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PARTE II: O ESPAÇO DISCURSIVO DO EXPERIMENTALISMO

2. Neorrealismo

2.4 Metalinguístico: o enunciador poeta

Esta temática não compõe um logos típico da tradição portuguesa, mas da literatura e outras artes em geral. Apesar disso, está incluso neste item graças à fertilidade de informações que provê. Ao questionar o papel e lugar do autor, explicitam-se suas intenções, e como determinado escritor, movimento ou época consideram que a poesia (nessa esfera mais restrita) se defina. Busca-se assim, aproveitar-se dessa potencialidade para expor as semelhanças e diferenças entre os movimentos literários analisados.

Quanto a isso, o autor Manuel da Fonseca compõe o poema “Os olhos do poeta” em Poemas completos (1969: 67-68):

O poeta tem olhos da água para refletirem todas as cores do mundo, e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.

Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,

e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria, com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.

Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na

luta entre pátrias

e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra

Em que explicita que a função do poeta é refletir a realidade de maneira documental (nas “proporções exatas”). Após estabelecida essa função, o autor lista diversos elementos dessa realidade, como miséria, guerra e exílio, passando assim de uma função de simplesmente capturar os fatos, para uma função crítica, base do Neorrealismo.

No nível fundamental, nota-se uma dualidade, representada pelo próprio poeta, que se encontra entre o universo da escrita, da inspiração, do abstrato, e o da realidade, da miséria. desse modo, pode-se supor uma dicotomia da poesia versus realidade, ou, de forma mais primordial, da ordem do imaginário versus real. No âmbito do imaginário, há semas como “olhos da água”, “refletirem”, “todas as cores do mundo”, “coisas que os sábios desconhecem”, “olhar”, “distâncias sem mistérios que há entre as estrelas” e “movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra”. No âmbito do real, há os semas: “penumbra dos bairros da miséria”, “meninos vadios esguedelhados ao vento”, “neves eternas dos Himalaias vencidos”, “rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta” e “pátria”.

No nível narrativo, o poeta atua como actante, representando a dualidade do real e imaginário, tomando a responsabilidade de mediar esses contrapontos. Para isso, entra em conjunção com o mundo, sua realidade e seus segredos, e busca também entrar em conjunção com meios de combater as mazelas dessa realidade. Ou seja, manipulado pela ideologia e humanidade que seu trabalho implica, o poeta passa pelo percurso narrativo da ação ao compor poemas com utilidade da denúncia, unindo a forma e o alcançe poético com a temática da realidade. Trata-se da suma do fator de vanguarda que Abdala menciona, da união de um tema social, potencializado pela forma poética e sua manipulação.

O nível discursivo, seguindo o nível fundamental, apresenta o percurso do poeta de um ambiente comum à literatura, da inspiração e do plano imaginário, para uma temática própria do Neo realismo, do contexto específico em que o discurso se insere: o da denúncia da miséria da população a partir da poesia. Assim, é composta uma isotopia da metalinguagem poética, do trabalho do poeta, principalmente do neo realista. Essa isotopia é tematizada no percurso do olhar do poeta e sua abrangência. Ao longo do poema, esse olhar se volta para coisas abstratas, se opondo inclusive à precisão e limitação da ciência, como explicitado no quinto e sexto verso “Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas”. Com essa contrapartida, o autor considera que o poeta possui uma visão mais ampla do que um cientista, sendo capaz de lidar com objetos mais abrangentes e abstratos, “mesmo das

coisas que os sábios desconhecem”. Porém, apesar de sua abrangência e universalidade ( de “todas as cores que o mundo tem”), a poesia não segue padrões aleatórios, ao contrário, possui “as formas e proporções exatas”. Além disso, o poeta tem o papel social, de refletir e iluminar, ser “as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria”, de não só denunciar as mazelas como de algum modo contribuir para que elas tenham um fim. Por fim, reforça que a linguagem poética é universal, que visa o movimento “entre pátrias e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra”.

No plano de expressão, nota-se um alinhamento peculiar: os versos de 1-6 e 11-13 se encontram alinhados à direita, e os versos de 7-10 à esquerda. Essa disposição não é à toa: nos versos alinhados à direita, nota-se a presença de “entidades abstratas”, como o poeta no primeiro bloco a direita, e a cidade, a terra no segundo bloco a direita. Já o bloco alinhado a esquerda apresenta personagens reais e comuns (como a mãe que perdeu o filho na guerra, ou as crianças indigentes na rua) naquele ambiente e época em que se escrevera o poema. Deste modo, essa intercalação de alinhamento representa, no plano de conteúdo, diferentes temas, relacionados ao papel do poeta. No primeiro “bloco” (do primeiro verso ao sexto), o propósito do poeta é idealizado, ligado à teoria. Já no segundo bloco (do sétimo verso ao décimo), seu papel passa a ser militante, ligado à realidade social e política. Por fim, no terceiro bloco ( do décimo primeiro ao décimo terceiro verso), sua função passa a ser universal, de harmonização generalizada. Assim, pode-se supor que, a partir desse fenômeno no plano de expressão, o poeta seja posto no plano de conteúdo como um guardião, um salvador do povo, como uma figura paterna/materna, que passa por uma árdua jornada de responsabilidade e clarividência.

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