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4 ESCRITURA DE VIDA: O FAZER LITERÁRIO EM

4.4 METANARRAÇÃO, METARREFLEXÃO, ENSAIO

O texto de Liscano tem sempre premente a preocupação de como escrever e de como contar, seja este repousado numa suposta realidade ligada a acontecimentos reais do autor ou não. Ou ainda, esboçar as reflexões acerca da vida da escritura de seus narradores. Nisso se inscreve como metanarração, tematizando principalmente a criação escritural em si mesma. O fato é que sempre acentua essa dificuldade intrínseca do contar. Mesmo nos textos em que possam os elementos referenciais do que é contado ser ocárcere, a tortura, a perda dos pais, ou o exílio, ou ainda uma pequena ação cotidiana, o narrador é quase sempre um escritor e está escrevendo o que conta, “auto-bio-grafando- se”. Por vezes aparenta o narrador ser levado ao ato mesmo de transformar os traumas na escrita, mas fundamentalmente colocando sutilmente a escritura como busca maior e a procura do como dizer sobre o que viveu como drama presente, o que nos recorda algo fundamental em Proust apontado por Barthes (2004c, p. 59-60):

O próprio Proust, a despeito do caráter aparentemente psicológico do que chamamos suas

análises, deu-se visivelmente ao trabalho de

emaranhar inexoravelmente, por uma subutilização extrema, a relação do escritor com suas personagens: ao fazer do narrador não aquele que viu ou que sentiu, nem mesmo aquele que escreve, mas aquele que vai escrever [...] Proust deu à escritura moderna a sua epopéia: mediante uma inversão radical, em lugar de colocar a sua vida no seu romance, como tão freqüentemente se

diz, ele fez da sua própria vida uma obra de que o livro foi como o modelo [...]

Igualmente, os textos de Liscano explicitam o trabalho com a

metarreflexão, pois seus narradores e personagens, que normalmente são

escritores pensando na forma de contar o que estão contando em forma escrita, também refletem sobre sua situação como sujeito. Isso se dá no mesmo processo de estar criando ficção e, por vezes, refletem sobre sua situação de seres fictícios, criados para contar ou criados para representar. Em meio a essas diversas introspecções já não sabem quem são, no entanto, pensam sobre o processo do pensar, conflitando-se no mesmo processo, expondo ou escrevendo seus contínuos diálogos internos de especulação:

Lo cómico no es ser el que se es, sino no querer serlo y fingir ser otro. Mirarse y verlos, al fingidor y al fingido, y no creer en ninguno de los dos. Mirarse y no ver a los dos sino solo al impostor, es no saber ver. Es no saber ser.

La pequeña tragedia de ser convertida en comedia al fingir ser otro. Y la comedia, aceptado el fingimiento, vuelve a ser tragedia.

La salida es afirmar: no hay dos, hay uno. No hay quien finge y el fingido. Es uno solo. Los dos son uno, quieren ser uno, y por eso lo son. La vida es trágica y cómica. Por sobre todo: nunca tomar demasiado en serio a ninguno de los dos. (LISCANO, 2007a, p. 36).

É notória a indecisão do narrador-escritor, se em dado momento afirma ser dois, em outro o desejo de ser um. As contradições no seu discurso só atestam a crise do sujeito dividido. Ainda que o escritor factual Liscano possa ter a ilusão de que possa ser único, seus narradores atestam o contrário, e bem demonstram a rebeldia de seres de papel que se entranham em vias difusas no espaço literário.

Em El escritor y el otro o narrador-escritor também faz referências a suas outras obras, é crítico da vida, da sua vida e de sua obra literária. Quer construir-se enquanto sujeito, busca o sujeito que foi, reflete sobre o que se tornou, não tem expectativas sobre o que será.

As reflexões no livro, atravessadas por vozes múltiplas, sobre o trabalho de escritura, aproxima-o do ensaio, gênero normalmente associado a certa liberdade especulativa, e que levam a marca pessoal de quem os escreve. Em um ensaio, segundo Pozuelo Yvancos (2010), não

é tão importante que o que se conta haja sucedido tal qual “foi para o autor”, mas sim a enunciação discursiva personalizada no sentido de que esta demonstre uma atitude perspectivizada. Atitude não fundada em autoridade, mas medida pelo mesmo modo de tratar os assuntos, completamente adaptados a seu próprio eu. No nosso caso, já que presenciamos na narrativa liscaniana a ruptura e indefinição do eu, podemos verificar a presença desse discurso perspectivizado a diferentes vozes saídas de um sujeito que por sua vez se insinua atravessado por muitos outros, sem que com isso o discurso deixe de demonstrar um gesto pessoal. Este eu narrativo-reflexivo remete a vozes personalizadas, mas não necessariamente biográficas. Por sua vez, é discurso especulativo na medida em que não se apresenta compromissado com a vivência vital concreta e estável, senão manifestando-se como linguagem discursiva ficcional que por meio destas mesmas vozes, de seus narradores, põem-se em ação através da construção estética.

Todavia, tratando da figuração do eu que narra e que reflete, Pozuelo Yvancos (2010, p. 30) comenta:

Es una voz que permite construir al yo un lugar discursivo, que le pertenece y no le pertenece al autor, o le pertenece de una forma diferente a la referencial. Le pertenece como voz figurada, es un lugar donde fundamentalmente se despliega la solidaridad de un yo pensante y un yo narrante. E este discurso, que é de narração, mas também pensante, é valorizado pelo seu valor literário, pela forma, forma de contar. Se não, à semelhança do ensaio, não resistiria à passagem do tempo. Essas vozes da reflexão – que (se) refletem também especularmente –, vozes que discursam e que narram, que não oferecem a facilidade da separação do que se conta e da reflexão sobre o que se conta, dão a impressão de experiência vivida e se projetam vertiginosamente para fora do texto escrito.

Claro está que também nos interessa relacionar à escritura de Liscano aqueles elementos que de alguma maneira, ao rodeá-lo, de fora, projetam-se nele, sugestiva e subjetivamente. Mesmo assim cremos que até aqui ficou bem claro que concedemos atenção especial é ao conjunto de seus escritos e ao envolvimento deles com o mesmo processo autocriador. Procuramos, dentro do possível, não nos afastar do nosso objeto que é o texto literário, sabedores de sua evasividade intrínseca.