• Nenhum resultado encontrado

Psicanálise e Educação

1.3 Millot e Kupfer:

abuso de poder ou a subj etividade do professor em sua prática pedagógica.

Millot (1987) faz uma releitura da obra de Freud percorrendo todos os textos em que ele trata da educação, contando, também, com a lição de Lacan em seu livro intitulado: “Freud antipedagogo”. A autora ressalta a antinomia entre educação e psicanálise e a preocupação de Freud em advertir aos analistas e educadores contra a confusão de suas respectivas funções, fazendo assim restrições à analogia entre ambos os processos. Ela comenta sobre a natureza das reticências de Freud e sobre a impossibilidade de se constituir uma pedagogia analítica, dada a radicalidade que marca a diferença entre esses dois campos de saber. Justamente por isso, é que Freud não fornece nenhum método novo à pedagogia dado que a psicanálise não é conclusiva no que tange ao campo educativo. A incidência da psicanálise na contemporaneidade não passa, de modo nenhum, por uma reforma na educação.

Pode-se constatar que a autora é partidária em que se deixe a pedagogia aos pedagogos e a psicanálise aos psicanalistas. Estamos em total acordo, com tal ponto de vista, principalmente, quando ela diz que não há possibilidade de haver uma pedagogia analítica e nem uma psicanálise pedagógica. Essa possibilidade provocaria desvirtuamento em ambas as funções. No entanto, em determinado momento, a autora questiona: em que são comparáveis o processo educacional e o processo analítico, e

em que medida eles devem ser diferenciados? Pode-se postular que ambos os processos têm, ao menos, uma finalidade em comum: a de assegurar à criança e ao paciente o domínio do princípio de prazer pelo princípio de realidade. Esse domínio do princípio de realidade constitui-se em um aspecto salutar da educação. A nosso ver, é impossível dar toda liberdade à criança para que esta possa seguir sem restrições seus impulsos. Segundo Millot (1987), Freud indica também outro meio de ação em comum: o poder de sugestão conferido pelo amor que a criança, ou (o paciente), dirige ao educador (ou analista). É na medida em que ambos, educador e analista, dispõem desse poderoso instrumento que é a sugestão, que Freud os põe em guarda contra o abuso de poder que consistiria em usá-lo para modelar o sujeito — criança ou paciente — em função de ideais pessoais.

O texto da autora nos aponta dois elementos importantíssimos para pensar a relação professor-aluno: o abuso de poder e a sugestão que se revelam elementos chave para a abertura de nossas investigações a respeito dos impasses que ocorrem em sala de aula. Estariam os professores, em algumas situações, valendo-se da sugestão para modular o aluno segundo sua própria idéia de como este deveria ser? Os impasses isolados na relação professor-aluno referentes à aprendizagem seriam reações ao abuso do poder de influenciar?

Millot (1987) explicita esse abuso de poder:

“Para um sujeito, o fato de ocupar o lugar de Ideal-do-eu14 de outro sujeito lhe confere o poder de submeter este último à sua palavra que, desde então, é lei —– e tanto mais quanto mais maleável é a estrutura psíquica do que é sujeitado. Toda influência que um sujeito pode exercer sobre outro opera desta maneira” (p.128),

O comentário da autora refere-se ao modo como um sujeito pode exercer influência sobre o outro, no entanto, o que ela salienta é o abuso do poder de influenciar o outro, é o assujeitamento da criança ao adulto, por exemplo, visto a

14

Freud utilizou essa expressão para designar o modelo de referência ao eu (ego), simultaneamente substituto do narcisismo com as figuras parentais e seus substitutos sociais. A noção de ideal do eu é um marco essencial na evolução do pensamento freudiano, desde as reformulações iniciais da primeira tópica (antes de 1920), até a definição do supereu. (ROUDINESCO, 1998:.362).

primeira ser mais maleável psiquicamente. Freud faz à analistas e educadores uma advertência quanto à tentação de abusar do poder de influenciar, posto que estes se encontram em posição de sugestionar o sujeito.

Kupfer (1995) apresenta algumas idéias sobre o abuso de poder, no seu livro “Freud e a educação. O Mestre do Impossível”, que poderão ser de grande valia para nossa pesquisa sobre os impasses no ensino-aprendizagem da matemática.

Segundo a autora, a questão do poder e do desejo na relação professor-aluno é tratada pela via da transferência. O que é a transferência? Freud utilizou essa palavra pela primeira vez, em 1900, na interpretação dos sonhos. Ele descobre que alguns acontecimentos do dia, os chamados restos diurnos, são transferidos para o sonho e modificados pelo trabalho onírico. Mais tarde, Freud observa nas relações com seus pacientes que a pessoa do analista também é alvo de transferência. O paciente transfere imagens de antigas relações com os pais atualizadas na pessoa do analista. Em nenhum momento, no entanto, os pacientes percebem essa transferência, pois ela é uma manifestação do inconsciente e, por isso, torna-se um instrumento de suma importância, para analisar esse inconsciente. A transferência ocorre em todas as relações humanas e, por isso mesmo, podemos encontrá-la na relação professor-aluno. Assim, um professor pode se tornar alvo do endereçamento dos interesses de seu aluno porque é objeto de uma transferência, seja em relação ao amor ou à agressividade.

