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CAPÍTULO 2 – ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.2. Revisão da Literatura: Estudos empíricos

2.2.1. Principais áreas de estudo da Mentira

2.2.1.3. Motivação da Mentira

No rastreio dos motivos que podem originar a mentira, vários autores (Anolli et al., 2001; Ballone, 2006; Carreteiro, 2004; Kim et al., 2008; Selva, 2005) afirmam que esta pode surgir por razões muito distintas, no entanto é comum a ideia de que as crianças e os adolescentes procuram enganar os outros (Fu et al., 2008) para esconder as suas transgressões (Fu et al., 2008; Lewis, 1993; Talwar & Lee, 2002a; Wilson et al., 2003). Assumindo a definição de mentira apresentada no Capítulo 2 - Enquadramento Teórico, Subcapítulo 2.1.1 - Definição do construto Mentira e excluindo as então referidas situações de ignorância, de engano, de erro, de coação ou de patologia, é possível compreender através da revisão de estudos empíricos que a mentira surge como uma forma de reagir a situações desconfortáveis Scholl e O’Hair (2005) e pode ocorrer por três principais razões: prosociais, egocêntricas ou antissociais.

As mentiras prosociais (Fu et al., 2007; Gneezy, 2002; Heyman et al., 2009; Mealey et al., 2007) têm o objetivo primordial de ajudar outrem (Jensen et al., 2004), ou de contribuir para o bem geral podendo, ou não, causar prejuízo ao emissor (Becker, 1976). Dentro deste grupo distinguem-se as mentiras sociais e as mentiras altruístas. As primeiras, reconhecidas como white lies (mentiras brancas), consistindo em ligeiras inverdades que servem as convenções sociais, têm uma importância reduzida e poucas consequências nas relações interpessoais (Bok, 1978; Frias, 2002), contribuindo por isso para o estabelecimento ou manutenção de relações mais íntimas e satisfatórias (Anolli et al., 2001; Chen et al., 2012; Kashy & DePaulo, 1996). São vistas como uma espécie particularmente suave de mentira, que se tornaram aceitáveis, desejáveis e em alguns casos quase obrigatórias, face às convenções sociais estabelecidas por normas de convivência e cordialidade (Anolli et al., 2001; DePaulo et al., 2004; Lindskold & Walters, 1983). “Na vida quotidiana há verdades que não são mencionáveis, que são irrelevantes, indiscretas ou desapropriadas; e, por isso, precisam de ser ultrapassadas ou ignoradas. De modo semelhante há mentiras inofensivas ou mentiras desculpáveis que são preferíveis à verdade” (Manen & Levering, 1996, p.194).

São usadas com frequência quando está em causa a privacidade própria, ou quando se pretende proteger alguém de situações de sofrimento, de embaraço, ou para evitar infringir alguma regra de boa educação (Kaplar, 2006). Otta (1994) refere que se trata de um conjunto de gentilezas que se trocam, não com o intuito de magoar o outro, mas antes para fazê-lo sentir-se bem, para se ser agradável e evitar situações incómodas, para não se denunciar algum mau estar, bem como para transmitir

tranquilidade e prevenir alguns desgostos ou preocupações desnecessárias. Frias (2002) recorda que “As regras de cortesia conduzem a um uso generalizado de distorções da verdade” (p. 116) e Lourenço (2005, p.73) confirma “É que pode haver situações em que, longe de deverem ser seguidas, certas normas morais devem ser obrigatoriamente violadas para a justiça poder triunfar”.

Este jogo de mitigação verbal onde se evidencia a osmose da mentira nas relações sociais, que à partida não apresenta consequências maiores ou gravosas para aqueles que são enganados, dispensa geralmente o mentiroso de qualquer tipo de julgamento moral ou, dito de outra forma, as mentiras sociais parecem enfraquecer a ideia de que fugir à verdade é algo erado. Compreendendo-se que o motivo da mentira é justificável face às possíveis consequências negativas da verdade, cai por terra a carga imoral e a punição associada ao ato. Por essa razão, as mentiras sociais, que passam também por histórias tradicionais como as já anteriormente referidas, que se tornaram já parte da educação cultural que se instituiu nos diversos ambientes educativos, tornam-se úteis, essenciais e recorrentes nas relações que se estabelecem entre as pessoas (Anolli et al., 2001).

As mentiras altruístas, o segundo tipo de mentira prossocial, tem igualmente a motivação centrada no outro (Becker, 1976; DePaulo et al., 1996; Kaplar, 2006), mas distinguem-se das primeiras, essencialmente na gravidade do conteúdo que é transmitido. Neste caso, embora a intenção seja impedir o sofrimento de outrem, a falta de sinceridade pode trazer consequências com alguma gravidade ao seu.

