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3. Santa Rita a partir das memórias de migrantes

3.4 Migrantes e suas formas de organização em redes

Muitas são as narrativas sobre o trabalho em conjunto durante os primeiros anos de colonização, o que entendo que gerou vínculos de sociabilidade e solidariedade entre os migrantes. De acordo com os relatos, cada colono comprava entre uma e quatro colônias de terra, cada qual equivalente a mais ou menos 25 hectares. Eram espaços grandes, considerando que derrubavam a mata e faziam o plantio e a colheita manualmente. Todo o processo gerou um movimento de trabalho em conjunto entre os migrantes, além da contratação de peões e arrendatários. Percebo nessas relações, não apenas a formação de uma solidariedade coletiva, mas também a constituição de uma historicidade particular cujo marco temporal na memória social dos interlocutores é a própria colonização da região.

A noção de rede foi percebida constantemente nos relatos de formação da região, como a formação de redes migratórias, redes familiares e redes de

grupos familiares, como pode ser visto no que diz Alido:

A nossa família veio praticamente 80%. Vieram meus avós, meus tios, como umas 20 famílias de parentes, todos parentes, e todos compraram terras justamente onde estamos aqui: Santa Rita, Esquina Gaúcha, toda essa parte aqui. Vieram praticamente em dois anos, um atrás do outro. (Alido Batista, 2015)

Flavio Tengaten89, que quando criança, em 1974, migrou para o Paraguai com os pais, quatro irmãos e alguns tios – que foram ajudar no trabalho – conta que, antes disso, um tio já havia se fixado na região e, nos anos seguintes, outros familiares, a maioria do Paraná, chegaram ali também.

Edio Rauber, Antero Bressan90, Livio Fester, Darcila Borré91, Francisco Mesomo, são outros entrevistados que narraram uma migração organizada entre membros da família e amigos. Eles mostram que se estabeleciam redes quando alguns ficavam no Brasil enquanto outros preparavam o espaço, para assim, todos poderem migrar ao Paraguai. Por exemplo, a rede que se percebe no relato de Darcila Borré, que chegou com a família à região em 1973:

Meu irmão morava junto com nós, ele ficou mais um ano trabalhando no Paraná, pra poder trazer coisas pra nós. Daí ele trazia farinha, açúcar, trazia tudo para nós podermos passar aqui. Ele que sustentava nós. Depois ele veio pro Paraguai e ficou morando na nossa casa, então ele ajudava. Ele trabalhava na terra dele e ajudava nós também. (Darcila Borre, 2015)

Este relato exemplifica como as redes familiares eram fundamentais para a manutenção de famílias na região. Nesse mesmo contexto, mais três famílias de parentes de Darcila Borré migraram para a região. As redes serviam, dentre outras coisas, como fonte econômica nos primeiros anos de fixação no exterior. Nesse mesmo sentido, Francisco Mesomo relata que juntamente com seus 4 irmãos e seu pai, que viviam na região de Cascavel, no Paraná – mas que já haviam migrado do Rio Grande do Sul – estava procurando um lugar para comprar terras, e entre as alternativas de lugares escolheram o Paraguai.

89 Flavio Tengaten. Entrevista. Santa Rita, Alto Paraná, Paraguai. 09/07/2015. 90 Antero Bressan. Entrevista. Santa Rita, Alto Paraná, Paraguai. 10/07/2015. 91 Darcila Diel Borré. Entrevista. Santa Rita, Alto Paraná, Paraguai. 11/06/2015.

