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HISTORICIDADES MÍTICAS NA HISTÓRIA DA AMAZÔNIA PERUANA

1.4 Memória topográfica, o espaço como forma da lembrança

O território definido como ancestral constitui um tipo de memória interétnica inscrita nos declives topográficos, em formações geológicas específicas, em alturas definidas do rio. O compartilhamento do território (e, mais importante, de certa perspectiva sobre ele) funciona como espaço de uma identificação histórica entre os Ashaninka do presente e seus ancestrais. Identificação interétnica ou mesmo interespécie, que, orientada pela paisagem, compõe um mosaico onde as fronteiras entre passado mítico e passado histórico se sobrepassam e eventualmente se articulam a partir do parentesco, daquilo que liga um ashaninka a outro. Um comentário de James Leach em sua etnografia sobre os Reite da Papua-Nova Guiné aponta para um sentido da ligação entre território e parentesco que me parece particularmente rico também para pensarmos também a situação amazônica:

A terra está muito bem viva e se insere diretamente na constituição (na geração) de pessoas. A relação entre terra e pessoa não é de contenção, com a terra "por fora" e a essência da pessoa "por dentro", mas de integração. [...] A constituição de pessoas e de lugares são aspectos mutuamente implicados do mesmo processo. Nesse sentido, o parentesco é geografia ou paisagem.116

115 PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Op. cit., 2019, p. 141.

116 LEACH, James. Creative Land. Place and Procreation on the Rai Coast of Papua New Guinea. Oxford:

62 A conversão de espaços abstratos em lugares sociais e culturais propriamente ditos produziu, também na história dos grupos indígenas da selva central peruana, a possibilidade de instituir, na paisagem, um tipo de memória interétnica integrativa.117 O antropólogo Fernando Santos-Granero afirma que em sociedades de menor escala, como a dos Arawak pré-andinos, a apropriação simbólica do espaço e a geração de vínculos afetivos a partir de seu compartilhamento se dão, geralmente, a partir de três tipos distintos (mas relacionados) de operações simbólicas: 1) a narração periódica de mitos telúricos, mitos que narram de que maneira o espaço dos tempos míticos se transformou na paisagem atual; 2) a constante execução de rituais de lugar, “rituais diretamente relacionados com a geração do lugar”; e 3) a narração e a comemoração cerimonial dos nomes que compõem seus territórios. A experiência espacial se dá, então, como manifestação de um impulso indígena pela apropriação criativa da territorialidade.118

Talvez esse esquema elaborado por Fernando Santos-Granero seja particularmente útil para pensar a experiência histórica dos Ashaninka em torno da paisagem como memória e do espaço como forma da lembrança. O mito de criação de Pakitzapango, assim como as diferentes versões do mito sobre a criação do Cerro do Sal, expõe a maneira pela qual um lugar “profano” se transforma, através do mito, em lugar “sagrado” da vida social – o espaço como experiência de significação. Os ritos, como as peregrinações anuais ao Cerro do Sal, apresentam o segundo ponto do esquema, pois a peregrinação efetivamente cria e reforça o significado sagrado do lugar – percorrer o território é um ato mnemônico. Por último, a insistência dos Ashaninka em mobilizar, pela narração oral, essa significação sagrada da paisagem reproduz os sensos de compartilhamento histórico entre pessoas e território.

Nos dias de hoje, os caminhos da floresta ou dos rios que ligam pequenas comunidades a outras são diariamente percorridos por centenas de ashaninkas que habitam a mesma região de seus ancestrais pré-hispânicos. Desde muito cedo, as crianças aprendem sobre esses lugares míticos, tanto porque eles importam do ponto de vista simbólico-religioso como porque funcionam como pontos de referência e orientação. Durante minha visita à região, não me lembro de nenhuma viagem, a pé ou de barco, pelo rio Ene ou pelos estreitos caminhos abertos em meio à vegetação, em que meus interlocutores ashaninka não me indicassem o nome de certos referenciais geográficos, de formações rochosas, de pequenas montanhas ou de partes específicas do rio, ocasiões em que, na maioria das vezes, esforçavam-se para me explicar – e

117 Ver principalmente HIRSCH, Eric; O'HANLON, Michael (eds.) The anthropology of landscape: perspectives

on place and space. Oxford: Clarendon Press, 1995.

63 eu me esforçava para entender – também as histórias míticas que explicavam a origem de cada local.