Hoje, já se avançou muito nas discussões sobre a transferência, e esta pode ser tomada como fundamento da aprendizagem, o que, nesse contexto, parece distanciar- se das primeiras formulações de Freud na interpretação dos sonhos. O que ocorre no sonho? Ele se apodera dos restos diurnos para montá-los com uma significação diferente daquela que tinha surgido inicialmente. São formas esvaziadas de seu sentido em que o desejo do sonho investe com um novo sentido e em que opera um deslocamento. Para Kupfer (1995), a transferência na relação professor-aluno se produz quando o desejo de saber do aluno se aferra a um elemento singular que é a pessoa do professor. É importante ressaltar “a idéia de que o desejo inconsciente busca aferrar-se a formas (restos diurnos, analista, professor) para esvaziá-las e colocar aí o sentido que lhe interessa” (p, 91). A transferência não é sem conseqüências para o professor, pois, no momento em que esta é estabelecida, ele torna-se depositário de algo que pertence ao aluno. Em virtude dessa “posse”, tal pessoa fica investida de uma importância especial. O “poder” emana, justamente, dessa importância que é conferida

pelo outro. Em virtude dessa transferência de sentido operada pelo desejo, decorre também uma transferência de poder.

Uma outra conseqüência que a autora aponta é que se o aluno se dirige ao professor atribuindo-lhe um sentido conferido pelo desejo, esse docente passará então a fazer parte de seu inconsciente. O que isto que dizer? Que, se foi colhido pela transferência, o professor não é exterior ao inconsciente do aluno, então, o que ele disser será escutado a partir do lugar em que é colocado. O que disser deixa de ser inteiramente objetivo, mas é escutado pela posição especial que ocupa no inconsciente do aluno.

Para tornar mais clara a relação transferencial, a autora cita o fato de haver docentes que não parecem ter nada de especial, mas que, na verdade, marcam a trajetória intelectual de alguns alunos. Em nossa pesquisa, registramos o testemunho de um professor que exemplifica, exatamente, a questão da transferência na relação professor-aluno. Ele nos diz:

Eu procuro desenvolver um trabalho de matemática mais do lado afetivo, porque os melhores professores que eu tive faziam assim. Inclusive tive um professor de matemática com o qual eu me identifiquei muito e até, por isso, talvez eu tenha escolhido essa profissão. As vezes, ele demonstrava uns teoremas no quadro e eu ficava babando, achava aquilo tudo uma maravilha. (Prof. DANTE – 1ª reunião).

Se o desejo transfere poder e sentido à pessoa do professor, que se torna então esvaziado de sentido próprio, enfim, que sentido esse desejo transfere? Esse desejo e sentido particularizado, em última instância, escaparão ao professor. Este poderá ter alguns vestígios desse desejo se estiver atento ao seu surgimento. Para essa psicanalista, o professor “tem uma tarefa que não deixa de ser incômoda” (p. 93), pois foi colhido na transferência e ali seu sentido, como pessoa, foi esvaziado cedendo lugar a um outro desconhecido. Mas aqui surge um problema. Tudo seria perfeito se o docente, perante a aprendizagem do aluno, cumprisse o papel que este último lhe atribui, isto é, renunciasse a um modo próprio de ação pedagógica e se conformasse ao modelo que o aluno lhe confere, conforme concluiu Kupfer (1995). No entanto, o jogo é complexo. O professor é, antes de tudo, um sujeito e, como tal, regido também pelo desejo inconsciente. É um sujeito marcado pela falta e, entre outras coisas, tem

vontade de exercer o lugar de mestre15 e não há por que vacilar, já que o discurso pedagógico lhe propõe muitos modelos de atuação docente. Ocupar essa posição de saber universal, de mestre que tudo sabe é um modo de recobrir a sua falta, pois assim tem a ilusão de ser completo.

Pode-se concluir que, em relação ao abuso do poder de influenciar, Millot (1987), destaca o poderoso instrumento que é a sugestão e que esta pode ser usada para modelar o sujeito. Em Kupfer (1995), a transferência que o aluno estabelece com o professor pode levar esse último a tentar tirar proveito disso, submetendo-o aos seus ideais pessoais. As duas autoras constatam que o risco de abusar do poder de influenciar é tentador nas relações professor-aluno.

A nosso ver, este abuso do poder de influenciar pode gerar nos discentes reações de desacato à autoridade, rebeldia, apatia e até dificuldades com a aprendizagem de determinados conteúdos chegando, por vezes, a constituir-se em um sintoma. Nesse momento, pode-se utilizar a sugestão no sentido de querer corrigir o sujeito, homogeneizar suas respostas nas avaliações, suprimir tudo o que foge à norma, “domesticar e mudar o rumo” daquilo que o adulto supõe que não está “girando bem”16. Enfim, quando se desconsidera sua singularidade, é que o sintoma pode aparecer. Qual seria a contrapartida desse uso da sugestão para o sujeito?