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Capítulo 2 Pressupostos teóricos

2.4 Memória

Trabalhar com entrevistas é trabalhar com a linguagem. E os trabalhos com a linguagem instigam vários estudos em diferentes épocas. Sabemos hoje que a linguagem é heterogênea, aberta, dialógica, como nos revela Bakhtin (1992) em suas pesquisas. Por essas características, responde a enunciados passados, presentes e futuros em situações reais de fala. Portanto, não houve como nos furtarmos à percepção de que a memória é partícipe, intrinsecamente, do gênero entrevista, e, conforme apontaram Lüdke, André (1986), um novo elemento apresentou-se durante a execução desse estudo de caso. Surgiram aspectos ligados à memória que não podiam ficar à margem das análises propostas.

Bakhtin (1992) também estuda a memória. Divide-a em duas noções extremamente próximas: memória de passado e memória de futuro. Segundo o autor, ao tratarmos do hoje, recorremos ao passado (memória do passado), mas recorremos também ao presente e ao futuro, como memória do futuro.

Minha atividade prossegue ainda depois da morte do outro, e o princípio estético prevalece (sobre o princípio moral e prático). Tenho à minha frente o todo de sua vida, liberta do futuro temporal, dos objetivos e dos imperativos. Depois do enterro, depois da lápide funerária, vem a memória. Possuo toda a vida do outro fora de mim e é aí que começa o processo estético significante em cujo fim o outro se encontrará fixado e acabado numa imagem estética significante. (BAKHTIN, 1992, p.121, grifos do autor)

Cada momento vivido por nós é conclusivo, mas, ao mesmo tempo, dá início a uma nova vida. O autor apresenta-nos o que ele chama de “O excedente da visão estética”. Esse excedente de visão recebe o nome de exotopia, conceito fundamental para que as ações dialógicas sejam pensadas com objetividade, permitindo observarem-se as múltiplas visões de mundo: o lugar de onde eu vejo o outro e de onde o outro me vê.

O excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento. (BAKHTIN, 1992, p. 45)

O sociólogo Halbwachs (1990) afirma que nosso passado compreende duas espécies de elementos: os que podemos evocar quando queremos e aqueles que, mesmo que queiramos, não conseguimos trazer à lembrança. Segundo ele,

Na realidade, dos primeiros podemos dizer que estão dentro do domínio comum, no sentido em que o que nos é assim familiar, ou facilmente acessível, o é igualmente aos outros. A ideia que representamos mais facilmente, composta de elementos tão pessoais e particulares quanto o quisermos, é a ideia que os outros fazem de nós; e os acontecimentos de nossa vida que estão sempre mais presentes são também os mais gravados na memória dos grupos mais chegados a nós. [...] Dos segundos, daqueles que não podemos nos lembrar à vontade, diremos voluntariamente que eles não pertencem aos outros, mas a nós, porque ninguém além de nós pode conhecê-los. (HALBWACHS, 1990, p.49)

Essa forma, como afirma o próprio Halbwachs (1990), “paradoxal”, de lidarmos com lembranças e esquecimentos, explica-se, segundo ele, porque cada memória individual é “um ponto de vista sobre a memória coletiva”. Para ele, a memória aparentemente mais particular remete a um grupo. O indivíduo carrega em si a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, com seus grupos e suas instituições. Ele trata a lembrança individual como limite das interferências coletivas. Assim,

Acontece com muita frequência que nos atribuímos a nós mesmos, como se elas não tivessem sua origem em parte alguma senão em nós, ideias e reflexões, ou sentimentos e paixões, que nos foram inspirados por nosso grupo. Estamos então tão bem afinados com aqueles que nos cercam, que vibramos em uníssono, e não sabemos mais onde está o ponto de partida das vibrações, em nós ou nos outros. (HALBWACHS, 1990, p. 47)

Vê-se que, para Halbwachs (1990), a memória individual não é isolada, apoia-se em pontos externos ao sujeito, que são as percepções produzidas pela memória coletiva. Portanto, a vivência, desde a infância, em vários grupos, está na base da formação de uma memória pessoal, autobiográfica. De acordo com sua visão, “Não é na história aprendida, é na história vivida que se apoia nossa memória”. Por isso ele fala da nossa capacidade de reconstruir lembranças:

A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. (HALBWACHS, 1990, p.71)

Nos dizeres da pesquisadora Leal (2007),

Não resta dúvida de que a memória permite um modo diferente de compreender o mundo. Mesmo trabalhando com fragmentos, com recortes de memórias, o que emerge é sempre um resumo de uma experiência, diante da qual não é possível ficar indiferente. A história de cada um é uma narrativa que é recriada pelos interlocutores em relação a si mesmos, nas quais se acredita, consciente ou inconscientemente, dado que a memória e a imaginação andam juntas, confundem-se e estabelecem profundas ligações entre si. (LEAL, 2007, p.100)

Assim sendo, nas diversas relações discursivas cotidianas, é muito comum que a lembrança de uma pessoa evoque a memória de outras. Assim, o passado se liga ao presente, permitindo projeções futuras.

Zilberman (2014) destaca que a memória constitui, por definição, uma “faculdade humana”, que retém conhecimentos previamente adquiridos. A esse respeito, explicita:

Seu objeto é um “antes” experimentado pelo indivíduo, que o armazena em algum lugar do cérebro, recorrendo a ele quando necessário. Esse objeto pode ter valor sentimental, intelectual ou profissional, de modo que a memória pode remeter a uma lembrança ou recordação; mas não se limita a isso, porque compete àquela faculdade o acúmulo de um determinado saber, a que se recorre quando necessário.” (ZILBERMAN, 2014, p.165)

Portanto, a memória é fundamental para a constituição do indivíduo, que, a todo momento, constrói sua própria história de vida. Por isso, essa autora afirma com bastante propriedade: “A memória, por natureza, remete ao passado, razão por que se associa à história.” (ZILBERMAN, 2014, p.166)

E foi (re)conhecendo lembranças e memórias dos entrevistados que os alunos compreenderam parte das histórias do CMBH, como será apresentado no capítulo 4.

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