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2 QUADRO TEÓRICO E CONCEITUAL

2.1 Memória científica: registro de informação, documento e herança social

É comum definir memória como lembrança de fatos passados verbalizada no presente (memória oral) ou recordada a partir de anotações (registros, memória escrita) em diários,

Periodismo médico

propagando conhecimento e ideias dominantes

Informação

como conhecimento produzido socialmente, representado num

documento, publicação

Determinação social da saúde

são fatores interligados alimentando uma herança

histórica e social

Memória científica

é memória social

agendas, do que foi formalizado em cartas, memorandos, atas, certidões. Esse conteúdo memorialístico inclui fotos, desenhos, pinturas, esculturas, vídeos, objetos outros que também são carregados de significados, recuperando a cada exploração o que ficou para trás.

Na CI, escreve Galindo (2015, p. 65), “memória aproxima-se mais do conotativo de estoque de informação, invocando a condição de registro memorial da herança cultural humana”, seja ela de ontem ou de centenas de anos. Para o autor, é papel da CI buscar “entender a natureza dos registros e os fenômenos que envolvem a criação, o tratamento e o uso social da informação”.

2.1.1 A perspectiva do documento como suporte de memória

E afinal o que é informação, senão todo conhecimento registrado em forma escrita, oral ou audiovisual, como responde Le Coadic (2004). Buckland (1991) engloba nessa definição de informação não só o conhecimento em si, mas o processo em que ele se dá e coisas que informam, seja um dado ou um documento.

Guinchat e Menou (1994, p.41) definem documento como “suporte material do saber e da memória da humanidade”. E diferenciam os documentos, uns dos outros, conforme as características físicas (natureza, material, tamanho, forma de produção, por exemplo) e intelectuais (objetivo, conteúdo, assunto, forma de difusão). Quanto à natureza, listam documentos textuais e não textuais, exemplificando os primeiros como os livros, os periódicos, as fichas e os documentos administrativos. Nesse grupo estão os publicados comercialmente, vendidos nas livrarias, os impressos com tiragem limitada e restritos a um grupo, secretos, além de outros de caráter pessoal, particular, como as cartas manuscritas trocadas entre amigos.

Antes de Buckland e de Le Coadic, o belga Otlet (2007), na década de 1930, referiu-se a documentos como “capital de ideias que se acumula”. Ao tratar da história e evolução da documentação, retratou o século XX como a terceira época, de uma comunicação com aparatos mecânicos, com publicações periódicas, inovação dos textos por imagens e diagramas por exemplo. Dos pensamentos primitivos à concretização do livro, a publicação alcançaria a condição “de ciência sintetizada, documentada, visualizada, matematizada, condensando-se para chegar melhor, mais longe e mais alto” (OTLET, 2007, p. 39).

Considerar o documento e não só a informação contida nele amplia a perspectiva de análise na CI, como defendem alguns cientistas. Quando a pesquisa se detém somente na

informação, desprezando o documento, é como se estivesse se separando das práticas sociais, políticas, econômicas e culturais nas quais os conteúdos informacionais foram produzidos, afirma Araújo (2017). O autor explica que observar o documento como objeto material e de valor simbólico é uma abordagem da neodocumentação ou redocumentação, movimento iniciado por Otlet e continuado por Suzanne Briet (França), López Yepes (Espanha) e Bradford (anglo-saxão), que valorizam o documento. Segundo o estudioso brasileiro, Rayward4 e Frohmann estão no grupo dos que propõem a substituição do termo “informação” para “documento”. “O documento traz as marcas de seu contexto, de quem o produziu, do suporte em que está inscrito, de suas dimensões e tamanho, de seus aspectos estéticos, entre outros” e a neodocumentação “busca reconciliar o estudo da informação e a vida social” (ARAÚJO, 2017, p. 18).

Para Frohmann (2008, p. 21), “se ‘documento’ nomeia a materialidade da informação e se a materialidade é importante para o entendimento dos aspectos públicos e sociais da informação”, estudos da documentação, por consequência, importam aos da informação. Ortega e Saldanha (2019), ao discutir o conceito de documento na perspectiva original, e na abordagem mais recente, demarcam algumas diferenças. Na primeira, o documento é visto como produto de ações de mediação. A mais recente abraça uma perspectiva de relações de poder, históricas, sociais e políticas, por exemplo.

Pode-se acrescentar que considerar a informação num objeto material e simbólico pode conferir ao documento status de monumento, o que se aproxima do valor de memória, ao mesmo tempo em que propicia a análise mais abrangente, mesmo quando o objetivo principal do estudo centra-se no seu conteúdo.

