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1. CAPÍTULO 1 – A CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS E DA HISTÓRIA

1.1. Memórias Coletivas: algumas ponderações

Falar em história e memórias coletivas não implica a referência a uma memória homogeneizante, capaz de contemplar igualmente todos os grupos sociais do país. O historiador francês Jacques Le Goff utiliza o termo ‘memória social histórica’ (LE GOFF, 2013, p. 196) para definir as memórias que são coletivas em uma sociedade, pertencentes a todos os membros da mesma. Segundo ele, embora cada indivíduo seja apresentado a essa ‘memória social histórica’ pelo ensino e a tradição, também é capaz de formar desde a infância, sua própria memória individual. Isso explica que cada um incorpore na própria história coisas que se passaram muito antes de sua existência, com seus pais, grupos sociais e no mundo inteiro. Essa manipulação da história e da memória, no sentido de direcionar e coordenar a memória de toda uma sociedade está presente nos interesses de grupos dominantes:

Tornarem-se senhoras da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 2013, p.390).

É valido refletir e pontuar algumas questões quanto à ‘memória coletiva’ e ‘memória individual’, termos usados há pouco e aos quais recorreremos durante todo o texto. Essas duas facetas da memória, na proposta do sociólogo Maurice Halbwachs, estão

interligadas. Segundo o autor, embora pertença a algum momento vivido por uma única pessoa, ou seja, considerada individual, a memória não deixa de ser coletiva, uma vez que nossas lembranças são condicionadas por fatores advindos de nossas vidas sociais e, portanto,

Só temos capacidade de nos lembrar quando nos colocamos no ponto de vista de um ou mais grupos e de nos situar novamente em uma ou mais correntes do pensamento coletivo [...] Quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado de alguém, sem dúvida, durante algum tempo ‘esteve só’, segundo a linguagem comum. Mas lá não esteve só senão na aparência, posto que, mesmo nesse intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam pela natureza do ser social, e que em nenhum instante deixou de estar confinado dentro de alguma sociedade (HALBWACHS, 1990. p. 36-37).

Sobre tal afirmação, de que a memória, nesse sentido, só é possível no coletivo, o filósofo Paul Ricoeur apresenta algumas reservas que podem ser justificadas em reflexões apresentadas pelo próprio Halbwachs, uma vez que, para que possam ser consideradas parte de um grupo, as lembranças têm como ponto de partida o individual. Além disso, afirma o Ricoeur:

O próprio ato de ‘se recolocar’ num grupo e de se ‘deslocar’ de grupo em grupo, e mais geralmente, de adotar o ‘ponto de partida’ do grupo, não supõe uma espontaneidade capaz de dar sequência a si mesma? Caso contrário, a sociedade não teria atores sociais (RICOEUR, 2007, p. 132).

Feitas tais considerações, deve-se salientar que é considerada, neste trabalho, a memória coletiva nos termos propostos por Halbwachs, enquanto memória formada por diferentes memórias individuais das pessoas que compõem um grupo, mas tendo em conta a ressalva de Ricoeur de que esses são atores sociais e, portanto, portadores e, consequentemente, formadores de memórias. Por isso, as memórias individuais nos interessam também, mesmo que destoem daquelas de qualquer grupo, uma vez que consideramos as impressões particulares sobre a ditadura militar importantes, especialmente as das mulheres.

Bem como essa ‘memória coletiva’, a ‘história coletiva’ – uma história considerada comum a todos os habitantes de uma comunidade – não é capaz de impedir que

cada membro de um grupo social forme suas próprias memórias, considerando especificidades de sua vida, pelas quais os outros não passaram.

Assim, tais história e memória coletivas serão tratadas neste trabalho com estreitas relações, mas não são encaradas como coisas sinônimas. Antes, como campos que se interpenetram ao tratar das relações entre o passado e o presente. Além disso, a memória exerce, como bem demonstra Paul Ricoeur, uma função matricial para a história. A “memória coletiva [...] constitui o solo de enraizamento da historiografia [...] é enquanto exercida que a memória cai sob esse ponto de vista” (RICOEUR, 2007, p. 83).