Compramos entre três irmãos, mais a ajuda do meu pai, 73 hectares cada um. Fica aqui na Gleba Jacaré que pertence a Santa Rosa. [...] Meu pai ficou em Cascavel, mas vinha nos visitar frequentemente, e nós íamos para lá. Ele chegou a ficar uns tempos. Ele ficava uns tempos para cá, depois voltava para lá. [...] As primeiras propriedades que compramos foi em 1976. Daí se começou a abrir picadas, teve que fazer as primeiras roçadas, já em 1977, construir umas casas precárias, mas ainda se conseguia umas madeiras serradas. Era madeira bruta, serradas na serraria de Santa Rosa. Depois que construímos os ranchos, como se fala. Em 1978, eu e mais um irmão viemos de mudança definitiva ao Paraguai. (Francisco Mesomo, 2015)

Os relatos desses sujeitos descrevem e exemplificam migrações realizadas por meio de redes familiares, em sua maioria de agricultores que compraram terras subjacentes e, por conseguinte, tornaram-se vizinhos. Esse tipo de organização também está presente no relato de Teresa Birnfeldt, que disse que seu esposo e familiares chegaram a Santa Rita em 1973, e começaram o acampamento onde hoje é a Esquina Gaúcha. Teresa narrou que:

Começou tudo com chácara, muito difícil. Tudo mato, então tinha que derrubar com motosserra. E tinha que ser a família porque peão não existia. Daí se reuniam os vizinhos: iam primeiro em um, depois em outro e, assim, faziam as roças. Quem podia ajustar um peão, trazer do Franco ou de Ciudad

del Este, trazia. Mas a nossa lavoura aqui, eu descoivarei92 sozinha com

motosserra, e os filhos de arrasto junto. (Teresa Birnfeldt, 2015)

Na fala de Teresa Birnfeldt, e em entrevistas com outras mulheres, pude observar o trabalho delas no processo de colonização, não apenas como base e amparo dentro de casa, mas também na agricultura. Sobretudo, enquanto o trabalho era realizado de forma manual. Entretanto, muitas vezes a presença e a ação das mulheres são invisibilizadas nos discursos dos entrevistados, inclusive por elas mesmas. Geralmente, preferem comentar as ações de seus maridos e familiares homens ao invés de relatarem suas próprias ações. Falarei especificamente sobre a presença das mulheres posteriormente.

Com a migração de parentes para o Paraguai, as famílias numerosas realizavam o trabalho em cooperação. Conjecturo que estas redes permitiram manter laços também com o Brasil e possibilitaram uma maior fixação de representações socioculturais desses migrantes no Paraguai. Pois, migraram em grupos organizados, o que lhes permitiu uma maior ação sobre o espaço. Lembrando que fixação e mobilidade não estão desassociadas e sim são complementares, conforme Glick

92 Descoivarei, do verbo descoivarar. De acordo com os entrevistados significa limpar os terrenos

da estratégia de mobilidade.

Além da organização em grupos familiares, percebi a formação de uma rede de migração a partir da amizade e do compadrio. Esse fato é observado nos relatos da primeira leva de migrantes que se organizaram em grupos compostos por amigos e conhecidos e que, após se instalarem no Paraguai, incentivaram outras pessoas a migrarem ao país também. Valeria Schneider, que chegou ao Paraguai em 1974 com seu esposo, cinco filhos e grávida do sexto, conta que “no começo não tinha ninguém, mas logo os vizinhos que tínhamos no Rio Grande do Sul foram vindo pra cá e nos vizinhamos tudo de novo”. A interlocutora aponta a importância da reconstituição das antigas relações de sociabilidade no novo lugar de moradia. Fato que, percebi, facilitou a territorialização de famílias brasileiras na região. Edio Rauber, por sua vez, que comprou terras em 1973, narrou que voltou ao Rio Grande do Sul e convenceu “muita gente” a se mudar para o Paraguai, amigos e familiares. Isso se destaca também na fala de Milton:

Não foi difícil, a gente já se conhecia. Porque, na verdade, sempre que alguém vinha de uma região, os outros todos vinham atrás. Então a gente já se conhecia lá do Rio Grande, já tinha algum vínculo, alguma amizade, que veio do Rio Grande do Sul pra cá. Entre vizinhos, a gente já se conhecia, na verdade. Não todos, mas a grande maioria. (Milton Johann, 2015)

Esses relatos mostram a formação de redes como estratégia dos migrantes, pois, isso ajudava no processo de compra e fixação no novo espaço. Com a migração organizada para a expansão da agricultura, formaram-se redes transnacionais fortalecidas, campos sociais transnacionais.

