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CAPÍTULO 2 – ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.1. Revisão da Literatura: Elementos teóricos

2.1.2. Construto Mentira em diferentes contextos

2.1.2.2. Contexto Sociocultural

2.1.2.3.2. Mentira na Idade Média

Na idade média, entre os séculos V e XV, o valor da verdade volta a subir, muito por força do rigor da moral cristã. “A arte medieval poderia caracterizar-se pelo controlo férreo da verdade sobre a mentira” (Fernández, 2006, p.6). A Igreja influi irremediavelmente nas correntes filosóficas vigentes e as discussões acerca da aceitabilidade da mentira, surgem diversas passagens de escrituras sagradas, onde se lêem lusões à mesma. (e.g. Gen.12, 11-13; Exodo 1, 17-29; 1 Samuel 21, 12-13; Lucas 24, 13-28)

Como forma de as justificar, a Igreja, recorrendo ao discurso metafórico, recordava que mesmo o veneno mais letal, se administrado nas proporções e momentos adequados, poderia salvar vidas em vez de as aniquilar (Freire, 1980).

A partir desse momento, as conceções de mentira passaram a centralizar-se em dois polos distintos: por um lado os defensores da verdade que não admitiam a sua falta em contexto algum e, por outro lado, aqueles que, rejeitando a mentira, aceitavam contudo que a mesma pudesse apresentar-se em situações excecionais ou de natureza inevitável.

Santo Agostinho (354-430) foi o mais notável defensor medieval da primeira corrente, apresentando-se como um franco opositor à mentira, que considerava ser um fenómeno complexo e pleno de obscuridades (Cortés, 1996). Alheio às contradições religiosas entre a adoração da verdade e a indolência face ao conteúdo

inconveniente de várias passagens bíblicas, manteve-se intransigente na sua visão sobre a mentira (Durão, 1955) e, apoiando-se no legado aristotélico, defendeu que a mesma representava um abuso de expressão na faculdade da comunicação concedida por Deus ao Homem, a qual deveria servir para expressar sentimentos verdadeiros e não para ocultá-los ou deturpá-los (Cortés, 1996). No seu ponto de vista, Santo Agostinho considerava que ao dizer o oposto daquilo que pensava, o Homem, pecava por inverter a ordem natural das coisas a qual consistia em falar para transmitir a verdade, e portanto, independentemente da gravidade do enunciado proferido, não poderia existir justificação para a mentira. O fundamento doutrinal cristão mais grave contra a mentira era a conceção de Deus enquanto verdade e, neste sentido, mentir tornava-se numa transgressão porque, ao faltar à verdade, o Homem faltava a Deus (Cortés, 1996).

Santo Agostinho, bispo de Hipona, autor de duas obras inteiramente dedicadas à reflexão sobre a mentira - “De Mendacio” escrito por volta do ano 395 e “Contra Mendacium” escrito em 420 – considera-a como “locutio contra mentem” (falar contra o próprio pensamento e embora a assuma sempre como uma opção errada, tende a aceitar, à medida que amadurece a sua posição sobre o assunto, que mediante situações excecionais, algumas inverdades ainda que erradas, possam ser perdoadas (Fernandéz, 2006). Em função desta ideia, procurando clarificar a medida em que a falta à verdade poderia merecer algum perdão, hierarquizou as oito situações a seguir apresentadas por ordem decrescente de absolvição: questionar a verdade de Deus; mentir para prejudicar alguém; mentir para ajudar alguém com prejuízo de outrem; mentir pelo prazer de enganar; mentir pelo desejo de agradar; mentir para proteger bens materiais; mentir para salvaguardar a vida; mentir para preservar a pureza do corpo (Cortés, 1996). Na sua opinião, que prevaleceu na sociedade durante toda a Idade Média, Santo Agostinho classifica a mentira como um pecado em todos os seus rostos, independente dos seus propósitos. Com base nessa ideologia, predominante na sociedade medieval, “a tendência para fugir à verdade levou ao estabelecimento de sanções, reprovações e penalizações de forma a eliminar a mendacidade” (Cortés, 1996, 21).