Nesse âmbito da memória coletiva, àquela apresentada aos indivíduos, que não foram por eles diretamente vivenciadas, Leroi-Gourhan, antropólogo francês, denomina ‘memória pré-construída’. No trecho a seguir o autor demonstra que a partir do fim do século XVIII:

Em alguns decênios a memória social absorve nos livros toda a Antiguidade, a história dos grandes povos [...] O fluxo amplifica-se, incessantemente até nossos dias, mas, guardadas as devidas proporções nenhum outro momento da história humana conheceu uma tão rápida dilatação da memória coletiva. Assim, já no século XVIII deparamos com todas as fórmulas a que é possível recorrer para fornecer ao leitor uma memória pré-constituída (LEROI-GOURHAN, 1965, p. 62-63).

Essa ‘memória pré-construída’ é incutida na sociedade de diferentes maneiras, formando o que Leroi-Gourhan chama de ‘memória total’. Dentre elas estão os dicionários e enciclopédias que, em ordem alfabética, trazem fragmentos da memória ampla. Além dos já citados, duas outras modalidades da memória coletiva que tiveram início no século XIX e XX são a construção de monumentos aos mortos na Primeira Guerra Mundial e a fotografia (LE GOFF, 2013).

Detenhamo-nos um pouco na questão dos monumentos e o patrimônio histórico, tanto os dedicados aos mortos em guerra, mencionados por Le Goff, quanto todos os outros, que são espaços dedicados a detenção e produção de memória. A historiadora francesa Françoise Choay, em A Alegoria do Patrimônio, problematiza o patrimônio histórico e traça os diferentes olhares que atribuíram variados tipos de valor aos monumentos ao longo dos anos na Europa. Especificamente, nos interessa a análise da autora sobre como o crítico social e de arte John Ruskin “atribuiu à memória uma

destinação e um valor novos do monumento histórico” (CHOAY, 2001, p. 139). Assim sendo, os monumentos são tidos como um laço através do qual os indivíduos se conectam com seus ancestrais, que nos ajuda a compor a identidade de um povo. Um monumento, porém, só poderia readquirir um caráter memorial através do trabalho e da moral que o constituíram em sua essência. Nesse aspecto, a autora critica Ruskin por atribuir ao monumento histórico valores e a funcionalidade de um monumento original e, portanto, abstrair seu valor histórico (CHOAY, 2001, p. 141). Isso porque, as transformações sofridas por um monumento ou edifício ao decorrer dos anos, apesar de subtrair sua originalidade, é parte integrante de sua história e, consequentemente, da identificação que ele produz em uma determinada sociedade e das memórias que ele instiga e representa.

Sobre as cidades históricas, ou outro tipo de memória concreta, onde tudo é considerado monumento, uma vez que a maior parte da arquitetura é preservada, Françoise Choay volta a ilustrar como, para Ruskin, essas cidades deveriam permanecer intocadas como “garantias de nossa identidade, pessoal, local, nacional, humana” (CHOAY, 2001, p. 181). Mais uma vez, a autora faz a crítica de que a manutenção da arquitetura original, impedindo as transformações necessárias na sociedade que dispõe de diferentes demandas pós-Revolução Industrial, “encerra [a cidade] no passado e perde de vista a cidade historial, a que está engajada no devir da historicidade” (CHOAY, 2001, p. 181). Com o exemplo da visão de John Ruskin sobre que tipo de monumento ou estrutura é portador de memória e através da análise que Choay faz dessa visão, temos exemplos das muitas disputas pela memória, no sentido das divergências de opiniões sobre as circunstâncias em que a memória se manifesta nas cidades, em seus monumentos e quais as características que levam os mesmos a ser ou não preservados.

Sintetizando, por fim, a relação que a autora encontra entre o patrimônio – não só o monumental – e a memória e como essa relação é carregada de intenções e escolhas, temos:

A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de

uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar [...] Ele constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietação gerada pela incerteza dos começos (CHOAY, 2001, p. 18).

