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Por muito tempo, os artistas clássicos, para terem condições de produzir e expor suas obras, dependeram do financiamento da Igreja e da alta aristocracia. Esses aportes financeiros, gradativamente, foram substituídos por burgueses que permitiram uma certa liberdade e autonomia criativa. É o que comenta Maria Eduarda Rocha (2010) sobre uma possível gênese do investimento publicitário na Arte:

De início, essa junção entre mercado e cultura teve um efeito libertador, porque abriu para os artistas a possibilidade de viverem de sua arte sem a dependência direta da Igreja e da aristocracia. Em vez do mecenas, passavam a ser sustentados por um público impessoal e anônimo que não fazia pesar sobre eles nenhuma forma de censura direta (ROCHA, 2010, p. 39).

Ainda de acordo com Rocha (2010), o merchandising, como conhecido hoje, seria o resultado desse longo processo de subordinação da cultura às lógicas de mercado, invertendo a posição de liberdade ideológica do artista a uma limitação da experiência movidas pela finalidade econômica do patrocinador. No caso do merchandising contemporâneo, Rocha (2010) afirma que a relação entre arte e “investidor” vai além do suporte econômico, obrigando o produto artístico “a incorporar, no interior de sua própria forma, uma mensagem de caráter publicitário” (ROCHA, 2010, p. 39).

Os comentários de Maria Eduarda Rocha (2010) estão diretamente ligadas ao product

placement, popularmente conhecido no Brasil como merchandising. Para facilitar a

compreensão destes termos, vamos utilizar os conceitos de Santa Helena (2012) para fazer a diferenciação entre as nomenclaturas. Merchandising, enquanto conjunto de ações, são todas as estratégias de marketing destinadas a exploração do produto ou serviço no ponto-de-venda, ou seja, onde a compra de fato é finalizada. No Brasil, o termo também foi associado aos conteúdos patrocinados que eram inseridos na programação de entretenimento, quando as emissoras de televisão ainda pautavam sua programação nas transmissões ao vivo – o “merchandising testemunhal”. Com a sofisticação das técnicas publicitárias e televisivas, a

interrupção ao vivo dos programas encontrou um outro aliado: a inserção de mensagens de cunho comercial dentro das obras com narrativas fictícias – justamente a característica levantada por Rocha (2010) e que pode, em tese, afetar a criatividade do artista. Essa técnica é chamada de product placement. Santa Helena (2012) esclarece as diferenças entre um termo e outro afirmando que:

Enquanto no merchandising há, de certa forma, a mesma mentalidade da publicidade convencional, de interromper o fluxo natural do conteúdo de entretenimento, no

product placement a ideia é outra. Ambos os termos tratam da presença de produtos e

marcas no conteúdo de entretenimento. Porém, no merchandising há uma interrupção, um solavanco, um parênteses. Já no product placement, a ideia é que essa presença ocorra de forma fluida, transcorrendo junto com o fluxo da trama que está se desenrolando. A presença é mais sutil e gera menos repulsa por parte dos telespectadores (SANTA HELENA, 2012, p. 157).

Juliana Lisboa (2010) se opõe, em certa medida, ao que Rocha (2010) acredita sobre o investimento publicitário às obras artísticas. Para Lisboa (2010, p. 39), a inserção de produtos nas narrativas “não compromete a qualidade artística da obra, desde que esse seja um coadjuvante e não o foco dela”. Santa Helena (2012), por sua vez, expõe o déficit criativo do mercado nacional no que se refere às ações de product placement no país:

Nos parece que no Brasil há um roteirista contratado exclusivamente para escrever as cenas de merchandising. Isso porque geralmente o produto cai de para-quedas no meio da trama, de forma grosseira e invasiva, sem nenhuma preocupação ou respeito pelo telespectador (SANTA HELENA, 2012, p. 158).