Se antigamente os Ashaninka viajavam pela região em busca de esposas (no caso dos homens), para extrair o sal do Pareni, para guerrear, para visitar sheripiaris (xamãs) de outras comunidades, para frequentar festas em assentamentos vizinhos ou para participar de celebrações em centros cerimoniais e de peregrinação, nos dias de hoje a viagem pela floresta segue sendo parte importante de sua vida social. Homens e mulheres atravessam as matas e os rios para se dedicar a trabalhos assalariados temporários, para entregar petições às agências do governo, para participar de campeonatos de futebol em outras comunidades, para encontrar autoridades regionais ou para participar de assembleias políticas intercomunitárias. Pude viajar, em algumas ocasiões, em pequenas embarcações coletivas que, com horários mais ou menos fixos, levam ou buscam pessoas na direção de Satipo. Também os barcos da organização local estão sempre repletos de técnicos, funcionários e ashaninkas das mais diversas comunidades em trânsito. Outras embarcações circulam diariamente levando e trazendo crianças de comunidades que não possuem escolas ou postos de saúde para as que já possuem. As constantes viagens e movimentações no território conservam vivas as memórias dos antigos lugares sagrados e reafirmam, por consequência, as origens ancestrais comuns entre os grupos e suas formas (também ancestrais) de contato e relacionamento.

É possível dizer que, tal como os Yanesha descritos por Santos-Granero, também os Ashaninka “leem” sua própria história enquanto observam a paisagem e viajam pelo território. No entanto, não se trata apenas de uma “leitura” da vida social, pois não há distância segura, para os povos amazônicos, entre uma exterioridade da paisagem e a interioridade dos sujeitos. Como Tim Ingold concluiu em uma tentativa de enfatizar o aspecto imanente e existencial da paisagem, percebê-la pode ser, em certos contextos e em certas sociedades, a realização de um “ato de lembrança”, ato que “não é tanto uma questão de invocar uma imagem interna, armazenada na mente, mas de se engajar perceptivamente em um ambiente que está impregnado de passado”119. Assim, não surpreende o fato de que, fruto de um engajamento perceptivo com um espaço no qual camadas temporais se sobrepõem, a paisagem amazônica também se transforme, para seus povos autóctones, em ferramenta possível de organização, mobilização e estratégia política.

Implicar a paisagem no interior de disputas políticas é afirmar a legitimidade dos significados sociais nela incorporados. Cada marcador geográfico é também um marcador

119INGOLD, Tim; KURTTILA, Terhi. Perceiving the environment in Finnish Lapland. Body & society, v. 6, n. 3-

64 histórico e, portanto, mítico, um “topograma”. Pakitzapango é, assim, a casa da águia mítica, mas é, ao mesmo tempo, a parte mais imprevisível do rio, que exige experiência dos que controlam os barcos, e, além disso, espaço de disputa política no presente, articulada historicamente em seus termos pela centralidade do mito. O Cerro do Sal, ainda que menos presente na memória local do presente, também articula a lembrança de passados conflituosos que exigiram a formação contínua de redes políticas orientadas pelo valor simbólico da paisagem: o passado pré-colonial, a contínua violência da colonização e suas persistências no presente.

Mesmo que, nos dias de hoje, a persuasão da cosmologia seja afetada pela intrusão de inesgotáveis imagens de mundo nas comunidades, e mesmo que alguns já não acreditem nas histórias míticas que explicam a origem desses lugares sagrados e que promovem rituais associados a eles, não significa que o valor histórico e político derivado dos mitos foi totalmente perdido. A persistência instável e incerta dessa recordação mítica (porque importa para a identidade coletiva, porque sua mobilização pode ser eficaz na luta política, ou mesmo por sua capacidade de produzir algum prazer estético) reafirma a legitimidade de suas noções expansivas de paisagem, que a concebem como um espaço para além do (tempo) presente e como uma entidade que é mais do que um recurso material. A continuidade do vínculo intelectual e afetivo que os Ashaninka mantêm com sua paisagem – apesar das profundas transformações causadas pela modernidade na selva peruana – manifesta a possibilidade de um descentramento relativo de como concebemos a relação entre território, memória e tempo.

Conclusão

Antes dos primeiros contatos com os europeus, o intercâmbio e o comércio do sal entre os Arawak aparecem como transações econômicas que são também cosmológicas, porque, se regulam os laços comunitários (políticos) entre ashaninkas e não-ashaninkas, também organizam e produzem significados no interior de seu mundo (seu cosmos particular). O ato de recolher o sal é concebido como um movimento que se assemelha a uma relação entre pessoas; e a comercialização e a troca como negociações cosmológicas reafirmam e mantém vivos os laços interétnicos. Depois, durante os contatos intensivos entre ashaninkas e espanhóis, no período colonial, a mediação da política pela cosmologia será constantemente reiterada novamente sob a forma de alianças interétnicas. As revoltas políticas serão marcadas, por exemplo, pela afirmação da imanência das divindades em seu mundo.