Portanto, uma publicação científica rara pela informação nela impressa, seu formato ou seu suporte, é um documento que atende às duas concepções, seja produto das mediações, por ser ao mesmo tempo mensagem e veículo, ou um objeto que confere ou é instrumento do poder. Longe do que as grandes corporações reproduzem nas mídias de massa, as revistas de artigos científicos, especialmente no passado, tinham público mais limitado pela capacidade de multiplicação, mas eram a voz de uma comunidade que ditava conhecimento e tendências a seus pares.

No século XXI, os documentos tornaram-se mais visíveis e socializados em razão dos inúmeros recursos tecnológicos, a exemplo da digitalização de impressos. Entretanto, podem

se tornar mais esquecidos e até desprezados na concorrência com novas informações e memórias recentes que surgem a cada minuto, haja vista a globalização permitida pela internet. Daí ser importante não só a preservação, mas o acesso e o valor conferido a eles.

2.1.2 Memória social e o documento científico

Publicações registram memória pessoal, individual, particular, assim como memória coletiva, de um grupo, família, instituição e de qualquer organização. Quando uma memória sofre influência, na sua construção ou no seu resgate, da sociedade, do pensamento dominante, da interação com o ambiente físico, social, político e cultural, a conotação é de memória social, seja ela individual ou coletiva.

Para Halbwachs (2006, p. 7, 8), é impossível conceber a recordação e a localização das lembranças sem a referência dos contextos sociais.

[...] ela (a memória individual) não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transportar a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente (HALBWACHS, 2006, p. 72).

Na produção científica brasileira em torno do tema, Almeida e Oliveira (2018, p. 6066) destacam a frequente ressignificação da memória, que se “reconstrói e adquire significados a partir do acesso de usuários a ela, e seu uso em trabalhos diversos [...]”. Para as autoras, “os documentos são fontes de informação e possibilitam o acesso a uma memória do grupo, que se mantém no presente devido à preservação documental”. Inspiram-se em Gondar (2008), que, ao discutir as noções de memória individual, memória coletiva e memória social, trata da polissemia em torno da terceira e considera que “em vez de recuperada ou resgatada, a memória possa ser criada e recriada a partir de novos sentidos que a todo o tempo se produzem tanto para sujeitos individuais quanto para os coletivos, já que todos são sujeitos sociais”. (ALMEIDA; OLIVEIRA, 2018, p. 6066).

Abordando a memória científica, objeto desta pesquisa, como memória social, não há como negar ressignificações para fins de estudos históricos ou de evolução da ciência e da sociedade. É necessário, entretanto, esclarecer o que tem valor memorial em meio à produção de pesquisas. Brito (2002) refere-se a todo material produzido e acumulado no decorrer das

atividades científicas e ao que está relacionado ao desenvolvimento da pesquisa, difusão e acesso, como memória científica.

Do relato da vida e da obra do cientista, feito por terceiros, aos registros deixados por ele em cartas, diários, relatórios, laudos e em publicações periódicas como prova documental do estudo que desenvolveu, tudo compõe a memória científica, podemos exemplificar então. E a revista científica - um suporte informacional dessa memória-, especificamente, perpetua o passado para novas gerações, quando devidamente guardada e preservada, correspondendo à definição de memória dada pelo historiador Le Goff (2003).

O que ficou registrado sobre estudos médicos nos Anais da Faculdade de Medicina do Recife (FMR) de 1930 a 1944 é, portanto, memória da ciência, dos cientistas, das vidas ali retratadas e de uma leitura sobre a sociedade construída sob diferentes influências. Inútil desprender dela o fenômeno social da sua construção ou reinterpretação à luz do presente. São achados e concepções dos cientistas num determinado tempo, com conceitos herdados de antecessores e construídos naquela época num território físico, político e cultural, revisitados em circunstâncias também diversas por estudiosos de formação e visão particulares, influenciadas sempre pela sociedade.

Por mais inovador e singular que seja o registro da memória científica, ela carrega em si conhecimento acumulado anteriormente e na vivência social, reconstruído a cada rememoração e nova visita a esta memória no presente, por quem a compôs ou com ela entra em contato. Ulpiano Meneses (1992, p. 22) já dizia que “a memória, como construção social, é formação de imagem necessária para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional.”

No Brasil há um despertar da comunidade acadêmica para a importância da preservação da memória com a criação de grupos de trabalho para diagnosticar e propor diretrizes para a gestão arquivística de documentos científicos (ABRAHÃO, 2010). Por outro lado, programas de pesquisa voltados à memória em diferentes disciplinas são instituídos e os conteúdos relacionados à saúde despertam uma parte desse interesse.