• Nenhum resultado encontrado

Fazer pesquisa é para além do que é escrito e publicado, é como diria a antropóloga brasileira Mirian Goldenberg (2008) que propõe de forma branda uma outra atmosfera acadêmica, são eventos que não estão divulgados no currículo Lattes e que são tão importantes quanto, para a vida de um (a) pesquisador (a), são atividades que perpassam o processo de desenvolver determinado tema ou assunto da forma como é exposta, é algo como os “bastidores” de uma observação.

Apesar de mudanças significativas nas relações de gênero na sociedade e, em particular no esporte, o papel reservado à mulher no futebol ainda é subalterno, e ser pesquisadora nesse meio é estar alerta, sobretudo como mulher e ser humano, que determinados episódios podem afetar psicologicamente, com sexualizações que são impostas, diversas limitações e falta de credibilidade por homens que tentarão deixar a mulher e pesquisadora em estado de fraqueza e incompetência, isto posto, tem-se que considerar os limites pessoais e profissionais com situações surgidas em campo.

Frequentar os jogos do Goytacaz- ou como os torcedores costumam se referir, Goyta- foi um campo de experiências múltiplas e grandes aprendizados, mas com a dicotomia de um ambiente com um certo estilo de masculinidade de homens jovens, muitas vezes periféricos, com formação apenas de ensino médio completo, de camadas populares, moradores de cidade do interior do estado do Rio, ou espaço masculino reservado (ELIAS; DUNNING, 1993), que promove situações constrangedoras e vivências que impactam diretamente a mulher pesquisadora.

Situações embaraçosas foram vivenciadas desde o ato da compra de ingressos na bilheteria do clube. Em um dia antecessor a um jogo, juntamente com uma colega de pesquisa naquele momento, deparamos com os jogadores, em sua maioria

20 aparentemente jovens, entre vinte e trinta anos, entrando no ônibus que estava parado na calçada em frente ao portão principal, que fica ao lado da bilheteria, para disputar uma partida que ocorreria fora da cidade de Campos dos Goytacazes. Alguns deles demonstraram reação de surpresa e espanto com nossa presença. Eles ficaram parados, reagiram com viradas de pescoço, muitos olhares contínuos e ditando o famoso "psiu", seguimos a compra e afastamos rapidamente do local. Casos semelhantes também aconteceram partindo de torcedores durante os jogos e fora deles, além de a utilização de vocabulários como “linda” e “gostosa”. Outra situação, ocorreu poucos meses após a aproximação com uma torcida organizada que até o momento seria investido o estudo, quando tive meu nome citado na rádio no dia do meu aniversário como forma de

“presente” ou “homenagem” de um torcedor organizado pertencente ao grupo que foi cogitado pesquisar.

Também houve outras circunstâncias que promoveram reflexões e interpretações sobre como as mulheres torcedoras e mulheres pesquisadoras se inserem em um local onde a presença de mulheres são minorias numéricas e simbólicas, inclusive na parte administrativa do clube, que até então não havia presença feminina. Em relação ao distrito feminino da Torcida Jovem Goyta não foi possível avançar na pesquisa, por conta de uma restrição por parte do presidente em ceder entrevistas e possíveis entendimentos, sobre a organização onde surgem especulações de um espaço possivelmente de submissão buscando compreender a condição e posicionamento de mulheres que atuam como torcedoras organizadas, e outra dificuldade em conversar com essas torcedoras sucedeu ao contacta-las individualmente para agendar entrevistas mas que acabavam por desmarcar em cima da hora ou não respondiam mais. Também, um dado observado e que foi confirmado por um torcedor no tópico 2 desse artigo, muitas torcedoras eram, na verdade, namoradas de torcedores.

Outra restrição surgiu, dessa vez com a torcida organizada que seria estudada no início, quando foi imposto por torcedores a escolha de entrar para a organizada como membro e permanecer em seus grupos de WhatsApp com compartilhamento de informações ou escolher outra torcida organizada para investir a pesquisa. Foi semelhante a uma “cobrança” de ser e estar, e nesse caso não lhes foi aceito apenas a condição de pesquisadora naquele momento.

No entanto o fato de ser mulher, trouxe, ainda que de forma questionável, vantagens para a pesquisa e recolha de dados nesse ato desse campo da masculinidade,

21 por parte de torcedores, jogadores e administração. O acesso a contatar torcedores e jogadores não ocorreu de forma dificultosa, sempre demonstraram estar dispostos a contribuir. Foi sugerido também o convite para assumir a direção do distrito feminino.

O clube, tardiamente, tem se esforçado em incluir mulheres em seu espaço, promovendo ações que “chamam”13 mais mulheres para assistir os jogos e consequentemente aumentam o público. Uma dessas ações presenciadas ao longo da pesquisa foi promover a gratuidade para a mulher que estivesse trajada com a camisa do Goytacaz, no jogo que aconteceria no dia da mulher e houve um outro momento dessa promoção em um jogo considerado importante, como a semifinal de um campeonato.

Portanto, diante das experiências vividas e presenciadas na pesquisa, é identificável a existência de uma dicotomia, por um lado a invisibilidade em momentos de exclusão e desconfiança em entender o meio futebolístico, e por outro lado, a visibilidade que pode se tornar tendenciosa em ser observada por torcedores enquanto função de pesquisadora e mulher.