Polêmicas sobre o uso do merchandising de maneira eficiente como ferramenta de

marketing de conteúdo à parte, vamos seguir para um outro uso do termo: o merchandising no show business. Santa Helena (2012, p. 157, grifo nosso) apresenta o termo como sendo

majoritariamente utilizado nos Estados Unidos para “descrever os produtos licenciados com propriedades dos filmes, cantores e times de basquete, por exemplo”. O autor continua:

Esses produtos recebem o nome de merchandising exatamente por levarem essas propriedades direto para [...] o ponto-de-venda. Além de merchandising, o termo tie-

in (do inglês, tie - “amarrar” e in - “dentro de”) é outra nomenclatura utilizada nos

EUA para essas ações de cross promotion entre as propriedades de um filme e outros produtos, como um livro do Toy Story ou um videogame do mais novo filme do Batman (SANTA HELENA, 2012, p. 157).

Nó início da década de 1980, as bandas de rock começavam a utilizar-se da venda de produtos paralelos aos discos e ingressos para shows de forma que outras receitas relacionadas à obra musical fossem acrescidas ao faturamento (WALL, 2012). Os produtos, que variavam desde camisetas a pôsteres, auxiliavam, inclusive, na difusão da música e financiamento de apresentações ao vivo dos grupos em países mais distantes, como o caso das bandas americanas que almejavam uma carreira na Europa.

Em 1988, a indústria do merchandising no rock já estava consolidada, com artistas renomados comercializando cerca de 200 itens por apresentação (WALL, 2012). A profissionalização do mercado fez com que empresas surgissem, se especializassem e se consolidassem na atividade:

As gigantes do merchandising, como a Brockum, nos Estados Unidos, e a Bravado, no Reino Unido, calculavam um gasto entre 25 e 50 dólares por cabeça, por show, organizando os seus estandes de produtos nos locais de modo que os artigos mais caros [...] ficassem próximos à entrada, chamando a atenção dos fãs quando eles chegassem. [...] No Japão, onde os fãs já estavam acostumados a usar cartões de crédito durante os shows, era possível lucrar dez vezes mais do que o normal. Lá, os promotores organizavam a venda de “lembranças” para os fãs na saída, erguendo barreiras que se insinuavam na direção das saídas, passando por uma longa fileira de barracas de todos os tipos de quinquilharias com a marca da banda. “No Japão, eles calculam que faturavam de cem a duzentos dólares por espectador, às vezes mais” (WALL, 2012, p. 213-214, grifo nosso).

Além dos produtos “básicos”, apenas com a aplicação do nome ou da marca da banda, os grupos mais estruturados nesse tipo de operação perceberam o potencial da personalização dos itens oferecidos em cada apresentação, como a disponibilização de camisetas “geolocalizadas”. O caso mais expressivo foi com a banda Iron Maiden e seu mascote, Eddie, personagem criado pelo artista Derek Riggs. O monstro, que está presente em todos os álbuns e materiais promocionais da banda, passou a estampar as camisas personalizadas, através de ilustrações que inseriam o personagem em pontos turísticos da região onde o show aconteceria (WALL, 2012). A personalização dos itens permitiu que o público adquirisse não apenas produtos originais da banda, como, também, a aquisição de itens exclusivos àquele momento específico. A valoração dada ao item, que já era afetiva, foi transformada em memória, em lembranças palpáveis, tangíveis.

Essa característica de memória dos itens de merchandising encontram sentido quando iluminados pelo conceito de memorabilia, que, de acordo com Riera e Belmonte (2015), vem do latim “memorabilis” e significa “aquilo que é digno de ser recordado”:

[O dicionário inglês de Oxford] define memorabilia como: “objetos que as pessoas colecionam porque uma vez pertenceram a um famoso, ou porque estão conectadas a algum local particular, evento ou atividade”. [...] Portanto, podemos concluir que memorabilia são as recordações, sentimentos, nostalgia, paixão, experiências, “emoções” de maneira geral, de objetos [...] que relatam uma história, partindo de experiências pessoais (RIERA E BELMONTE, 2015, p. 222, grifo do autor).169

A memorabilia está estreitamente conectada com a ideia de colecionismo, que nada mais é do que a reunião, seleção e conservação de peças deslocadas de suas funções primárias, com