Faz-se necessário ainda diferenciar o monumento construído especificamente para tornar-se um espaço de memória, como o exemplo dos monumentos construídos ao fim da Primeira Guerra Mundial, citados por Le Goff, dos monumentos históricos, que não foram construídos com tal finalidade, mas se tornaram um pela ação conjunta dos estudiosos que os selecionaram como locais importantes e a ação política que os efetiva enquanto tal (CHOAY, 2001). Apesar disso, o patrimônio em geral e, os monumentos particularmente, não necessariamente são identificados como parte integrante da identidade e memória de toda a população.

Em tempo, importa ressaltar que todo tipo de materialidade produzida pelo homem é passível de integrar as memórias de um indivíduo ou uma sociedade e, nesse quesito, a arqueologia é de fundamental importância. Nesse sentido, escreve Choay:

Todo objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico sem que para isso tenha, na origem, uma destinação memorial. De modo inverso, cumpre lembrar que todo artefato humano pode ser deliberadamente investido de função memorial (CHOAY, 2001, p. 25-26).

Quanto à fotografia, Le Goff defende que a mesma “revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo, assim, guardar a memória do tempo e da evolução cronológica.” (LE GOFF, 2013, p. 426). Na mesma linha de pensamento, Françoise Choay escreve que a fotografia apareceu como uma nova técnica capaz de aprisionar e restituir o passado de uma maneira mais concreta, afinal “se dirige diretamente aos sentidos e à sensibilidade, ‘memórias’ dos sistemas eletrônicos abstratos e incorpóreos” (CHOAY, 2001, p. 21). Nesse mesmo sentido, a autora nos apresenta como Roland Barthes via na fotografia uma capacidade de autenticidade e de ressuscitar alguém que não se vê há tempos. Para além disso, Choay nos demonstra como o autor percebeu na fotografia uma adaptação do monumento que reflete o individualismo de nossa sociedade, sendo “o monumento da sociedade privada, que permite a cada um conseguir, em particular, a volta dos mortos, privados ou públicos, que fundam sua identidade” (CHOAY, 2001, p. 22).

Outra relação entre a fotografia e o monumento foi a possibilidade que a primeira trouxe de promoção midiática e registro do segundo, ainda que muitas vezes estejam esvaziados de sentido, uma vez que pode capturar suas imagens e promover uma memória daquele lugar baseada nessas imagens. Como exemplo disso, podemos citar os cartões postais (CHOAY, 2001).

A historiadora Aline Vieira de Carvalho demonstra como as Secretarias de Turismo das cidades de Angra dos Reis e Paraty/RJ, especialmente de Paraty, têm um papel fundamental na formação da memória histórica oficial das cidades, visto que selecionam e enfatizam os espaços a serem preservados de acordo com o que lhes parece mais ‘importante’ e silenciam ou ignoram outros e, com isso, direcionam a atenção da sociedade, especialmente os turistas à esses espaços específicos. Diz a autora que tais órgãos “desenham as memórias oficiais das cidades que reverberam no senso comum” (CARVALHO, 2009, p. 252). Podemos facilmente estender o grande papel dessas duas Secretarias de Turismo para todas as outras, que são pilares poderosos da memória coletiva. Mais dois exemplos, caros a esse trabalho, do exercício de escolha do que constitui ou não a memória e história coletivas são a produção historiográfica e o ensino de História nas Universidades. Na medida em que obedece aos ditames de um grupo que elaborou a bibliografia básica dos cursos – integrante ou não do Projeto Político Pedagógico dos mesmos –, inserindo nela os assuntos que acredita dever ser tratado nas aulas e, fazendo uma escolha das obras a partir das quais estudarão tais temas, optam por aquelas que possuem uma abordagem que melhor lhes cabe. É claro que cada professor tem certa autonomia para escolher determinados assuntos em detrimentos de outros, bem como a forma de apresentá-los a seus alunos e, por isso, essas relações bibliográficas não são engessadas e podem ser alteradas. Tais poderes de escolha, do professor e daqueles que elaboraram as bibliografias – em alguns casos são as mesmas pessoas – são formas de usos da memória através da escolha de qual tipo de documento e quais obras vão analisar, embasando o conhecimento de alunos que, no futuro, serão também pesquisadores e poderão produzir trabalhos historiográficos que ajudam a compor a memória de uma região ou país. No entanto, isso não significa que as escolhas desse professor vão fazer da memória coletiva sobre determinado assunto algo acabado e capaz de abarcar a todos

igualmente, impossível de moldar, pois o que ocorre é o contrário: a memória coletiva é maleável, exemplo disso é a pluralidade de obras que listamos aqui e que nenhuma delas é explorada em todas as universidades.