4. Conclusão

Reconhecendo o futebol como o esporte mais popular do Brasil e de maior expressão identitária do nosso país (TOLEDO, 1999), as práticas a ele associadas são espaços que podem ser analisados de diversas maneiras de socialização que podem expressar e representar múltiplas dimensões da vida social como laços familiares, relações de amizade, relações de classes sociais, questões de gênero, entre outros. A torcida organizada, interrelacionada nesse meio, apresenta um campo de variáveis que podem vir a reproduzir e apresentar novas definições, como relações sociais orientadas por lógicas empresariais.

A organizada Torcida Jovem Goyta identifica-se em sua semelhança a uma empresa nos aspectos funcionais como a estrutura hierárquica, onde os cargos estipulados para que haja a ocupação dessas funções realizam-se um processo de escolhas de perfis (similar ao RH de uma empresa) com um seguimento de critérios

13 O termo “chamam” faz alusão aos próprios torcedores organizados que utilizam esse vocábulo algumas vezes, durante as entrevistas realizadas, para se referir ao modo como torcedoras mulheres se inserem/ se atraem na participação em frequentar os jogos e a torcida.

22 como o “ser ativo” que possibilita ascender na escala, também há um olhar visionário de lucros através da venda de produtos, rede de contatos, bem como estratégias de marketing que ocasionam interesses em prol do crescimento da torcida e a mudança de representante, ou seja, o desligamento de um torcedor dos cargos ocorrem quando não se tem ou não se alcança a produtividade e rendimento previstas.

Entretanto, a torcida organizada não se resume a ser configurada como empresa por seus aspectos empresariais. Toda torcida organizada tem suas particularidades como o suporte entre as torcidas, ou seja, as alianças com organizadas de outros clubes que se tornam uma relação de proteção, de amparo, de poderio e de confiança, além do reconhecimento que uma torcida obtém ao acompanhar sempre o clube e o time em todos os momentos, disputas e campeonatos, que se destacam em inúmeras formas de torcer.

A experiência enquanto mulher e pesquisadora permitiram entender o campo em relação a gênero e refletir dicotomias que por um lado traz a visão do torcedor e por outro a vivência em sua individualidade. É um processo entre estar no ambiente do nativo e colocar em pauta as situações que podem vir a influenciar no trabalho do pesquisador.

A partir dos dados levantados e que são constitutivas das necessidades da pesquisa está uma lógica que apareceu nas entrevistas com os atuais dirigentes da organizada em questão de ver essa associação de torcedores como uma empresa. Dentro desta lógica, as noções de representação, participação e engajamento do torcedor, que orientou o discurso dos torcedores nos anos 1990 (MONTEIRO, 2003) teria cedido lugar ou estaria disputando à lógica de custos e benefícios e de um empreendimento financeiro, orientando para o lucro, onde os distritos seriam como que franquias. Ou seja, podemos estar prestes a fazer uma descoberta sociológica no sentido de pensarmos em “organizadas negócios” e os termos já utilizados por torcedores organizados: torcida empresa e torcida-organizada-empresa (RIBEIRO, 2010) mas que ainda não foram expansivamente registrados. Pensar a torcida organizada dessa forma, significa também refletir acerca da adesão a um estilo de identidade muito particular que se recoloca em discussão.

23 5. Referências Bibliográficas

DORNELAS, José Carlos Assis. Empreendedorismo: transformando ideias em negócios. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. 293p.

ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Quest for Excitement, Sport and Leisure in the Civilizing Process. Oxford: Paperback, 1993. 313p.

GOLDENBERG, Mirian. Noites de insônia: cartas de uma antropóloga a um jovem pesquisador. Rio de Janeiro: Record, 2008. 95p.

HASHIGUTTI, Simone. Futebol no Brasil: sentidos e formas de torcer. Rua (online),Campinas, v.1, n.14, 2008.

LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. 416p.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Da Periferia ao Centro: pedaços & trajetos.

Revista de Antropologia. São Paulo, USP, 199, n.35, p.191-203. 1992.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 436p.

MONTEIRO, Rodrigo. Torcer, lutar, ao inimigo massacrar: Raça Rubro Negra. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. 120p.

RIBEIRO, Josiane Maria de Castro. Conflitos, territórios e identificações: o encontro de experiências nas torcidas organizadas Cearamor e M.O.F.I. Orientação de: Irlys Alencar Firmo Barreira. 2010. 213 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Departamento de Sociologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010. Disponível em:

24 http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/1296/1/2010_tese_JMDECR.pdf. Acesso em: 08 jul. 2020.

TOLEDO, Luiz Henrique de. A invenção do torcedor de futebol: disputas simbólicas pelos significados do torcer. In: M. COSTA (org.), Futebol Espetáculo do Século. São Paulo, Musa , p. 146-149. 1999.

_____.Torcidas Organizadas de Futebol. Campinas: Autores Associados Anpocs, 1996. 168p.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Guanabara:, 1981. 340p.

_____. Economia e Sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de: Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. São Paulo: Editora UnB, Imprensa Oficial.

2004. 2 v. Título original: Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehenden Soziologie.

Documentos relacionados