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A memória é um fenômeno discutido por meio de aspectos biológicos, psicoló- gicos e sociais. Está presente nos debates das humanidades, da biologia, da psicologia e das ciências sociais.

Do dicionário Porto (2015), dentre algumas definições, temos a memória desta- cada como “1. função geral de conservação de experiência anterior, que se manifesta por hábitos ou por lembranças; tomada de consciência do passado como tal. 2. lembrança, recordação.”

No design, entre algumas formas de enfoque, a temática da memória emerge de uma apropriação de teoria e experimentos da psicologia cognitiva, de traba- lhos com transversalidade na história e antropologia que tratam da cultura ma- terial33 (SILVA, 2015), e de pesquisas que consideram classe de objetos que

fazem lembrar (DAMAZIO, 2006), estas conjugando de alguma forma as abor- dagens citadas.

O design costuma justificar seu interesse por temáticas da memória se anco- rando, por exemplo, em senso patrimonial (SILVA, 2015) e nos estudos das emoções que são relacionadas aos artefatos. Isso porque, respectivamente, alguns artefatos são valorizados mediante aspectos históricos ou culturais com os quais são vinculados,e podem estimular determinadas práticas de uso. Na perspectiva antropológica, ou tal como sugere Candau (2014, p. 21), na angular de uma “antropologia da memória”, podemos discutir formas de mani- festação da memória principalmente enquanto representação (portanto, menos na condição de faculdade34), desde o que seria individual a formas sociais.

Com o enfoque esclarecido, tal pesquisador qualifica as memórias como fracas ou fortes e colabora para a sistematização da sua discussão por meio de de- composição em três níveis: protomemória, memória de evocação (de alto nível ou memória propriamente dita) e metamemória.

33 Inclusive, também conhecido como estudo da “memória material”. 34 Enquanto organização neurobiológica complexa.

De forma sintética, a distinção para Candau (2014, p. 44) entre uma memória forte e uma fraca estaria no poder da primeira em estruturar os grupos huma- nos (“memória massiva”), especialmente pequenos grupos, enquanto a segun- da, de caráter difuso e sem força para compartilhamento, uma potencial forma de desorganização de sentido e “desnaturalização” de grupos. No entanto, re- flete Letícia Matheus (2011) sobre a proposta de Candau (2014), se também as memórias fortes poderiam desorganizar sentidos quando funcionam como limi- tantes das lembranças.

Quanto aos três níveis de memória propostos por Candau (2014), como primei- ro, a protomemória se confirmaria, por exemplo, como uma “memória social incorporada” (MATHEUS, 2011) nos gestos, nas práticas e na linguagem35 (MATHEUS, 2011). Seria evidenciada, dessa forma, por meio de um processo inconsciente, automatizado e sem um julgamento prévio. Para ilustrá-la, temos Candau (2014) quando parafraseia situações descritas por Nobert Élias (1991): quando “Andamos de bicicleta sem cair ou saudamos uma pessoa que encon- tramos na rua adotando uma gestualidade incorporada, da qual nem nos da- mos conta [...]” (CANDAU, 2014, p. 23), estamos recorrendo à protomemória.

A memória, no nível de evocação ou propriamente dita

[...] é essencialmente uma memória de recordação ou reconhe- cimento: evocação deliberada ou invocação involuntária de lembranças autobiográficas ou pertencentes a uma memória enciclopédica (saberes, crenças, sensações, sentimentos etc.). A memória de alto nível, feita igualmente de esquecimento, po- de beneficiar-se de extensões artificiais que derivam do fenô- meno geral da memória. (CANDAU, 2014, p. 23).

Por fim, a metamemóriase trata de umarepresentação que fazemos da própria memória enquanto faculdade, sendo reivindicada para ser mostrada ou notada (ostensiva). Ela decorre da forma como nos filiamos ao passado, do nosso co-

35 Conforme Letícia Matheus (2011), a protomemória poderia ser confundida com o habitus de

Bourdieu (2009), considerando a fala de Candau (2014) sobre esse nível de memória. “Ainda lançando mão de uma categoria de Bourdieu (2009), a protomemória seria o próprio senso prático, segundo o qual o passado não chega sequer a ser representado.” (MATHEUS, 2011, p. 303).

nhecimento dela, do que dizemos dela e, dessa forma, se constitui de constru- ção de identidade, no seu estado explícito. (CANDAU, 2014, p. 23).

Enquanto reafirmamos a metamemória como um instrumento de mediação ou representação, a protomemória e memória de evocação dependem diretamen- te, como esclarece Candau (2014), da faculdade da memória (de processos ontológicos e não exteriorizados diretamente). Ainda, para Candau (2014), con- forme realça Matheus (2011), enquanto a protomemória e a memória de evo- cação não podem ser compartilhadas, restritas à uma dimensão de memórias individuais, a metamemória, como memória representada ou reivindicada os- tensivamente, é compartilhada e sujeita aos efeitos de uma construção coleti- va.

Quanto à condição não compartilhável da protomemória definida por Candau (2014), nos perguntamos se essa faculdade não possa, quando posta próxima ao conceito de habitus (MATHEUS, 2011), ser confundida como fenômeno passível de compartilhamento. Refletindo sobre as contribuições de Candau (2014) e Matheus (2011), temos que um esclarecimento a esse respeito pode estar na concepção da protomemória como o senso prático em si (Matheus, 2011), assim, podendo ser distinguida do que seria a sua representação. Sobre isso, meditamos acerca de uma diferença entre o senso prático e a prática em si, diríamos. O gestual de um agente desencadeado “naturalmente” por meio de uma situação qualquer, como acenar a mão ao rever um amigo, embora resultado de uma faculdade da memória (protomemória), não é o senso prático em si, mas a prática que o representa. Teríamos então que: o senso prático como faculdade está para a protomemória da mesma maneira que a prática como representação está para a metamemória. Anuindo a prática do aceno de mão como representação, nesta pesquisa, aproveitamos para destacar que temos um processo ainda mais indireto como objeto de análise. A considerar a distinção que interpretamos sobre prática e senso prático em si, a nossa análi- se se volta para representações de representações. Práticas que já se consti- tuiriam de representações de um senso prático em si, se tornam passíveis de

análise por meio de descrições feitas sobre elas, na forma de posts/ comentá- rios.

Com base na teoria a qual nos expomos, focamos na memória como “[...] expe- riência deslocada de seu ponto de partida na vivência imediata” (CARDOSO, 2012, p. 74, grifo nosso), isto é, experiência reconstituída por meio de evoca- ções do passado ou recordações (em nível de “memória de evocação”, em atenção à fala de Candau [2014]). Este processo seria seletivo, portanto carac- terizado também pelos esquecimentos.

Como registros de memória, temos a definição de toda representação docu- mental ou material de memórias, equivalente ao que Candau (2014) denomina como “traços de memória”36. Análogos à metamemória, esses registros são

suscetíveis a uma construção social (CANDAU, 2014) ou coletiva (HALBWACHS, 2006) e se tratam do objeto passível de observação. O conteú- do de registros que informa sobre comportamentos ou práticas dos agentes, como possíveis resultantes de incorporações (representações do senso prático em si), são vistos como matéria da análise empírica desta pesquisa.

2.5 A MEMÓRIA INDIVIDUAL, A MEMÓRIA SOCIAL E A MEMÓRIA

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