S. Tomás de Aquino (1225-1274) foi outro dos seguidores desta corrente, embora fizesse uma distinção clara entre aquilo que considerava ser uma afirmação falsa, e o efeito que a mesma pudesse vir a ter sobre o engano de outrem. Para este frade italiano, a moralidade da mentira assentava em quatro pontos essenciais: a mentira é má em si mesma; as palavras têm o objetivo de transmitir um pensamento; a mentira útil não é mais lícita que as restantes; não é lícito mentir em circunstância alguma.

Ao encontro da ideologia da Igreja Católica e revelando alguma flexibilidade relativamente à posição do seu principal antecessor, S. Tomás defendia que a gravidade da mentira atingia a sua dimensão máxima quando a mesma induzia ao erro sobre Deus, sobre a religião ou sobre a moral, ou ainda sempre que houvesse a intenção de prejudicar alguém através das palavras. A mentira manifestava-se, segundo o mesmo, em três formas distintas, como a falsidade material, a falsidade formal e a falsidade afetiva, já anteriormente referidas no subcapítulo 2.1.1. Definição do construto Mentira.

Embora considerasse que todas as mentiras consistissem num erro, distinguiu os casos de mentiras maliciosas, ditas para prejudicar alguém, que considerou como pecado mortal, dos casos de mentiras oficiosas e benevolentes (ditas para ajudar ou beneficiar alguém) ou jocosas (ditas por brincadeira) que não causassem escândalos ou embaraços, seriam considerados pecados veniais e, portanto perdoáveis, de menor gravidade.

Apesar da corrente contra a mentira que perdurou por quase toda a época medieval, sensivelmente entre os séculos V e XV, tornou-se muitas vezes admissível mesmo por entre a comunidade religiosa, a prática da restrição mental na qual era permitido enganar com as palavras, desde que se mantivesse a verdade no coração. Esta corrente, que anos mais tarde mereceu a condenação pública do Papa Inocêncio XI e que, dado o seu caracter ambíguo no que diz respeito aos limites efetivos da legitimidade, levou à formulação de muitas considerações e teorias posteriores (Freire, 1980), se fosse proferida uma afirmação falsa e, simultaneamente, a mesma fosse desmentida interiormente com uma correção mental, tal não seria condenável desde que fosse feito com um propósito correto como, por exemplo, o de proteger um segredo. A título de exemplo da persistência desta modalidade no tempo, recorde-se o episódio clássico já no século XVII de Galileu Galilei (1564-1642) que perante o tribunal da Inquisição e sob pena de condenação à morte, em 1633, foi forçado a renegar a sua crença na Teoria Heliocêntrica (que por oposição ao Geocentrismo apoiado pela Igreja, defendia que o Sol se encontrava estático no centro do Universo e que a Terra é que girava em seu redor) e embora fosse obrigado a afirmar o oposto daquilo em que acreditava, consta que este matemático, físico e filósofo italiano recorreu à restrição mental, com a célebre frase Eppur si muove (no entanto ela move- se).

Apesar da influência religiosa na vida das populações durante a idade média e da consequente rejeição moral e social da mentira, a mesma serviu em muitas ocasiões como estratégia última para a defesa dos interesses do bem comum e dos direitos gerais. Numa época de guerras e invasões, a obrigação moral de ambas as

partes de um conflito serem honestas tornava-se secundária face à necessidade imperativa de salvaguardar os seus objetivos essenciais, muitas vezes só possíveis através da inteligência estratégica na simulação ou dissimulação de factos e meios, que permitissem surpreender e derrubar o lado inimigo. A astúcia e o engenho na arte de enganar tornou-se, neste período de confrontação entre povos, numa arma poderosa e eficaz.

Sensivelmente um século depois, com a descoberta da América envolta em mistérios e dúvidas sobre a transparência dos cálculos efetuados, inicia-se uma corrente crescente onde renasce o elogio da mentira que se torna uma arte respeitada por se associar à inteligência. “A falsidade que leva ao descobrimento da América serve metaforicamente para discutir o novo brilho do embuste” (Fernández, 2006, p.9). Também a política de sigilo levada a cabo por D. João II que permitiu que os descobridores portugueses alcançassem o Brasil em 1500, garantiu o afastamento da concorrência, nomeadamente espanhola, relativamente à expansão dos caminhos marítimos. Escondendo dos seus potenciais rivais mais próximos, os conhecimentos e estratégias a seguir, Portugal consolidou uma posição de prestígio marítimo mundial ainda hoje reconhecida e celebrada (Albuquerque, 1985; Fernandéz, 2007).