• Nenhum resultado encontrado

3. Santa Rita a partir das memórias de migrantes

3.1 Um olhar sobre quem se fixou

O trabalho de campo em Santa Rita foi precedido de algumas visitas ao município. Em meados de 2014, em visita à municipalidad do distrito, apresentei a intenção de pesquisa ao secretário geral, Edgar Feltes54. Essa visita norteou as decisões de estruturação da pesquisa de campo, que foi realizada no ano seguinte, 2015, a partir de dados gerais do município. Naquele momento iniciei a observação das construções espaciais e das relações sociais da região, e seguiu durante o período de uma semana. Pude perceber que o que me era familiar fazia parte do enredo de relações que compõem o espaço. Segue-se trechos do diário de campo daquele momento:

Vim na noite anterior, dormi na casa de amigas e, logo cedo, quando elas foram trabalhar, tomei chimarrão com a “Tia” Tere, esperando a hora de fazer minha primeira visita à municipalidad e tentar estabelecer algum vínculo. Ao escrever “Tia Tere”, vejo como a escrita nos faz perceber nuanças que na fala passam por alto. A Tia Tere não é minha tia por vínculo de sangue, é minha tia porque me viu crescer, é minha tia porque todos meus antigos vizinhos são meus “tios”. Sempre encarei com naturalidade essa nomenclatura, mas hoje percebo que é mais que uma simples forma de afeto, pois não é qualquer um que chamo de “tio” ou “tia”, são as pessoas próximas aos meus pais: são vínculos que se estabelecem a partir da realidade de migração, a qual faz com que se “adote” familiares pela distância dos reais parentes. Esse pode ser um ponto de análise futuro. [...] Ao sair da casa tenho uma sensação estranha de que a cidade é muito maior do que sempre vi. Mas acredito, na verdade, que agora eu “abri meus olhos” para vê-la. Como é fascinante prestar atenção a sua volta e perceber que esse espaço é muito mais cheio, confuso, complexo e bonito do que você se lembra! [...] Sou, enfim, chamada a entrar na sala do secretário, o senhor Edgar, paraguaio. Ele me cumprimenta com “alles blau”, e eu faço questão de lhe responder “oi porã”. Ele, ao me olhar, já poderia ter uma pré-concepção sobre mim (descendente de alemães, colonizadores, agricultores), e com certeza eu não queria isso, mas me fez refletir sobre como se estabelecem as relações. Ironicamente, quem começa a me entrevistar é ele, me enchendo de perguntas sobre minha origem e descendência, os lugares onde morei e onde moro, se tenho alguma relação com os pioneiros colonizadores, qual o objetivo do trabalho etc.. Uma clara necessidade de saber quem sou e se posicionar frente ao “ser” que se apresenta a ele. Eu busco então “acalmar os ânimos”, me apresento detalhadamente, traço minha trajetória de vida para que ele “me conheça”, buscando além de sua confiança tentar construir uma imagem imparcial frente à questão da colonização, o que é difícil dadas minhas características, mas acho que consigo. Então começamos estabelecer um diálogo sobre o município. Ao tratar sobre memória e patrimônio, Edgar diz que a memória é a dos pioneiros e que patrimônio a cidade não tem, pois é muito nova. Reflito intimamente que sua visão de

patrimônio é a de monumento, e que a cidade provavelmente tenha patrimônios. Detenho-me então a questionar sobre a migração e a ocupação do espaço de Santa Rita. Ele me diz: “Aquí todos somos migrantes o hijos de

migrantes, tanto los brasileños como los paraguayos”. Mais uma vez, mil

coisas vêm à cabeça e percebo que Edgar também está buscando ser imparcial, ou seja, passar uma imagem de harmonia entre brasileiros e paraguaios. Isso é visível durante toda nossa conversa. Com certeza eu defino o seu discurso. (ANDRESSA SZEKUT, 2014)

Exibo esse recorte a fim de mostrar o vivenciado e o refletido naquele primeiro momento de observação. Olhar analiticamente sobre o espaço gerou indagações sobre: como lidar com o distanciamento do familiar? Como definir as estratégias de campo para um bom trabalho sobre memórias e representações? Como elaborar um questionário que atenderia os objetivos da pesquisa e, ao mesmo tempo, diminuiria as fronteiras simbólicas entre pesquisador e pesquisado? De que forma abordar questões polêmicas como, por exemplo, conflitos entre brasileiros e paraguaios na região?