Há relatos de pessoas que chegaram ao Paraguai por convite de amigos e conhecidos após o primeiro momento de colonização, no fim dos anos 1980, quando já havia sido implantada a agricultura mecanizada em grande parte da região, quando a carretera Ruta 6 já havia sido asfaltada e quando se iniciou a urbanização na região. Era um momento de êxodo rural, no qual retornaram ao Brasil peões, arrendatários e migrantes que não conseguiram manter suas propriedades no Paraguai. Assim, os convites feitos nessa época eram para pessoas atenderem as demandas de serviços. Vera Bazzo93, por exemplo, deixou o Estado de Santa Catarina, em 1989, com

proposta de trabalhar em um salão de beleza em Santa Rita. Nos anos seguintes, através de seu convite, seus irmãos também migraram para trabalhar na região. Regina Picoloto94, em 1989, migrou do Rio Grande do Sul com sua mãe viúva, por convite do tio, já fixado na região, para trabalhar em seu mercado e em sua serraria. Leonel Vogel95, em 1987, migrou do Rio Grande do Sul para trabalhar como frentista de posto de combustível. Esses migrantes se fixaram em Santa Rita quando a área urbana se constituía e, hoje, são empresários locais.

Redes de sociabilidade podem ser evidenciadas, ainda, nos nomes dados às primeiras comunidades, como já foi visto anteriormente, como, por exemplo, Esquina Gaúcha, que recebeu essa denominação pela presença de brasileiros oriundos do Rio Grande do Sul; e Cerro Largo, localidade constituída por migrantes, na maioria, oriundos da região de Cerro Largo, no mesmo estado brasileiro. Essas nomeações mostram uma busca de reconstrução do espaço de origem a partir da vinculação com o nome e, consequentemente, com os valores e a identidade que o representam.

De acordo com as narrativas ouvidas, depois de dois ou três anos, famílias majoritariamente apontadas como “nortistas”, chegaram à região para arrendar terras e plantar menta. No geral, menciona-se que a produção de menta estava em alta e facilitava o processo de abrir a mata. A maioria dos colonos que estavam fixados na região plantou e/ou arrendou suas terras para que os “novos” migrantes plantassem menta, conforme mencionado por Oscar Dapieve: “A cada pouco se via uma casinha de menteiro”. À época, era comum o arrendamento de terras de 4 a 6 anos, destinadas ao plantio de menta, realizado simultaneamente à derrubada da mata, o que facilitava o posterior processo de destoca. Ao final do período de produção da menta, geralmente as famílias de arrendatários partiam rumo a outra área onde havia esse plantio, cujo cultivo dependia de “terra virgem”.

As famílias de “nortistas” normalmente são lembradas como as de trabalhadores braçais da época, mas não são relacionadas com o pioneirismo da região, dado que estariam em situação social e economicamente inferior em relação aos colonos originários do Sul do Brasil.

A assimetria apontada está naturalizada na fala de vários interlocutores e também tem reflexos na construção de uma memória coletiva e, por extensão, na constituição de uma historicidade local. Tem a ver, ainda, com certa percepção

94 Regina Picoloto. Entrevista. Santa Rita, Alto Paraná, Paraguai. 29/07/2015. 95 Leonel Vogel. Entrevista. Santa Rita, Alto Paraná, Paraguai. 02/07/2015.

Sudeste e Centro-Oeste, que reflete na estratégia de incluí-los na condição de subordinados ou menos importantes na história local.

