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2 O ESPAÇO-TEMPO DE CONSTRUÇÃO TEÓRICA EM TORNO DA

2.7 Memórias e narrativas (auto)biográficas

Buscando no dicionário o significado da palavra memória, podemos acessar algumas referências sobre a mesma como “faculdade de lembrar e conservar ideias, imagens, impressões, conhecimentos e experiências, adquiridos no passado e habilidade de acessar essas informações na mente”, ou ainda “relato oral ou escrito de um acontecimento, narração” e também “termo geral para denominar a função do sistema nervoso com a capacidade de reconhecer, evocar, reter e fixar as experiências passadas” (DICIONÁRIO ..., ANO, p.).

Ao buscar esses significados, nos propusemos a pensar a memória a partir do (inter)cruzamento dos mesmos, compreendendo-a, então, como narrativa que faz emergir conhecimentos e experiências, que são reconhecidas, acessadas e (re)configuradas a partir da associação que se faz entre o que se vive e o que já foi vivido. Defendemos que o tempo da memória de um indivíduo “é a história de um passado aberto, inconcluso, capaz de promessas. Não se deve julgá-lo como um tempo ultrapassado, mas como um universo contraditório do qual se podem arrancar o sim e o não, a tese e a antítese, o que teve segmento triunfal e o que foi truncado” (BOSI, 2003, p. 32).

É assim que a memória apresenta seu caráter de movimento e não de figura presa a um tempo não mais vivido. Acessar as memórias implica refletir sobre o que se viveu e, consequentemente, acessar o que dessa memória reverbera no presente do indivíduo e em seus anseios para o futuro. A memória não é restrita ao passado, a uma lembrança guardada em um compartimento que ora é lembrado ora é esquecido, ela é a composição que o indivíduo faz em sua subjetividade, daquilo que foi marcante em sua vivência.

Neste sentido, entendemos que o indivíduo constrói e reconstrói memórias constantemente, no movimento de constituição do seu próprio eu, onde o que flui facilmente e o que se escolhe esquecer caminham na constituição das imagens que se inscrevem no tempo. A memória é, então, um constante processo de negociação entre subjetividade e objetividade de um sujeito, visto que a subjetividade objetiva-se principalmente no que se escolhe ou não

trazer à margem no momento da rememoração. Desse modo, rememorar é também processo de escolhas e análises que se faz sobre a própria vida.

A memória relaciona-se com o tempo e os espaços em que se desenham, e os indivíduos podem utilizar essa experiência “fazendo da memória um apoio sólido da vontade, matriz de projetos” (BOSI, 2003, p. 33). Com isto, percebemos a relação que podemos traçar entre a memória e a formação de professores, pois esta pode trazer elementos desde que se constituem enquanto intencionalidades tanto na opção pela profissão quando na constituição do fazer docente destes. Sendo assim, a memória não é constituída apenas pelo par lembrar ou esquecer, é uma atividade de espírito e não um repositório de lembranças (BOSI, 2003), é a possibilidade de apoio ou rompimento, de visões, de práticas, de sentidos.

As memórias que os indivíduos constroem ao longo da vida são resultados de suas experiências, e neste sentido, concordamos com Larrosa (2002, p. 21) que nos afirma que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. Frente a isto, entendemos a experiência como processo formador, a partir daquilo que foi ou é significativo para o indivíduo em formação e que está contido em sua história e que supera a noção de uma quantidade de tempo de vivências, relacionando-se com a intensidade e o caráter de transformação que essa experiência pode proporcionar.

Para reforçar nosso entendimento, concordamos com Bosi (2003, p. 23) quando afirma que “existe dentro da história cronológica, outra história mais densa de substância memorativa no fluxo do tempo. Aparece com clareza nas biografias; tal como nas paisagens, há marcos no espaço onde os valores se adensam”. Neste sentido, nosso foco não é apenas a rememoração ou o teor cronológico contido nas experiências, mas as raízes em que se apoiam as memórias e que são particulares do indivíduo, são sua (auto)biografia.