Vale lembrar, que eu moro há alguns anos em Foz do Iguaçu, fronteira com o Paraguai, e de lá me desloco com frequência para a casa dos meus pais no município de San Cristóbal, necessariamente passando por Santa Rita, situada 70 km antes desse destino. Durante o mês de janeiro de 2015, organizei o trabalho de campo realizando diversas visitas a Santa Rita. E em fevereiro comecei a morar na cidade com uma amiga, pela facilidade de se ter alguém conhecido vivendo no local de pesquisa com o qual poderia dividir as despesas.

Eu já conhecia Santa Rita, por ter passado por ali com frequência, e também por ter participado de algumas atividades como a Expo Santa Rita, encontros religiosos, festas de comunidade, e confraternizações entre amigos. Até 2007, quando ainda morava com os pais no Paraguai, Santa Rita representava o centro urbano mais próximo. Havia hospitais, bancos, casas de câmbio, grandes comércios e sedes de empresas. Alguns dos meus amigos se mudaram para lá em busca de emprego ou para estudar em uma universidade. Assim, sempre presenciei um fluxo constante para esse município.

Nesse contexto, morar em Santa Rita para fazer uma observação participante foi um exercício constante de não naturalizar os fatos, além de se buscar as representações lá constituídas. Ter conhecidos morando na cidade, ao mesmo tempo em que facilitou alguns processos, também exigiu vigilância para os distanciamentos e interpretações necessárias à pesquisa. Pois, por mais que morar com uma amiga e

manter um olhar atento às relações e representações. Procurando constantemente a objetividade na subjetividade.

No dia 23 de fevereiro de 2015, iniciei efetivamente o trabalho de observação participante em Santa Rita. Durante o dia, por quase um mês, eu andei pelas ruas, busquei reconhecer o espaço e perceber as peculiaridades, enquanto as noites eram reservadas à revisão das teorias que embasavam as análises. Sentava-me por horas em La Parada – terminal urbano e rodoviário localizado no centro – para observar a dinâmica social, as práticas e representações, os hábitos e os movimentos dos sujeitos, tudo registrado em diário de campo. Fiz visitas frequentes à municipalidad, onde pude obter: uma constancia55 para fazer pesquisa no distrito; documentos e fotos; indicação de pessoas para eu entrevistar sobre a migração na região. Considerei os sujeitos indicados como uma rede de porta-vozes autorizados56. Busquei entrevistar, além dos indicados, outros interlocutores que participaram do processo de formação do município.

Os espaços eram complexos, as trocas constantes, intensas e ao mesmo tempo sutis. A agricultura permeia relações sociopolíticas do município. Andar pelas ruas mostrou que Santa Rita, assim como todos diziam, “cresceu muito”. É nítida a diferença entre os bairros antigos e os novos. O centro é mais antigo, com casas de madeira que foram construídas no início da constituição da área urbana, e que hoje estão sendo substituídas por prédios comerciais em alvenaria. O centro – situado nos arredores do cruzamento entre a Avenida 14 de Mayo e a Supercarretera Ruta 6 – é caracterizado por La Parada, pelo comércio, pelo fluxo intenso de pessoas, e revela as teias de relações estabelecidas e as representações fixadas.

Representações e referenciais de “brasilidade” estão por toda parte na região de Santa Rita: fala-se português nas ruas; muitas placas estão escritas em português ou “portunhol”; há referências à cultura brasileira em publicidades; restaurantes com pratos brasileiros; programação de rádio em português, com músicas brasileiras; faz- se festas de comunidade ao estilo de festas brasileiras; há instituições como o Centro

55 Documento que reconhece e autoriza a fazer pesquisa no município. Foi pedido por mim como forma

de respaldo frente às futuras visitas que faria aos moradores na região, contudo nunca foi utilizado.

56 O porta-voz autorizado consegue agir com as palavras em relação a outros agentes e, por meio do

seu trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador. (BOURDIEU, 1996, p. 89)

de Tradições Gaúchas (CTG), que difunde uma cultura regionalista brasileira na região; além disso, a produção mecanizada da agricultura está diretamente relacionada com os migrantes brasileiros na região. Esses exemplos mostram a constituição do espaço a partir da impressão de marcas socioculturais brasileiras nessa localidade.