169 “define memorabilia como: “Objetos que la gente colecciona porque una vez pertenecieron a algún famoso, o porque están conectados con algún sitio particular, un evento o con una actividad”. [...] Por tanto, podemos concluir que la memorabilia son los recuerdos, sentimientos, nostalgia, pasión, experiencias, en definitiva “emociones”, de objetos [...] que relatan uma historia, partiendo de experiências personales”. Tradução nossa.

o simples objetivo de se possuir algo exclusivo e, muitas vezes, com valor emocional (RIERA E BELMONTE, 2015). De acordo com os autores espanhóis, depois da indústria norte- americana do tabaco, no final do século XIX, lançar figurinhas colecionáveis com os jogadores de Beisebol para potencializar suas vendas – objetivo alcançado com sucesso, uma vez que as crianças estavam estimulando os adultos a adquirir cada vez mais caixas de cigarros para completarem suas coleções – se percebeu o potencial econômico da coleção. No entanto, possuir objetos de memorabilia não significa, necessariamente, manter uma coleção. A diferença entre eles é o nível de envolvimento emocional com as peças individualmente, que costuma ser maior na memorabilia, e o objetivo de aquisição. Itens de merchandising de um artista, por exemplo, podem ser adquiridos para fazer parte de uma coleção de itens correlatos ou para marcarem uma ocasião ou data específica – como a ida a um show, por exemplo.

Em seu livro “Música Ltda.”, Leonardo Salazar (2015) apresenta a venda de produtos de merchandising nos shows de artistas como uma terceira via de renda para além do cachê (como se chama o pagamento feito pela apresentação de artistas), aparecendo logo após a comercialização da obra fonográfica no varejo em formatos físicos e digitais.

Assumindo uma estratégia mais ousada, o que antes era uma simples banca de venda de discos pode virar um estande oficial do artista no local do show. A ideia é transformar essa proximidade com o público em uma oportunidade de negócio, complementando a comercialização de CDs e DVDs com a oferta de todo tipo de produto - camisa, casaco, boné, adesivo, chaveiro, bandeira etc, ou até mesmo

promovendo uma seção de fotos e autógrafos após o show (SALAZAR, 2015, p. 72-

73, grifo nosso).

Os norte-americanos do Metallica, por exemplo, entre 2000 e 2009 faturaram mais de 220 milhões de dólares em venda de ingressos; Wall (2012), por sua vez, afirma que, ao se incluir a receita da venda dos discos e do material de merchandising, esse valor pode ter chegado a ser três vezes maior, diante do volume de vendas desses itens – influenciado principalmente pelo merchandising, levando em consideração a redução na demanda por compra de álbuns.

Retomando as falas das autoras Juliana Dias (2010) e Maria Eduarda Rocha (2010) sobre o merchandising na arte, e contrapondo-as com as discussões sobre a venda de produtos temáticos de artistas musicais, como os de Iron Maiden e Metallica, a comercialização de

merchandising – a depender, é claro, de cada situação – pode representar uma retomada no

protagonismo do artista ao financiamento de sua obra (diferentemente dos investimentos religiosos, aristocratas ou burgueses). Apesar do Marketing e da Publicidade ainda exercerem uma influência inquestionável no patrocínio (e sua consequente viabilização) de shows e

festivais musicais170 e utilização de cantores enquanto porta-vozes de campanhas171, o

merchandising significa uma fonte de receita livre de pressões de terceiros, financiada

basicamente pelos próprios admiradores dos artistas e com lucro livre para os detentores da obra.

Na fala destacada anteriormente de Salazar (2015), grifamos o trecho em que o autor fala sobre a oferta de seção de fotos e autógrafos após apresentações. Apesar dele não utilizar o termo especificamente, ele se refere ao que o mercado já oferece como meet & greet ou pacotes VIP. Já discutimos no segundo capítulo as possíveis origens, as práticas e as dinâmicas de um produto como esse. Agora, vamos analisá-lo como mais um tipo de produto de

merchandising, que apresenta não apenas características de memorabilia como, também, de

relacionamento. Mais à frente, por meio da discussão sobre os artistas pop latinos e sua peculiar relação com o meet & greet, contraporemos a influência desse produto na difusão de suas obras musicais no Brasil com o que Dias (2010) alerta sobre os perigos da transformação do

merchandising em personagem principal da obra, e não como coadjuvante.