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2.2 A escolha por trabalhar com a questão da identidade-metamorfose

2.2.2 Metamorfose e emancipação: estudantes no intercâmbio estudantil

No nível da sociedade, a tarefa das instituições consiste em acumular sentidos e colocá-los à disposição dos indivíduos, tanto para ações particulares como para toda sua conduta de vida. De acordo com Ciampa (1998), à medida que aumenta a complexidade da estrutura social, há uma crescente autonomização de setores, como a economia e a política, em que as orientações são cada vez mais pautadas pelas regras do agir instrumental e estratégico, e não do agir comunicativo.

É o que vem sendo caracterizado como colonização do mundo da vida pelo sistema, que torna obrigatório o sentido “racional” com respeito aos fins (ou seja, uma racionalidade instrumental) das condutas nas áreas funcionais que aquelas instituições controlam e, mais ainda, que transforma o agir comunicativo, próprio do mundo da vida, em agir estratégico, próprio do mundo sistêmico (o sentido “racional” com respeito aos fins). Já se fala hoje que essa colonização do mundo da vida vai se tornando uma colonização do futuro [...]. O mercado, como instituição econômica originalmente a serviço do mundo da vida, passa a colonizá-lo pela estratégia da globalização, ultrapassando de longe tudo que já se fez na história em termos de colonialismo e de imperialismo (CIAMPA, 1998, p. 98).

Mesmo instituições antigas (como igrejas, que perderam o status de “grandes” instituições), apesar de continuarem cultivando suas interpretações tradicionais, precisam oferecê-las competitivamente num âmbito pluralista. Pois bem, se este quadro toscamente pincelado da modernidade estiver correto e se reconhecermos a base intersubjetiva da vida psíquica individual não poderemos ignorar que é neste mundo caracterizado pelo pluralismo moderno e pela crise de sentido que hoje está se dando a formação e transformação da identidade pessoal (CIAMPA, 1998, p. 98).

O aumento de frequência de crises de sentido, sejam subjetivas sejam intersubjetivas, parece ligar-se às características das modernas sociedades, que impedem ou dificultam o compartilhar de sentidos entre as comunidades de vida. Frente a isso, alguns optam por uma postura fundamentalista e dogmática ou então por uma postura relativista, ambas perigosas (CIAMPA, 1998, p. 99).

Com relação ao paradoxo do mundo contemporâneo, Ciampa (1998) aponta que, de um lado, ele pode ser caracterizado pela perda de sentido que se expressa pela ampliação das crises existenciais e de orientação; de outro lado, ele aparece como um mundo em que, cada vez mais indivíduos têm oportunidade de se liberar de opressões coletivas tradicionais, ou seja, ora nas tentativas de um retorno às raízes, ora nas buscas de novas configurações identitárias para aqueles que procuram encontrar sistemas interpretativos que os orientem, à medida que a consciência reflexiva aumenta. “O desafio, face à crescente ameaça de colonização do mundo da vida, é criar condições para que a metamorfose humana, por mais contraditória e complexa que seja não perca seu sentido emancipatório” (CIAMPA, 1998, p. 101).

Nos escritos de Ciampa, principalmente na obra titulada “A estória do Severino e

a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social”, o autor aborda precisamente a

questão da identidade do sujeito que busca formas de se emancipar. Segundo Almeida (2017), a temática da emancipação abarca uma série de questões, como por exemplo a individuação, o reconhecimento, o lugar do sujeito nas práticas sociais, as mediações entre a existência dos indivíduos e a vida social; além das interconexões entre formas de vida e estrutura social, os elos entre os movimentos e as classes sociais, as diferentes formas de conflito e os limites e potencialidades de ações emancipatórias.

Segundo Beltrame (2015), se em sua origem no direito romano emancipação dizia respeito à maioridade civil, progressivamente passou a ter um cunho teológico e essencialista (como ato de vontade pessoal, exercício autocentrado). Mais tarde, ainda conforme Beltrame, com o iluminismo, o termo passou a significar a autoliberação das cadeias da tradição e da autoridade, uma liberação geral da submissão ao poder, ganhando maior relevo a partir do pensamento marxiano e a sua exigência de conciliação entre homem e natureza, entre homem e sociedade, entre homem e homem. Desde então, considera-se que a emancipação diz respeito a algo de que é preciso libertar-se (ALMEIDA, 2017, p. 2).