Existe um discurso de integração entre os migrantes brasileiros, seus descendentes e os paraguaios, proferido pela maior parte dos sujeitos. Ao falarem da relação entre ambos, afirmam que é “muito boa”; “muitos brasileiros e paraguaios estão se casando”; “hoje todos já somos paraguaios”. Contudo, além dessa afirmativa geral, existem tensões socioculturais, e também políticas e econômicas entre esses grupos. Ao mesmo tempo em que são vistas interações, trocas e integração, também se vê exclusão e silenciamento. Nesse sentido, Santa Rita tem uma sociedade complexa, na qual as relações de poder conflitantes são, além de econômicas, simbólicas, uma vez que grupos distintos estão em constantes fricções e adaptações socioculturais.

Assim, chego à questão de fronteiras e ligações, pois, entendo que esses sujeitos têm suas memórias reconstruídas a partir das experiências de interação com o outro e em outro espaço. Tanto brasileiros quanto paraguaios que se fixam nessa região passam por transformações socioculturais e espaciais. Os paraguaios continuam no seu país, ao contrário dos brasileiros, que ultrapassam fronteiras nacionais e se fixam em outro Estado-nação, constituído a partir de diferentes referenciais políticos, simbólicos, linguísticos, culturais, que são estabelecidos para garantir a soberania do país. Migrantes brasileiros, mesmo ao adotarem os referenciais entendidos como paraguaios, ainda mantêm seus referenciais brasileiros. Após caminhadas pela cidade, observação constante, participação em diversas atividades socioculturais, conversas informais e visitas aos conhecidos que relataram suas práticas diárias, reelaborei o roteiro para as entrevistas (Apêndice A).

As entrevistas foram gravadas em áudio, exceto em dois casos em que os interlocutores não autorizaram a gravação, por isso foram registradas em diário de campo. No total, foram entrevistadas 53 pessoas: 35 homens e 18 mulheres. 45 migrantes brasileiros e 11 paraguaios.

Ressalto que algumas entrevistas foram remarcadas várias vezes e muitas delas não chegaram a se concretizar. Algumas pessoas se recusaram a responder, outras foram entrevistadas mais de uma vez. Entrevistei casais e familiares de forma

enquanto outras, mais formais. A primeira entrevista, por exemplo, foi cancelada pelo interlocutor por causa da chuva daquele dia.

O clima influencia bastante nas atividades de toda a região pelo fato da economia ser baseada na agricultura e a maioria das vias serem de terra. Apenas a Ruta 6, que passa no centro de Santa Rita, e algumas poucas ruas no centro urbano são pavimentadas. Vias de acesso às áreas rurais têm calçamento de pedra irregular, mas em geral, as ruas e estradas são de terra. Isso gera muito barro e “atoleiros” quando chove, e muito pó em dias ensolarados, tornando as vias perigosas. Esse é um dos fatores que explica a preferência por caminhonetes com tração 4x4 na região, além da utilização desses veículos para o trabalho no campo.

A primeira entrevista ocorreu na Chiperia Santa Rita, com Pedro Benitez, um paraguaio que vive com a família na cidade há nove anos. Essa entrevista não foi indicada por ninguém, foi motivada pela representatividade do local para o município, uma chiperia grande e famosa na região que, por seu fluxo intenso de clientes e sua comida típica paraguaia, representa a integração cultural que ocorre no espaço. Após essa primeira experiência, foram entrevistados interlocutores quase todos os dias. Ao final de cada entrevista, pedi indicação de outros sujeitos e, assim, redes de indicações foram sendo constituídas. Muitos dos entrevistados indicaram as mesmas pessoas, demonstrando o reconhecimento de alguns porta-vozes da população e evidenciando a seleção de representações que querem passar da comunidade.

Após uma indicação, eu entrava em contato com interlocutor em potencial – por telefone ou indo até sua casa ou local de trabalho, como ocorreu algumas vezes por falta de número de telefone para contato – para me apresentar, relatar sobre a indicação, explicar o trabalho e então solicitar uma entrevista. Após responder os interlocutores sobre a origem e o destino da pesquisa, alguns já marcavam entrevista, enquanto com outros foi preciso um pouco de insistência. As entrevistas ocorreram sempre nas residências ou nos locais de trabalho dos interlocutores, inserindo-me, como pesquisadora, nos seus ambientes particulares, o que permitia também uma análise do espaço.