A memória a que recorreremos neste trabalho diz respeito às construções relativas aos processos de escolarização e formação inicial dos professores, à sua história de vida centrada em sua formação, assim é uma memória que faz parte da constituição do “eu profissional” e mais especificamente do “eu professor”. Não significa dizer que as memórias são compartimentadas dentro de nós, como se fôssemos divididos entre o que é ou não profissional, a ideia é, no entanto, focalizar as relações daquilo que especificamente se assenta na história da constituição do indivíduo enquanto professor, relacionando-se ao contexto e às do mesmo, o que implica compreender a memória na relação entre o que é individual e coletivo, bem como com o contexto e que se está inserido.

A este respeito, concordamos com Meinerz e Gasparotto (2014, p. 19) quando afirmam que “em diversas vezes, as referências do professor estão alicerçadas nas suas vivências dentro e fora da escola e da universidade, resgatando memórias de sua trajetória de vida”, esse resgate faz da memória um constante processo de construção, que quando narrados pelo indivíduo cumprem um papel de (auto)formação. Assim, para que se cumpra esse papel, acreditamos na escrita (auto)biográfica como mobilizadora dessas memórias.

Segundo Bragança (2011, p. 157), a abordagem (auto)biográfica apresenta uma caráter formador, onde se busca construir uma “[...] epistemologia de formação que, contrapondo-se à racionalidade técnica, mobilize uma racionalidade sensível, incorporando a vida dos sujeitos, em toda sua complexidade existencial, como componente fundamentam do processo formativo”, neste sentido compreendemos que o processo de formação liga-se a todas as esferas da vida do indivíduo, configurando-se menos externa e mais interna ao sujeito e constituindo-se de imagens, saberes e práticas.

A formação a partir da narrativa (auto)biográfica pressupõe reflexão por meio das imagens do passado, o que se tem do presente e do que se pensa para o futuro, com isto, as memórias são uma narrativa não descritiva, mas de (re)construção e formação de si mesmo em relação com o mundo.

Para Larrosa (2010, p. 21), “[...] talvez nessa história em que um homem se narra a si mesmo, nessa história que não seja senão a repetição de outras histórias, possamos adivinhar algo daquilo que somos”, assim reiteramos nossa ideia de que memórias são narrativas que, quando expressas pelo próprio indivíduo que as construiu, por meio de uma (auto)biografia, nos apresentam construção daquilo que se é. Dito de outra maneira, a memória, mobilizada por meio da narrativa (auto)biográfica, é elemento que forma e transforma o indivíduo.

Neste sentido, essas memórias se constituem como elemento formativo no que diz respeito aos sentidos que os mesmos possam apresentar sobre sua profissão e sobre a constituição do ser docente. Concordamos com Moraes (2015, p. 110) quando afirma que “a ação docente está fundamentada na história coletiva e na experiência individual de escolarização e de profissão, em sentido prático”. Portanto, entendemos que a ação do professor é resultado também de sua história, ou trajetória de vida e com isto sua memória representa não a simples recordação finda em si mesma, mas um movimento de viver e reviver aspectos considerados marcantes em sua trajetória.

Para Moraes (2015, p. 111), “são memórias que expressam projetos de vida e de profissão, com seus desafios esperanças e temores”, com isto ressaltamos sua importância como dispositivo que auxilia na ampliação de nosso conhecimento sobre a escola, por

expressar ainda, segundo a mesma autora, “a capacidade de percepção dos estudantes sobre as questões educacionais”.

Neste sentido, as memórias dos estudantes em formação podem mobilizar saberes em sua prática, além de fazerem parte da construção do ser docente que também vai sendo constituindo na história pessoal e nas experiências dos indivíduos seja em sua experiência de escolarização e formação acadêmica, seja nos grupos sociais em que está inserido.

As memórias podem ainda revelar como os sujeitos entendem a representação social de sua profissão, o que os identifica com ela e o que os faz aderir a mesma, assim a memória trabalhada junto ao estágio pode possibilitar a construção do ser docente a partir dos saberes que antecedem a própria prática docente, seja na sua trajetória escolar e na formação inicial, seja nas suas vivências.