Como mencionado acima nos referindo às obras que são estudadas nos cursos de História, temos nelas mais um pilar da construção da memória coletiva, afinal, se algumas delas vêm sendo citadas por mais de cinco universidades – no caso das que analisaremos nesse trabalho – podemos supor que contribuíram bastante para a construção da história e memória coletiva do país sobre a ditadura militar.

Nesse mesmo sentido, apontando para a impossibilidade de uma história totalizante, o sociólogo Michael Pollak, demonstra como as ‘memórias subterrâneas’ dos grupos dominados se chocam com a ‘memória dominante’ do discurso oficial (POLLAK, 1989). Assim, não é possível, e nem seria a intenção desse trabalho, captar a memória nacional sobre a ditadura militar brasileira, mas perceber como essa memória vem sendo construída a partir da formação de historiadores e, principalmente, se as memórias das pessoas atuantes no período foram exploradas para a construção de obras que abarcam o tema, e que são usadas em universidades como bases para o conhecimento dos futuros historiadores sobre o assunto.

Uma memória coletiva sobre a ditadura é feita de conflitos entre os testemunhos, de um lado dos representantes do Estado, na sua maioria militares e, de outro, os militantes de partidos, pessoas que não militavam, mas se ligaram de alguma forma à oposição ao regime e, finalmente, os familiares das vítimas do mesmo e toda a população que não participou ativamente, mas sofreu as consequências do Estado de Exceção instaurado. Por isso, acredita-se que Pollak tenha confrontado de forma acertada a ideia de Maurice Halbwachs de que a ‘memória nacional’ é a forma mais completa da ‘memória coletiva’ (POLLAK, 1989, p. 3), uma vez que, segundo Pollak, não poderia existir tal ‘memória nacional’. Isso porque que cada grupo de indivíduos constrói um tipo de memória sobre determinado período de tempo, podendo ser por vezes conflituosas, como ocorre no caso das memórias sobre o período de repressão no Brasil, que, por esse motivo, não podem ser chamadas de ‘memórias nacionais’ sobre a ditadura militar brasileira.

Por fim, temos ainda o caso daqueles que foram silenciados, desaparecidos pelo regime e, por isso, não podem testemunhar pessoalmente suas memórias. Ora, um país não pode possuir uma ‘memória nacional’ homogênea e única, principalmente se prescinde das memórias desses tantos desaparecidos. Nesse ponto, vale reproduzir um depoimento que demonstra o significado político e de vontade de justiça nos testemunhos dos sobreviventes da ditadura militar. Em entrevista cedida à historiadora Margareth Rago, a feminista e ex- militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Criméia Alice Schmidt de Almeida, que participou da Guerrilha do Araguaia onde a maioria dos companheiros morreu, fala da importância que percebe em dividir suas memórias como forma de contar parte da história do país:

São vários fatores. Por um lado, você reconstitui a sua própria memória, que está fragmentada. Por outro, sempre me coloquei o seguinte: eu poderia ser um dos desaparecidos, então eu sei mais deles do que qualquer pessoa, desses, pelo menos, então eu tenho responsabilidade com a reconstituição dessa história, ele não é só minha, é a deles que perderam o direito de falar. Então muitas coisas que vão se interligando umas com as outras, que é memória. No fundo, o que é a história de um país? É isso, só que, vamos dizer, essa história que estou contando é muito traumática, é de muita dor, de muita perda, de muito sofrimento, mas a história do Brasil é isso, a história do mundo é isso (ALMEIDA apud. RAGO, 2013, p. 139).