65 A identificação de Juan Santos como uma entidade espiritual (“messiânica” ou não), por exemplo, é a articulação prática de noções endógenas que concebem formas espirituais e terrenas como coexistentes em um espaço-tempo contínuo. O pensamento mítico e a memória que o mito imprime na paisagem, por sua vez, importam porque dão visibilidade, entre outras coisas, à especificidade de uma experiência que expande temporalmente o espaço (a paisagem), no sentido em que institui nela um tipo de lembrança, ao mesmo tempo em que define sua identidade no presente a partir da ancestralidade do território. Considerar a historicidade do mito – a maneira pela qual o mundo do mito é articulado em cada situação histórica específica – significa, assim, problematizar a imagem tradicional que tende a submergir a memória indígena em um “mundo intemporal” do mito. Da mesma forma que vimos nos exemplos da literatura antropológica (partindo de Lévi-Strauss e Marshall Sahlins e chegando às contribuições mais recentes de Turner, Dillon, Abercrombie etc.) e também pelas constribuições de historiadores (Ana Carolina Barbosa Pereira, Sanjay Seth, Fernando Nicolazzi, Hayden White etc.), os mitos não constituem sistemas fechados de previsão nos quais a mudança (a história) é absorvida e cancelada pela força de uma estrutura mítica repetitiva. Pelo contrário, seja enquanto expressão de diferentes “culturas de passado”, seja enquanto elemento “plástico” (capaz de absorver criativamente as circustâncias históricas), o que começamos a ver ao longo do capítulo foi, para falar com Ana Carolina Pereira, essa capacidade do mito em instituir uma história “que precisa ser constantemente atualizada pela fabricação do tempo e da memória”120.

A partir de elementos dispersos no tempo da história ashaninka, vimos até aqui a importância em assinalar que a natureza da relação entre mito e história não pode se limitar a ver, no mito, uma expressão cultural ahistórica, uma forma simbólica cuja função é apenas mobilizar uma imagem de mundo externa ao tempo histórico, pois, quando mobilizados no presente, os mitos rearticulam o conteúdo do passado ancestral a partir de situações conjunturais. É essa historicidade particular dos mitos – o fato de que sua rememoração oral ou ritual é um processo ativo que está, na Amazônia, inserido em dinâmicas locais e globais de poder – que exige considerá-los, historiograficamente, como algo mais do que uma manifestação passiva de uma ancestralidade genérica (entendido como um passado ahistórico).

Cabe, dessa maneira, abordar o mito pela sua capacidade de tornar o mundo significativo a partir das formas pelas quais sua imagem emerge conceitualmente em processos histórico- políticos de conflito, resistência e negociação. No capítulo seguinte, analisaremos duas

66 situações da história recente dos Ashaninka do rio Ene nas quais significados cosmológicos terminaram por criar inversões essenciais da política contemporânea nacional, reconstituindo internamente, de forma semelhante ao que observamos até aqui, eventos históricos marcados pela violência no interior de um quadro conceitual próprio. Antes, entretanto, retornaremos ao problema que iniciou o presente capítulo, explorando agora de que forma a produção de sentido temporal do mito (sua remissão a um “tempo dos ancestrais”) indica a presença de concepções de tempo radicalmente múltiplas e relacionais. Esse exercício será importante para a tentativa de definir, mais tarde, as historicidades ameríndias a partir da ideia de cosmopolítica temporal, como uma forma possível de nomeação da temporalidade – atravessada de ponta a ponta pela presença discursiva da ancestralidade – sem que essa definição signifique submetê-la (e reduzi- la) aos padrões explicativos de nossa tradição disciplinar.

Figura 6 – Ashaninkas de diferentes comunidades no barco da Central Ashaninka del Río Ene, no rio Ene, a caminho de uma assembleia intercomunitária em Potsoteni (Arquivo pessoal, 2017).

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Figura 7 - Crianças ashaninkas esperando o barco na borda do rio Ene em Potsoteni, depois de um dia de aula (Arquivo pessoal, 2017).

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CAPÍTULO 2

O IDIOMA POLÍTICO DA TEMPORALIDADE: ANCESTRALIDADE