A busca por emancipação não retira o sujeito do social, do grupo, ou seja, o sujeito se constitui na relação com a sociedade. Lara Junior e Lara (2017) destacam que Ciampa considera a importância das relações sociais na sua concepção de identidade e afirma que ao compreendê-la se compreende a relação do indivíduo com a sociedade. Logo, entendemos que a proposta teórica de Ciampa não é individualista, ou essencialista, nem tampouco diz que a pessoa se emancipa sozinha ou prescinde do coletivo.

De acordo com Almeida (2017), é próprio da Psicologia Social Crítica o comprometimento com processos emancipatórios e com a superação de situações pessoais e sociais intoleráveis. Ela deve ser aberta a novos modos de ser e agir, preocupada com os

projetos pessoais e com a dinâmica dos processos histórico-sociais. De modo abrangente, deve ser uma ciência social emancipatória.

Vale destacar que essa proposta de identidade, a partir da narrativa de história de vida, aponta para uma concepção de pessoa que está sempre em luta por emancipação. Portanto, sua ontologia não pressupõe alguém estático, parado, encerrado em si mesmo, um solipcista. Lendo a obra de Ciampa, somos convidados a pensar não somente sobre as dificuldades e as agruras de nossa sociedade, mas temos que olhar e valorizar os sujeitos que, de alguma forma, buscam novas possibilidades para suas vidas (LARA JUNIOR; LARA, 2017, p. 3).

Almeida (2017) coloca a questão de emancipação enfatizando a relevância da

autonomia, que se refere, aqui, à condição de se relacionar com as pessoas de modo

igualitário, uma relação de sujeito a sujeito, livre de coações, pressupondo a autoexpressão e o reconhecimento do indivíduo, bem como uma identidade pautada pela posição crítica no mundo, em relação aos outros e a si próprio. “A autonomia corresponde à capacidade de escolher livremente aquilo que se considera importante, contrapondo-se ao livre-arbítrio, isto é, à possibilidade de escolha entre coisas dadas, à definição de projetos pessoais segundo parâmetros sociais preestabelecidos” (ALMEIDA, 2017, p. 3). De acordo com o autor, a autonomia corresponde ao que Ciampa considera como a “transformação das determinações exteriores em autodeterminação (e não uma impossível libertação das determinações exteriores)”.

Cabe frisar aqui a importância do diálogo que deve se dar entre o eu e os outros no sentido de propiciar o reconhecimento intersubjetivo da identidade que se pretende autônoma. A autonomia nunca é autossuficiência centrada em si mesma, porque necessariamente está referida ao reconhecimento. Os ideais de autonomia não se confundem com formas de satisfação do desejo próprias do individualismo burguês, em que as pessoas negam a alteridade dos outros com quem convivem, considerando-as como simples objetos de realização e manipulação. É preciso lembrar que a autonomia é sempre referida a uma identidade: as “expressões de autonomia, portanto, são representações de quem o indivíduo é no processo de tornar-se” (ALMEIDA, 2017, p. 3).

Almeida (2017) enfatiza o argumento da emancipação baseado na ideia de autonomia explicando que esta tem que ser constantemente conquistada e preservada, já que é potencialmente vulnerável às injunções sociais e aos acontecimentos, às determinações sistêmicas e aos dramas da vida cotidiana.

Para mais entendimento sobre a relação indivíduo e coletivo recorremos ao artigo de Lima (2008). Nesse, o autor coloca como referência a escola de São Paulo, liderada por

Silvia Lane, no ano de 1984. Na década de 1980 a escola de São Paulo já não considerava mais a dicotomia indivíduo x grupo, nem a diferença entre o indivíduo no grupo e indivíduo isolado, mas entendia o grupo como condição necessária para a constituição humana; sendo por um lado o promotor de sua ação como sujeito histórico, como o elemento de sua alienação do outro.

Ainda conforme o autor, a identidade, inclusive, passa a ser uma categoria de análise implicada no entendimento do desenvolvimento individual e sua indissociabilidade com o social, com as massas. “O trabalhos realizado por Ciampa (1987, 2002), mostram essa preocupação e, após ter desenvolvido uma compreensão da identidade como metamorfose, explica a relação entre o indivíduo e o grupo como uma tensão entre “políticas de identidade” e “identidades políticas” (LIMA, 2008, p. 6, grifos do autor).

Ao postular que a nossa identidade individual não se é inerente ao grupo do qual fazemos parte, entendemos que o indivíduo aprimora a sua existência atrelado a sua individualidade ao grupo social ao qual pertence. Conforme Lara Junior e Lara (2015, p. 259),

“tal concepção possibilita entender a identidade humana como resultado da simultaneidade entre a socialização e a individuação, as quais se desenvolvem por meio do entendimento linguístico com outros e pelo entendimento intrasubjetivo-histórico-vital consigo mesmo”.