Senti a necessidade de sempre ter uma pessoa de referência para me aproximar de um interlocutor. Por exemplo: “Foi fulano(a) que me indicou o(a) senhor(a)”. Essa prática revelou a forma de organização e a relação social que se tem no distrito, percebidas como bastante arraigadas aos vínculos familiares e de

compadrio. Essa situação foi explicitada, por exemplo, ao perguntarem de onde eu vinha e a que família pertencia. Ambas as questões se complementam e definem a representação que constroem sobre o outro. Caso reconheçam o pesquisador como migrante, ou seja, com trajetória similar as deles, buscam estabelecer ligações a partir da trajetória ou de algum vínculo de amizade. Com isso, percebi que se estabelece um tratamento de maior afetividade, de ligação pela imigração, pela experiência.

Não foram indicadas mulheres para entrevistas, a não ser por outras mulheres. A um dos interlocutores, solicitei o contato de sua sogra, esposa de um reconhecido pioneiro, já falecido, de Santa Rita. O interlocutor se surpreendeu com a demonstração de interesse pela senhora, mesmo ela sendo uma das primeiras moradoras da região. Com olhar intrigado, cedeu o contato.

Ao ser contatada, Valeria Schneider57 ficou surpresa; foi a primeira mulher a ser entrevistada, e indicou outras mulheres, assim foi se estabelecendo outra rede de interlocução: a feminina. Entretanto, mesmo as mulheres acabavam indicando homens. Percebi em muitas falas como elas não se sentem portadoras de uma memória “relevante”, o que expõe as relações de gênero estabelecidas no processo de reconhecimento da memória.

Ao todo, foram entrevistadas 18 mulheres, algumas de forma individual e outras juntamente com seus esposos e filhos. Tive contato, também, com diversas mulheres em diferentes situações, o que permitiu perceber como elas se inserem nas práticas do espaço e quais suas posições nas (re)construções da memória, como analiso adiante.

A vida religiosa é ativa na região, com muitas igrejas e mais de 30 religiões presentes no município, de acordo com informação dada por representante da municipalidad. Conforme referenciado constantemente pelos interlocutores, a igreja católica teve ação protagonista no processo de colonização da região, principalmente a partir dos padres scalabrinianos, e ainda é a igreja com maior adesão da população. Participei de algumas atividades da paróquia de Santa Rita, como a celebração pelo dia de Santa Rita de Cássia, quando houve uma carreata pela cidade, show e festa em comemoração a essa data no salão comunitário da igreja. Além disso, contatei a secretária da igreja para conseguir alguns documentos, como um livro escrito pelo

informações sobre a colonização. Contudo, o material não foi encontrado.

Enquanto estava em Santa Rita, vivenciei o momento de disputa política das eleições para a intendência do município. Esse foi um dos motivos de não conseguir entrevistar o então intendente, que estava ocupado na busca de sua reeleição. Participei de comícios e vivenciei as discussões acaloradas das disputas partidárias internas e externas. Foi possível observar como os grupos se organizam de diferentes formas para alcançar seus interesses, e também perceber como os imigrantes brasileiros e seus descendentes se inserem nesse processo político nacional paraguaio. Como que a ideia de porta-voz do município está relacionada com a de representatividade política.

Participei também da 23ª Expo Santa Rita – conhecida como segunda maior feira de exposição do Paraguai em volume de negócios –, com mais de 450 expositores. A feira foi realizada entre os dias 01 e 10 de maio de 2015, organizada pelo Centro de Tradições Gaúchas – CTG Índio José. Esse é um evento que ocorre desde os primeiros anos de emancipação do município e é reconhecido como propulsor do crescimento do centro urbano. Durante a feira, a população de Santa Rita se organiza em função dos eventos diários que ocorrem. A cidade recebe visitantes da região e dos países vizinhos. É um evento realizado por uma instituição de cunho tradicionalista gaúcho, portanto, está diretamente relacionada a um regionalismo brasileiro que analiso mais adiante.

Enquanto vivenciei o campo, ocorreram aproximações, observações, conversas e entrevistas. A questão de como era a vida quando os imigrantes brasileiros chegaram à região esteve sempre presente, retomada a cada fala, com comparações sobre o antes e o depois. Nas narrativas, os interlocutores expressaram, principalmente, as motivações da migração, as dificuldades vividas e como trabalharam na região. As atividades mostram como se apropriaram do espaço e como ocorrem as incorporações e fricções socioculturais. E as vivências evidenciam as relações e as redes estabelecidas.

A seguir analiso esse conjunto de fontes levantados durante o trabalho de campo.