Da revisão de estudos empíricos realizada, surgem como principais motivações altruístas, as seguintes: proteger os bens, interesses, privacidade, integridade, segurança de outros (Chen et al, 2012; DePaulo et al., 1996; DePaulo et al., 2004;), evitar-lhes situações embaraçosas ou desagradáveis Anolli et al. (2001), poupá-los a constrangimentos, conflitos ou preocupações desnecessárias (DePaulo et al., 1996), proteger os seus segredos (Chen et al., 2012), impedir o seu sofrimento (Fu et al., 2008; Talwar & Lee, 2002b; Talwar, Murphy & Lee, 2006) e não desiludi-los, nem ferir os seus sentimentos (Davis, 1993; Martins, 2009; Martins & Carvalho, 2010).

No entanto, apenas uma pequena parte das mentiras proferidas diariamente se podem considerar prosociais, sendo que a grande maioria resulta de interesses pessoais, podendo ou não ser prejudiciais e ter implicações graves para os demais envolvidos.

As mentiras egocêntricas (Fu et al., 2007; Mealey et al., 2007) são centradas no próprio emissor e têm o objetivo imediato de ajudar o próprio, podendo, ou não, causar prejuízo ao recetor ou a terceiros. Muitas vezes as mentiras contadas pelos adolescentes não representam qualquer tentativa de enganar ou de desafiar a

autoridade e o respeito pelo educador, mas antes uma forma de proteger qualquer fragilidade que consideram mais penalizante se for exposta, do que a incursão em todo o processo que a mentira poderá representar. Tal como a criança de Almada Negreiros (2005), que inventa uma série de desculpas para tentar justificar os atrasos sucessivos à escola, mentem muitas vezes os adolescentes, na tentativa de evitar assumir uma verdade que, de tão inocente e fútil, pode parecer suspeita e ridiculariza- los perante os colegas e o Professor.

DePaulo et al. (1996), bem como Kaplar (2006) consideram que as mentiras centradas no próprio são regidas pelo desejo de autoproteção de castigos, punições ou consequências negativas, ou ainda para enaltecimento do caráter ou da imagem exterior, e podem também ser inócuas ou francamente danosas, podendo levar a consequências de considerável gravidade, que acabam por ser detetadas e podem trazer grandes prejuízos nas relações interpessoais, envolvendo ameaças à integridade física ou à reputação de outrem, traições nos relacionamentos íntimos e transgressões proibidas por lei ou que vão contra mandamentos ou princípios de natureza religiosa (DePaulo et al., 2004).

De acordo com a revisão de estudos empíricos, destacam-se as seguintes motivações egocêntricas: evitar a censura (Martins & Carvalho, 2010; Neiva, 1942) e as justificações sobre assuntos pessoais (DePaulo et al., 1996), bem como os castigos (Anolli et al., 2001; Chen et al., 2012; Cole, 2001; DePaulo et al., 1996; DePaulo et al., 2004; Martins, 2009; Martins & Carvalho, 2010; Neiva, 1942), os confrontos (DePaulo et al., 2004), as consequências das próprias ações (Davis, 1993) e as situações que possam causar algum embaraço ou constrangimento (DePaulo et al., 1996); obter aprovação e elogios (Neiva, 1942), assim como benefícios ou vantagens sobre os outros (Chen et al., 2012; Davis, 1993; DePaulo et al., 1996; DePaulo et al., 2004; Jensen et al., 2004); proteger a própria privacidade (DePaulo et al., 1996; Jensen et al., 2004), assim como os seus bens, o status social (DePaulo et al., 1996); regular a autoestima, os seus sentimentos, as emoções e os estados de espírito (Anolli et al., 2001; DePaulo et al., 1996), dar uma melhor imagem do próprio (DePaulo et al., 2004; Feldman et al., 2002) e alcançar autonomia, bem como estar em conformidade com o grupo de pares e manter as relações sociais (Jensen et al., 2004). Jensen et al. (2004) referem ainda as questões de personalidade, como ser orgulhoso (Martins & Carvalho, 2010) ou gostar de desafios e ser muito competitivo, e as sensações de imunidade ou inconsequência, por comparação a situações semelhantes ocorridas no passado.

Já as mentiras antissociais (Gneezy, 2002), têm o objetivo central de prejudicar ou magoar outrem (DePaulo et al., 2004), podendo, ou não, causar danos ao recetor e a terceiros. A este propósito, Neiva (1942) recorda que muitas vezes, “o adolescente

quando sabe que lhe mentem, procura responder à mentira com outra mentira” (p. 80). São inverdades de gravidade variável, geralmente motivadas por sentimentos de revolta, injustiça e desejo de vingança (Jensen et al., 2004; Neiva, 1942) podendo ter origem em questões de natureza diversa, como económica (Gneezy, 2002) ou por puro maquiavelismo (Geis & Moon, 1981).

De um modo geral a literatura remete para que os adolescentes mintam maioritariamente por motivações egocêntricas, nomeadamente para alcançar autonomia física e psicológica do adulto, para evitarem castigos ou situações embaraçosas e para assegurarem a qualidade das relações sociais que mais valorizam (Ballone, 2006; Caniato, 2007; Carreteiro, 2004; Evans & Lee, 2011; Jensen et al., 2004; Martins, 2009; Neiva, 1942; Nucci et al., 2014; Reichert & Wagner, 2007).