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Memória e identidade no convívio interétnico

CAPÍTULO I – A HISTÓRIA ENQUANTO ALBÚM DA MEMÓRIA

1.1 Memória e identidade no convívio interétnico

Esta seção apresenta uma reflexão sobre alguns conceitos de memória com o intuito de elucidar a identidade do ser humano enquanto ser racional, porque se entende que falar de memória é falar da forma como se registram, como se retém, como se acumulam e como se codificam diversos acontecimentos, para logo manifestar em seu processo o desenvolvimento histórico.

Na concepção de Henry Rousso sobre a memória, ele diz que:

[...] seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao „tempo que muda‟, as rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, ela constitui – eis uma banalidade – um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros (ROUSSO, 1998, pp.94-95).

Sob este aspecto nossa investigação se interessou particularmente em pesquisar, refletir e analisar a importância da memória na construção da identidade em seus diferentes níveis e elementos que articulam a coerência, a unidade e as diferenças para, então, poder assimilar a origem da presença espanhola em Santa Maria e poder registrar a formação de seus valores e de suas atitudes quanto ao relacionamento com a coletividade. Isto porque se compreende que o processo de transmissão das tradições, dos costumes, dos hábitos e dos valores é transmitido entre gerações pertencentes a uma mesma família o que exige a busca e a interpretação das imagens que esse grupo guarda de si mesmo em sua memória.

Embora sejam os indivíduos que lembram, no sentido literal da expressão, são os grupos sociais que determinam o que é “memorável” e as formas pelas quais será lembrado. Portanto, os indivíduos se identificam com os acontecimentos

públicos relevantes para o seu grupo. “Lembram muito aquilo que não viveram

diretamente. Um artigo de noticiário, por exemplo, às vezes se torna parte da vida de uma pessoa. Daí pode-se descrever a memória como uma reconstrução do passado” (BURKE, 2000, p. 70).

Compreendidas como o exercício de sobrevivência física de um determinado grupo humano, as memórias determinam também a sua sobrevivência cultural na proporção em que esse grupo vai construindo sua realidade com base em um universo de representações. Quando o exercício da sobrevivência não corresponde exatamente ao expresso por sua memória, o indivíduo passa despercebido pela sociedade gerando a sua invisibilidade social, visto que a memória é elaborada a partir das representações coletivas, seja ela coletiva ou individual. Se não há espaço para tais representações, o grupo étnico permanecerá à margem da visibilidade e do reconhecimento social, deixando proliferar a nuvem que cobrirá suas memórias individuais na reconstrução do presente.

Holbwachs (1990), refletindo sobre memória individual, nos remete a informação de que ela:

Não está inteiramente isolada e fechada. Um homem para evocar seu próprio passado, tem frequentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros [...] Mais ainda, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as idéias que o individuo não inventou e que emprestou de seu meio (HALBWACHS, 1990:54).

Vista a história como um dos grandes recursos para produzir a ampliação do sentido de uma experiência pessoal direta que transcende em espaço e tempo com respeito à natureza do ser humano, seu valor está em proporcionar caminhos que possam penetrar num mundo mais amplo dos significados compreendidos e explicitar as implicações humanas, porque a vida dos homens transcorre na natureza, não como um marco acidental, mas como o material e o meio de desenvolvimento. Compreender o passado como e pelo passado sem estabelecer seus links com o presente já não seria assunto de nosso interesse, se estivesse completamente passado e realizado, porém o conhecimento do passado é a chave para se compreender o presente e a memória histórica que é a revitalização para o estudo desse presente. Isto é o que se aviva neste texto, porque nele são abraçadas certas teorias, para que se possa compreender a existência do elemento espanhol em Santa Maria.

Alguns historiadores contemporâneos passaram a entender a relevância da história oral. Mesmo os que trabalham com períodos anteriores têm alguma coisa a aprender com o movimento da história oral, pois precisam estar conscientes dos testemunhos e tradições embutidos em muitos registros históricos (BURKE, 2000, p. 72).

Segundo Peter Burke (2000), a visão tradicional das relações entre a história e a memória se apresentava sob uma forma relativamente simples: a função do historiador era a de ser o guardião da memória dos acontecimentos públicos, quando escritos para proveito dos autores, para lhes proporcionar fama, e também em proveito da posteridade, para aprender com o exemplo deles.

Porém, neste texto, o mecanismo, a ferramenta, o instrumento é a história oral de uso e registro. É em proveito e em decorrência disto que o discurso desenvolve alguns conceitos sobre memória, identidade, cidadania e invisibilidade, bem como as práticas culturais e fatores ideológicos como objeto de estudo determinado por teorias sociais, políticas e históricas, num desafio de se repensar o discurso como um fenômeno social. As acepções e os interesses sociais somente podem desenvolver-se em um ambiente autenticamente social: naquilo que se dá e se toma na formação de uma experiência comum, pois a sociedade existe mediante um processo de transmissão da mesma forma como pela vida biológica. Pode-se observar que essa transmissão se efetivou por meio da comunicação de hábitos de fazer, pensar e sentir de todos os personagens que foram entrevistados e, cujas experiências foram trabalhadas nesta pesquisa respeitando o direito à privacidade daquelas experiências que não puderam ou que não quiseram ser expostas por cada um de nossos entrevistados. O fundamento de tudo reside em que a etnia espanhola, presente em Santa Maria, enquanto organização social possa ser vitalmente social ou vitalmente integradora para todos os que participam nela ou fazem parte dela.

Esse fundamento estará presente no ambiente social visto como o elemento que formará a disposição mental e emocional da conduta nos indivíduos envolvidos na pesquisa e que conduzirão a determinadas conseqüências. Um exame detalhado será feito das condições de vida das pessoas envolvidas e do segmento que vai com mais detalhes ou que se entende por memória social, além das questões de poder que são ligeiramente colocadas de acordo ás necessidades do texto, porque é ele que barra a relação existente entre indivíduos socialmente bem dispostos e os

invisíveis numa sociedade de poderes, sejam eles políticos, sociais, étnicos, etc. O poder, mesmo que possa ser questionado em seu sentido ou ação, é amparado, em maior ou menor grau, por algum nível de consenso grupal, isto é, “o poder nunca é

propriedade de um indivíduo, pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido” (ARENT, 1994, p. 36).

Seguindo esta linha do pensamento, nosso texto apresenta um caráter integracionista, cultural e de valor patrimonial desde o ponto de vista científico, porque procura resgatar a memória e a identidade social de indivíduos dentro da sociedade santa-mariense que, até o presente momento têm permanecido no plano da invisibilidade social.