Os migrantes paraguaios também se inserem neste contexto de migração em rede. Edgar Feltes migrou para a região a convite de um tio para trabalhar. Pedro Valdez96 e Rosalia Valdez97 conheceram a região visitando familiares e se fixaram ali por conta de uma oferta de emprego. Eduardo Coronel tinha um irmão que já morava e trabalhava na região que o incentivou a migrar para o local. E Herculano Cristaldo foi convidado por um companheiro de formação para ministrar aulas na região. De diferentes regiões e através de diferentes redes migraram paraguaios, e também incentivaram à migração. Como pode ser visto no relato de Herculano Cristaldo:

Allá donde yo nací [Eusebio Ayala] es un lugar muy lindo para recrear-se pero para hacer futuro no es. Esa es la motivación de quedarme acá y a traer mucha gente, porque yo traje a varios profesores, varios profesionales, y ahora hay mucha gente, amigos míos, parientes que vinieron a trabajar acá y a quedarse. (Herculano Cristaldo, 2015)

Como já mostrado anteriormente, muitas narrativas descrevem o espaço de colonização como um lugar de mata fechada e sem infraestrutura. E percebi que essas características impulsionaram a solidariedade coletiva. Pois, apesar das dificuldades, os relatos indicam que os acampamentos estavam sempre preparados para receber as famílias que chegavam. Como pode ser visto no relato de Jaime Hammes, ao falar sobre a formação dos círculos de amizade na região:

Isso se deu de forma gradual porque nos primeiros anos vinha em média de 10,12,15,20 mudanças por mês. O cara comprou uma área de terra e vinha mora ali e todo mundo ia lá ansioso ajudar nos primeiros 3, 4 dias a desarmar a mudança, montar os barracos, fazer o poço para ter água. Os vizinhos se ajudavam porque era assim. A gente foi criando um círculo de amigo com gente que vinha de outras culturas e entendimento social, mas todo mundo começou a se associar em amizade. (Jaime Hammes, 2015)

Esse cenário atesta a construção de uma memória social pautada na solidariedade. Quanto a isso, Leontina expõe que “quando sabíamos que ia chegar gente nova, todos ficávamos animados, preparávamos janta e lugar para recebê-los”. E Valtair acrescenta:

96 Pedro Gustavo Valdez Chinini. Entrevista. Santa Rita, Alto Paraná, Paraguai. 07/07/2015. 97 Rosalia Gonzalez de Valdez. Entrevista. Santa Rita, Alto Paraná, Paraguai. 07/07/2015.

Daí, começamos a derrubar o mato e plantar feijão. E quando chegava gente nova nós nos ajudávamos. Aquele feijão, nós dávamos para quem chegava para comer. Porque você podia ter dinheiro, mas sair daqui do meio do mato, direto chovendo, era difícil. Então nós nos ajudávamos e fomos vivendo. (Valtair Vicchetti, 2015)

Notei ainda a solidariedade entre os migrantes, nas palavras de Teresa:

Depois de uma tormenta forte nós ficamos no limpo. Daí nós construímos essa casa, uns 38 anos atrás. E nessa casa, morou acho que mais de dez famílias. Porque as famílias chegavam de mudança e não conseguiam chegar até seus locais, por causa do barro. Então eles descarregavam a mudança para o caminhão ir embora e depois eles levavam de carroça de boi. Só tinha um senhor aqui que tinha carroça de boi, e ele que levava as mudanças. (Teresa Birnfeldt, 2015)

Infiro que essa solidariedade coletiva deu origem a uma memória coletiva sobre a migração na região baseada em experiências, expectativas, histórias de trabalho e superação. Com efeito, os colonos construíram um sentimento de pertencimento àquele espaço e o territorializaram. Isso se atribui, principalmente, ao fato de a maioria da população, no momento da colonização, ser constituída por migrantes oriundos do Brasil, que se organizaram em rede para a fixação no novo espaço. Essas redes unem sujeitos em diferentes espaços – sujeitos fixados e em mobilidade – formando um campo social transnacional, que atua por meio de interesses econômicos, políticos e socioculturais. E, ao mesmo tempo, noto (re)construções identitárias entre os migrantes, reorientando-se em diferentes e múltiplas identidades. Nesse seguimento, mais narrativas e observações serão analisadas adiante.