gistros, no entanto, se refere às bebidas feitas a partir de seivas de frutas, principalmente entre as populações que não praticavam a agricultura, sendo que se atribui algu- mas das migrações dos tapuias aos seus ciclos de coleta. Fernandes observa que, em função de seu ciclo fugaz, o consumo dessas bebidas se restringia à época de ama- durecimento dos frutos. Muitos dos relatos se referem de forma genérica aos macerados, misturas e vinhos de frutas que não o vinho europeu. Já outros especificam as bebidas levemente fermentadas a partir de seivas do tronco e de frutos de palmeiras, amêndoas de babaçu,